25 Mai 2024
"Dizer que o caos das enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não resolve a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por que Deus bom permite isso?", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Eis o artigo.
O caos, destruição e mortes nas enchentes no Rio Grande do Sul (sem esquecer também o que aconteceu na China, Afeganistão, Quênia, Tanzânia...) trazem às pessoas que creem que existe um ser sobrenatural, Deus, ou uma energia ou lei, por exemplo, carma, que move e controla o universo, uma pergunta filosófico-teológica fundamental: por que “Deus” permite que pessoas boas sofram assim? Pode Deus ser insensível ou injusto? Se Deus é bom, esses sofrimentos seriam provas da impotência de Deus e, portanto, não ser deus de verdade, mas apenas uma projeção do desejo humano?
Nos cursos ou retiros espirituais, é muito comum usar a beleza e a grandeza do universo para “provar” que Deus existe. Mas a vida humana não é feita só de beleza ou de momentos espirituais positivos, mas também cheia de maldade, sofrimentos injustos e opressões. E muitas vezes, como é o caso das enchentes, esses sofrimentos veem das consequências de ações humanas, muitas vezes inconscientes e não intencionais, e da própria dinâmica da natureza. Isto é, a vida é cheia de contradições e conflitos de interpretações.
Nesses momentos, a questão da teodiceia – justificar Deus frente aos sofrimentos injustos – é importante para as comunidades religiosas, especialmente cristãs que aprendem que Deus é justo, bom, amoroso e todo-poderoso. Quais são as respostas biblicamente adequadas e compreensíveis e plausíveis para as comunidades do nosso tempo?
No artigo anterior, “O caos da enchente, para que serve a religião?”, tratei do papel da religião na criação e na manutenção da ordem contra o medo e a insegurança do caos; especialmente em época de crise compreendido como fruto da desobediência das leis de Deus ou do universo. E, nesse processo da dialética entre a ordem versus o caos, que aparece o argumento da punição de Deus como um processo salvífico, da reconstrução da ordem ou do “equilíbrio”. Toda teologia ou religião que está fundada na ideia de um Deus todo-poderoso (bom ou mal, não importa) implica em exigências sacrificiais e punições.
Nesse tipo de teologia, se o sofrimento é fruto da punição de Deus, essa dor não pode ser injusta, mas sim merecida. Mesmo que as pessoas não saibam quais pecados cometeram, pois Deus sabe.
Dizer que o caos das enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não resolve a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por que Deus bom permite isso? Focar plenamente nas causas ambientais e sociais (a crítica ao sistema capitalista) atende às demandas das pessoas e grupos que não têm preocupações teológicas ou de fé. Mas grupos religiosos precisam também de respostas teológicas.
Um caminho de resposta a oferecer é que, na revelação bíblica, Deus é todo-poderoso para criar o universo e para ressuscitar as pessoas da morte, mas por seu amor à humanidade, ao entrar na história, Deus se abdicou do poder divino (cf Fl 2,6-7). Isso porque a relação de amor pressupõe a liberdade. Poder exige obediência, o amor pressupõe a liberdade. A história da humanidade é do âmbito da liberdade, mesmo que não seja da liberdade plena, pois tudo que humano é relativo.
No âmbito da religião, do sagrado e profano, o ser humano pode encontrar segurança da ordem, frutos da obediência às leis. No âmbito da fé, que aprendemos com Jesus, podemos encontrar a coragem, força para superar o medo, e vivermos o amor solidário uns outros na comunidade como expressão mais plena possível de liberdade humana. Como diz apóstolo Paulo, onde está o Espírito Santo, espírito de amor, está a liberdade. (2Cor 3,17)
Não se pode amar a Deus e a outras pessoas sem vivermos a liberdade. E como não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal (eticamente falando) e do pecado, Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, Comblin retomava frequentemente um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo: “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) e disse: “se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar” (COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, p. 66).
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Por que Deus permitiu a enchente? A pergunta que pede resposta. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU