01 Outubro 2024
"A cegueira da insensibilidade social e da adoração pela riqueza (que Marx tratou também no conceito de fetiche da mercadoria) se alimenta do desejo de ser como seus heróis hiper-ricos", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Um dos temas que o Papa Francisco e diversos teólogos da libertação têm dado ênfase é o da “insensibilidade social”, isto é, a crítica à insensibilidade de uma parte da população e da própria lógica cultural do neoliberalismo frente aos sofrimentos dos outros, em especial dos pobres. (Esse artigo faz parte de uma série sobre o cristianismo de libertação e a pedagogia.)
Na cultura neoliberal que vivemos, os pobres são vistos e julgados como culpados da sua condição econômico-social e merecedores dos seus sofrimentos. O que as pessoas que internalizaram essa cultura e esse julgamento ético sentem é desprezo ou o ódio aos pobres. A partir disso, a pobrefobia ou aporofobia é expressa em diversas formas, sejam elas materiais (como arquitetura anti-pobre) ou imateriais. Na medida em que as pessoas não nascem com medo ou ódio dos pobres, – isto é, essa fobia não é fruto de algo genético ou da evolução da espécie humana–, ela é fruto de um processo de produção cultural e sua interiorização na sociedade.
Quando essa cultura anti-pobre, que identifica a pobreza com crime ou pecado, se torna hegemônica ou socialmente significativa passa a tornar-se parte de um processo educativo formal ou informal, seja na família, nas igrejas, nas escolas, nas redes sociais. É claro que, em primeiro lugar, precisamos criticar essa cultura anti-pobre e combater essa pobrefobia que vai penetrando na sociedade e nos porões da nossa mente; mas isso não é suficiente. O desafio é como nos contrapormos a essa cultura desumana e necrófila.
Há diversas portas de entrada nessa discussão, mas gostaria de começar com a questão da concepção antropológica. No cristianismo de libertação, especialmente das décadas de 1970 a 2000, a discussão sobre a “educação popular”, ou a formação de “fé e política”, estava fundada em uma visão do ser humano centrado na noção de “razão” ou de “consciência crítica”. Em segundo lugar, na noção ética de justiça. Em termos de filosofia clássica, eram os temas da verdade e do bem. Nesta lista faltava o terceiro elemento da filosofia, a estética ou o tema do belo e da sensibilidade. Com o foco somente na categoria de verdade e do bem/justiça, nós do cristianismo de libertação perdemos no nosso discurso o importante tema da “sensibilidade”. Nós humanos somos seres que se importam com a verdade (hoje em dia não tanto), o bem e a justiça; mas também somos seres de beleza e da sensibilidade, especialmente quando lidamos com a experiência de “ações bonitas”, isto é, a capacidade de sentir e ver beleza em ações de solidariedade e gratuidade. Isso faz parte da condição humana.
Contra essa beleza de ações gratuitas, o que o capitalismo atual faz, e muito bem, é a manipulação da sensibilidade e do desejo. Muitas das pessoas hoje não se importam mais com a verdade ou justiça, mas sim desejam e buscam a excitação e o prazer (que pode ser alcançado também pelo consumismo ou agressividade/violência), que estão no campo da sensibilidade. A cultura neoliberal desenvolve uma pedagogia (o caminho que leva à formação do ser humano que gostaria de ser) que reduz ou incapacita as pessoas a terem sensibilidade humana frente aos sofrimentos de pessoas que não são parte “dos meus”. Isto é, tenta consolidar nas pessoas a tendência egoística e do desprezo para com os “pobres/inferiores” que existem em todos nós.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo canaliza a sensibilidade das pessoas às mercadorias que fascinam. Fascinação essa que significa “adoração” e, ao mesmo tempo, o processo de se tornar cega a tudo que não é esse objeto de fascinação. A insensibilidade frente aos sofrimentos dos pobres é resultado de uma hipersensibilidade em relação a um objeto “adorado”. O que a Bíblia chama de ídolo e idolatria. Idólatras ou cegos pela adoração da riqueza/prestígio/poder não são capazes de ver que estão cegos. Como, então, podemos educar essas pessoas a ver a falsidade e a desumanização da idolatria do capitalismo de hoje e ajuda-las a desenvolver mais sensibilidade social?
A cegueira da insensibilidade social e da adoração pela riqueza (que Marx tratou também no conceito de fetiche da mercadoria) se alimenta do desejo de ser como seus heróis hiper-ricos. Essa é a pedagogia fetichizante do neoliberalismo. Contra isso, os primeiros passos da pedagogia libertadora não devem começar com uma chamada à razão ou um apelo à consciência crítica. Pois o fundamento dessa cegueira não vem da ignorância, mas sim do desejo egoístico. Por isso, o primeiro passo é mostrar a esses cegos ações e vidas de pessoas que vivem uma vida realmente “bela”, cheias de solidariedade e compaixão.
É a luz de amor e solidariedade que pode curar a cegueira das pessoas insensíveis aos sofrimentos dos pobres e de todas outras pessoas vítimas das relações injustas. São práticas e vidas dessas pessoas solidárias e compassivas que iluminam àquelas que estão vivendo uma vida sem vida. E os educadores da sensibilidade humana precisam ter paciência e amor, pois sem amor à causa dos que sofrem a paciência acaba logo no longo caminho pedagógico da cegueira/egoísmo à luz/solidariedade.
Em resumo, a pedagogia da sensibilidade social ou humana inicia, não com “consciência”, mas sim com o calor humano que leva ao novo agir, um agir que é ao mesmo tempo belo (ação bonita) e do bem (ação de justiça).
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Pedagogia da sensibilidade social e o cristianismo de libertação. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU