“Precisamos entender e respeitar a natureza, caso contrário, teremos mais desastres”. Entrevista especial com Moisés Rehbein

“Não faz o menor sentido continuar insistindo em ocupar as áreas que reiteradas vezes foram assoladas pelas forças da natureza. É preciso buscar entender as dinâmicas da natureza nesse contexto de mudanças climáticas e, através de políticas de ordenamento territorial, adaptarmos o campo e a cidade a essa nova realidade ambiental”, afirma o geógrafo e professor da UFPel

Foto: Michel Corvelo | ASCOM PMP

24 Mai 2024

A implementação de políticas de preservação das áreas úmidas, uma das ações urgentes a ser implementada no curto prazo e no contexto de novo regime climático, depende de uma mudança de mentalidade da sociedade sobre esses ambientes, pontua Moisés Rehbein na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail. Essas áreas, regionalmente conhecidas como banhados, várzeas ou brejos, serão fundamentais no enfrentamento a dois eventos extremos, chuvas e secas. “As áreas úmidas têm a importante função de acumular esses excessos de água que estão escoando das chuvas volumosas e, quando ocorrem as secas, contribuem com esses acumulados de água para manter mais regular as vazões em nossos rios e lagos, assegurando-lhes a perenidade ou que eles não sequem”, explica.

O geógrafo também destaca a importância de analisar o relevo das cidades para o planejamento urbano e rural. “O mapeamento geomorfológico ou o mapa do relevo não pode seguir sendo apenas uma ilustração bonita e sem aplicação, como um figurante sem fala no planejamento urbano. Ele requer ser um dos protagonistas na orientação, no ordenamento de expansão da nossa cidade”. Em Pelotas, exemplifica, “seria muito mais econômico e justo orientar a expansão da cidade sobre os relevos mais seguros, como em superfícies de terraços e colinas, podendo assim dispensar recursos financeiros em estruturas e manutenções caras de engenharias para contenção das inundações e aplicar esses recursos em educação, saúde, segurança e habitação, segmentos do desenvolvimento social já tão deficitários”, pondera.

Nesta entrevista, Rehbein aborda o tema das mudanças climáticas, das políticas ambientais de enfrentamento aos eventos extremos e a reestruturação do planejamento urbano à luz de sua área de pesquisa, a Geografia.

Moisés Rehbein (Foto: UFPel)

Moisés Rehbein é graduado em Estudos Sociais pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Geografia/Análise Ambiental pela UFRGS e doutor em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Confira a entrevista.

IHU – Como explicar as inundações nas cidades gaúchas à luz da sua área de estudos, a Geografia?

Moisés Rehbein – A Geografia é a ciência que estuda a relação entre a sociedade e a natureza em diferentes escalas de espaço (do local ao global e vice-versa) e também em diferentes escalas de tempo (do geológico ao histórico e vice-versa). As mudanças climáticas são fenômenos que se materializam nesses espaços através desses tempos. Nós já sabemos que o planeta Terra passou por inúmeras mudanças ambientais decorrentes de mudanças climáticas, talvez você já tenha visto isso em algum documentário na televisão. Eu adoro esses documentários baseados em evidências científicas sobre a evolução do Planeta Terra. Não à toa eu fui cursar Geografia e me especializar na área da Geografia Física, em particular daquela que estuda o relevo.

Tempo geológico 

O tal tempo geológico tem como referência os milhares, os milhões de anos e até bem mais do que isso. O que acontece é que estamos no tempo histórico, “acelerando o tempo geológico”. Como? Através da emissão de gases poluentes do efeito estufa, estamos “acelerando o aquecimento global” e, assim, a manifestação de eventos extremos, como das fortes chuvas e das prolongadas secas. São as mudanças climáticas desencadeadas ou aceleradas pela ação humana. A sensação que tenho é que o sistema Terra está buscando um novo equilíbrio dinâmico.

É a partir desse tempo geológico, desse tempo distante e difícil de mensurar, que busco, na Geografia, por intermédio da Geomorfologia (que é a ciência que estudo o relevo), as explicações para as origens das diferentes formas da superfície terrestre. Entre essas formas de relevo, destaco as planícies. São intrínsecas a essas formas de relevo as suas diferentes origens. As planícies constituem o que nós chamamos de leito maior dos arroios, dos rios, da laguna. Vamos lembrar das aulas de Geografia: o que são as planícies? As planícies são relevos planos e de altitudes mais baixas que os relevos circunvizinhos e que se formam ao longo do tempo pelo acúmulo de sedimentos decorrentes dos transbordamentos das águas de escoamento superficial de rios, lagos, lagunas. Portanto, essas formas de relevo são superfícies de suscetibilidade natural às inundações, está na sua origem, tanto que também são conhecidas como planícies de inundações.

São especialmente nessas formas de relevo, em planícies, que – também em função do escoamento sub superficial e que sustenta o lençol freático – ocorrem os ambientes de áreas úmidas. As áreas úmidas são regionalmente conhecidas como os banhados, os brejos e ou várzeas, isto é, são ambientes que se integram às planícies dos arroios, rios, lagos, lagunas etc.

Acontece que ao longo do tempo histórico (que, considerando-se o tempo geológico no intervalo de 1h seria o de milésimos de 1 segundo) muitas cidades foram se expandindo sobre as planícies, por meio da construção de diques, aterros e drenagens das áreas úmidas. Os arroios, rios e lagos, costumo dizer aos meus alunos, estão sempre nos lembrando que essas áreas de planícies pertencem a eles por natureza. Os estudos do relevo nos confirmam isso. As áreas úmidas são indicadores naturais no espaço geográfico disto: de que as planícies de inundações pertencem aos rios e à lagoa por natureza.

Mudança climática

O evento climático que nós estamos acompanhando neste momento não tem precedentes históricos, mas para os últimos milhares de anos (o que é pouquíssimo tempo no contexto cronológico geológico), nós identificamos, em paisagens do RS, diferentes depósitos sedimentares indicadores de avanços das águas sobre o continente. A origem das formas de relevo em planícies nos reforça isso. As superfícies pelas quais se expandem algumas cidades gaúchas já foram fundos de lagos, fundos de rios. Daí a importância de melhor compreendermos como se constituiu o relevo da nossa cidade, do nosso município e da nossa região, no sentido de pensarmos sobre a melhor forma de ocupação deles, especialmente se considerando as mudanças climáticas e possíveis eventos associados.

Falo muito sobre o relevo para explicar as inundações porque essa é minha área de ensino e pesquisa, mas evidentemente que outras variáveis devem ser lembradas na ocorrência desses fenômenos. São diferentes variáveis que devem ser analisadas conjuntamente, regionalmente e localmente, tais como, do clima (especialmente em relação às chuvas e às orientações dos ventos), da hidrografia e hidrologia, da geologia e dos solos, e, o que considero como uma das mais importantes variáveis e que resulta em situações de riscos hidrológicos: as transformações nas coberturas e usos da terra, tanto na área do perímetro urbano como na área rural.

IHU – O senhor tem defendido a necessidade de planejar as cidades tendo em vista as mudanças climáticas. Do ponto de vista da reconstrução e reestruturação dos municípios atingidos, o que isso significa na prática? Por qual tipo de mudanças as cidades precisarão passar daqui para frente?

Moisés Rehbein – As inundações são fenômenos naturais. Os arroios e os rios transbordam, a lagoa transborda. Para onde transborda? Para as suas planícies de inundações. Como já disse, ao decorrer do tempo geológico, são inúmeros os registros desses eventos. Acontece que nós experimentamos o tempo em outra perspectiva, vivemos o tempo histórico, das décadas e como a nossa memória, enquanto sociedade, não é muito boa, pois nós temos “faltado às aulas de História e Geografia”, nós temos reproduzidos os desastres das inundações.

Uso em minhas aulas um vídeo gravado na década de 1950 sobre inundações na cidade de Pelotas. Dias atrás, recebi um mapa feito por um órgão oficial do governo das áreas de inundações da grande cheia do ano de 1941 nessa cidade, um mapa de 1941! Eu digo para os meus alunos: nós não estamos fazendo as lições de casa que a natureza está nos enviando e, por isso, ainda não aprendemos e seguimos cometendo os mesmos erros. A maior área do perímetro urbano de Pelotas é de relevos em terraços, de áreas que são vazios urbanos. Essas superfícies, assim como as das colinas (ou coxilhas) que aqui existem, possuem maiores cotas altimétricas e são muito mais seguras para a construção civil, pois, os riscos hidrológicos são praticamente nulos sobre essas formas de relevo. Então, tendo esse conhecimento do relevo da cidade, por que nós insistimos em ocupar e expandir a cidade de Pelotas sobre as planícies de inundações, aterrando e drenando banhados e várzeas, gerando situações de risco para população?

Mapeamento geomorfológico

O mapeamento geomorfológico ou o mapa do relevo não pode seguir sendo apenas uma ilustração bonita e sem aplicação, como um figurante sem fala no planejamento urbano. Ele requer ser um dos protagonistas na orientação, no ordenamento de expansão da nossa cidade. O mapeamento geomorfológico traz informações da origem e da evolução do modelado, considerando as transformações nas dinâmicas das formas de relevo decorrentes da sua apropriação social. Por isso, entendo que nesses trabalhos de mapeamento se geram produtos cartográficos bastante reveladores e que podem ajudar em reflexões e nas tomadas de decisões para o planejamento urbano.

Não faz o menor sentido continuar insistindo em ocupar as áreas que reiteradas vezes foram assoladas pelas forças da natureza. É preciso buscar entender as dinâmicas da natureza nesse contexto de mudanças climáticas e, através de políticas de ordenamento territorial, adaptarmos o campo e a cidade a essa nova realidade ambiental.

IHU – Como entende o uso das engenharias de contenções às inundações, como a das casas de bombas, de diques etc., nesse contexto de mudanças climáticas? Elas poderiam ser uma solução para a ocupação segura dos relevos em planícies, por exemplo?

Moisés Rehbein – Fui questionado outras vezes se os usos de casas de bombas e diques de contenção às inundações poderiam ser alternativas para as ocupações das planícies e tenho respondido que não. O reforço nos diques e nas casas de bombas que nós já temos são ações de curto prazo para buscar mitigar os problemas já instalados, dos espaços urbanos já edificados em áreas de planícies.

No contexto das mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global existem previsões de aumento do nível dos oceanos e são para lá que a grande maioria dos volumes de águas que escoam pelo continente fluem. Todavia, aumentado o nível dos oceanos a rede hidrográfica associada eleva o seu nível de base e, por consequência, podemos ter o aumento no nível de cursos e corpos d’água. Na área do perímetro urbano de Pelotas, por exemplo, o relevo e os processos associados à formação dele são como uma impressão em 3D disso.

Eventos sem precedentes históricos

Nesse sentido, os diques que são projetados para conter certos níveis de elevação das águas vão sendo recorrentemente testados. A manutenção dos diques e das casas de bombas também exige notórios custos financeiros. Nós vimos que em diferentes cidades esse sistema de controle às inundações falhou. Há sempre um risco disso acontecer, seja por falta de memória e investimentos em manutenção ou porque vivemos as mudanças climáticas, pois, estamos presenciando eventos sem precedentes históricos, mas que, supostamente, já aconteceram no tempo geológico, na formação dos relevos que hoje assentamos.

Entendo que as pessoas queiram morar em lugares de natureza cênica, de belas paisagens e a água tem essa vocação em fazer um lugar bonito. Entendo que o mercado imobiliário enxergue aí uma demanda para fechar negócios. Contudo, em contexto de mudanças climáticas, não acho que seja um bom negócio para a população. Você vai querer arriscar o seu patrimônio (a sua casa, por exemplo) ou a sua vida porque a paisagem é bonita, tendo a consciência de que naquela paisagem existe algum risco associado?

Moradores de alguns bairros de Pelotas e que sabem que eu trabalho com Geografia têm me escrito, preocupados se a instalação de casas de bombas em outros pontos da cidade poderia contribuir para inundar as suas residências. Tenho respondido que não posso afirmar isso, mas tenho dito que é uma preocupação que tem sentido e que acho legítima. Para afirmar se é verdade ou não seriam necessários estudos hidrológicos e de índices de áreas edificadas.

O que posso especular com base no estudo do relevo e dos processos hidrológicos associados é que quando as planícies de inundações são aterradas, drenadas e sobre elas se constroem diques de contenção, as águas que outrora ocupavam aquelas áreas nas cheias, através do escoamento superficial e também sub superficial, vão contribuir para aumentar a vazão no curso d’água associado e, possivelmente, para a inundação das superfícies às margens opostas e das áreas úmidas em planícies situadas nas jusantes (nos sentidos dos fluxos dos escoamentos das águas). Em Pelotas temos um agravante, pois, a depender da orientação dos ventos e do nível da lagoa, as águas do canal São Gonçalo têm fluxos reversos e é por isso que ele é chamado de canal.

Daí uma pergunta que recomendo às pessoas que me escrevem, direcionada ao poder público: será que existem estudos detalhados dos impactos hidrológicos nas áreas circunvizinhas aos aterros em que são aplicadas drenagens e estruturas de contenções em planícies de inundações na cidade de Pelotas? Não sei, desconheço e acho que é uma pergunta oportuna.

Aterros

Em relação aos aterros pela cidade, também tenho a sensação de que há um problema técnico entre eles. Estou falando isso considerando apenas o meu olhar para a topografia das diferentes áreas aterradas. Tenho a sensação, quando caminho por essas diferentes áreas, de que não há uma uniformidade de cotas nos diferentes aterros: alguns parecem mais elevados do que outros, criando, em áreas intradiques, dependentes das estruturas de contenção às inundações, situações díspares de risco hidrológico. Por exemplo, em frente ao prédio onde moro passa um curso d’água que foi canalizado e do outro lado desse canal foi realizado um aterro em que os terrenos estão em cotas visivelmente mais altas do que a do meu condomínio, talvez meio metro. Esse canal depende de uma casa de bomba para ser drenado quando chove na bacia de captação dele. Vamos imaginar que esteja chovendo forte e essa casa de bomba falhe e o canal comece a transbordar. Daí eu me pergunto se a lâmina de água no meu condomínio não será muito maior em função desse desnível entre os aterros.

Tenho uma profunda admiração pela Engenharia e pelos conhecimentos dessa área. É fantástico o que se pode realizar através dos conhecimentos de engenharia! Todavia, tomando como exemplo Pelotas, não acredito que murar a cidade dos seus cursos e corpos d’água seja a solução mais inteligente, pois, nós temos aqui “obras de engenharia da natureza” (os relevos em terraços). Essas “obras” não nos oferecem custos para construção e manutenção; elas já estão prontas! Essa é nossa melhor tecnologia nesse momento de mudanças climáticas e de eventos extremos sem precedentes históricos.

Dito isto, penso que seria muito mais econômico e justo orientar a expansão da cidade de Pelotas sobre os relevos mais seguros, como em superfícies de terraços e colinas, podendo assim dispensar recursos financeiros em estruturas e manutenções caras de engenharias para contenção das inundações e aplicar esses recursos em educação, saúde, segurança e habitação, segmentos do desenvolvimento social já tão deficitários. Educação, saúde, segurança e habitação, em função desse desastre, vão precisar de vultuosos aportes financeiros quando essas águas baixarem, não é!?

Desenvolvimento econômico

Comumente ouço que nós, geógrafos e outros profissionais do meio ambiente, somos contra o desenvolvimento econômico. E isso não é verdade! É fake news! Nunca se tratou de sermos contra o desenvolvimento econômico. O que nós temos alertado é que não há desenvolvimento econômico se ele não for ambientalmente sustentável e socialmente justo.

Precisamos entender e respeitar a natureza, caso contrário, teremos mais desastres e quem vai pagar essa conta é a sociedade, a população, pela perda de bens materiais, dos seus domicílios e ou através do que é inestimável, através da própria vida. Não é isso que nós estamos vendo? Essas são tragédias revividas e já há bom tempo anunciadas. Alguém lucra com isso? Quem lucra com isso?

IHU – O senhor tem dito que uma medida urgente a ser adotada, de curto prazo, para a mitigação do risco hidrológico seria a implementação de políticas para preservação das áreas úmidas em planícies. Por quê?

Moisés Rehbein – São especialmente nessas formas de relevo em planícies que, pelo escoamento superficial da água, mas também em função do escoamento sub superficial e que sustenta o lençol freático, ocorrem os ambientes de áreas úmidas, os banhados e as várzeas.
Vou seguir usando a cidade de Pelotas como exemplo, pois compreende a minha área de estudos. Pelotas está localizada na confluência de imensos sistemas hidrológicos que drenam grandes áreas do RS e do Uruguai. O perímetro urbano de Pelotas está a jusante do rio Camaquã, na confluência da lagoa dos Patos e do Canal São Gonçalo que drena águas das bacias da lagoa Mirim e do rio Piratini. Em um contexto mais municipal/intermunicipal, podemos ainda lembrar das bacias e baixos cursos de, ao menos, quatro importantes arroios, como o arroio Pelotas. Ou seja, o que eu quero dizer com isso é que tem muita água, muita água escoando por Pelotas.

É importante também lembrar que essa água toda não escoa apenas pela superfície, ela também está escoando sub superficialmente, sem o alcance dos nossos olhos. Em muitos locais de Pelotas, sobretudo nas planícies, basta você cavar um pouquinho, alguns centímetros, e você vai ver água. É o que chamamos de lençol freático e que contribui para formação das áreas úmidas.

Nas áreas úmidas, encontramos os solos hidromórficos, os solos transformados e comumente saturados de água. Essas são áreas que sustentam ambientes de riquíssima biodiversidade, de fauna e flora. As áreas úmidas são ambientes que se integram às planícies dos arroios, rios, lagos, lagunas, etc. Esses ambientes são muito importantes no ciclo hidrológico porque nos momentos de maiores chuvas e vazões nos rios e lagos, essas são as áreas que vão amortecer as cheias, diminuir o alcance das inundações.

É comum aqui em Pelotas você ouvir as pessoas dizendo que a cidade está alagando porque foi construída em cima de banhados e isso é uma verdade, mas também é, sobretudo, pelas áreas úmidas que ainda estão preservadas que outros sítios urbanos, muito provavelmente, não inundaram. Para sorte de Pelotas, muitas das áreas úmidas do município vizinho, Rio Grande, nas proximidades da divisa com a cidade, ainda não foram ocupadas e é pra lá que um grande volume de água que escoa com dificuldade pelo Canal São Gonçalo, dadas as orientações do vento e do nível na laguna, estão fluindo. As diferentes filmagens de sobrevoos pela cidade de Pelotas, nesses últimos dias, têm revelado claramente isso.

Esponjas

As áreas úmidas, acho essa uma comparação didática, são como uma esponja, porque elas têm grande capacidade de reter água. Já faz um tempo que circula pela internet o conceito das cidades-esponja, cidades que entenderam a importância das áreas úmidas, transformando-as em parques (áreas de preservação) para ajudar no escoamento das águas nessas cidades, diminuindo os riscos de inundações. Ou ainda, poderia dizer que essas áreas úmidas funcionam como as bacias de contenção na engenharia, mas bem melhor que elas, porque estão em harmonia com a natureza ou operando em um equilíbrio dinâmico.

Em Pelotas, a cidade se desenvolveu e segue se desenvolvendo sobre essas esponjas que a natureza nos deu, aterrando elas, drenando elas e alterando o curso natural das águas que ocupavam esses ambientes. O que nós temos que pensar: com as mudanças climáticas serão cada vez mais recorrentes os eventos extremos, tanto de chuvas como de secas. As áreas úmidas têm a importante função de acumular esses excessos de água que estão escoando das chuvas volumosas e, quando ocorrem as secas, contribuem com esses acumulados de água para manter mais regular as vazões em nossos rios e lagos, assegurando-lhes a perenidade ou que eles não sequem.

Importância estratégica das áreas úmidas

Esta é a importância estratégica de preservamos essas áreas: para que tenhamos atenuadas as inundações e, ao mesmo tempo, tenhamos disponibilidade de recurso hídrico durante os períodos de estiagens prolongadas (para que tenhamos água para o abastecimento doméstico – para cozinhar, tomar banho, lavar roupas, para o abastecimento industrial e as atividades agrícolas).
A sociedade precisa mudar o seu olhar sobre esses ambientes e reconhecer que é urgente a implementação de políticas de preservação das áreas úmidas. Eu vejo essa como uma das mais importantes ações de curto prazo, especialmente para a cidade de Pelotas, no contexto das mudanças climáticas. Políticas que vão da educação ambiental a políticas de revisão do ordenamento territorial, como do plano diretor, por exemplo, considerando-se a preservação das áreas úmidas, dos banhados e várzeas que ainda restam em nossas cidades.

IHU – O que as suas pesquisas sobre os relevos de Pelotas indicam? Como eles podem orientar o planejamento dessa cidade?

Moisés Rehbein – O evento climático que nós estamos acompanhando neste momento não tem precedentes históricos, mas para os últimos milhares de anos (o que é pouquíssimo tempo no contexto cronológico geológico), nós identificamos diferentes depósitos sedimentares indicadores de avanços das águas sobre o continente. A origem das formas de relevo em planícies, terraços e dunas, mapeadas aqui em Pelotas, reforça isso. A área pela qual se expande a cidade de Pelotas já foi fundo de lago, já foi fundo de rio e isso está em trabalhos científicos publicados pela Geologia, pela Geografia e, possivelmente, por outras áreas do conhecimento, sobretudo geocientífico. Daí a importância de melhor compreendermos como se constituiu o relevo da nossa cidade, do nosso município e da nossa região, no sentido de pensarmos sobre a melhor forma de ocupação deles.

Tenho amigos que me chamavam de cientista do apocalipse, desses que aparecem em filmes de “fim do mundo”, porque anos atrás eu alertava a eles sobre a compra de imóveis em determinados bairros da cidade e eles me respondiam: “— Não, mas aqui é alto, não tem como inundar!” E eu dizia: “— Sim. É alto. São imóveis que estão em superfícies de relevos em terraços, mas as vias de acesso à esses bairros são em planícies fluviais e lagunar e essas vias de acesso podem inundar, tanto pelo avanço das águas do arroio Pelotas quanto da laguna dos Patos, e daí vocês vão ficar ‘ilhados’”. Dias atrás isso aconteceu. E só não foi pior, bem pior, porque não choveu na bacia de drenagem do arroio Pelotas. Imagine se nessa situação ainda tivéssemos uma chuva torrencial na bacia de drenagem desse arroio? Daí eles começaram a me chamar de vidente. Essa minha especulação de que eles poderiam ficar “ilhados” não vem de vozes do além ou da leitura de cartas! Melhor, vem da leitura de cartas, sim, mas da leitura de cartas topográficas e da construção de mapas do relevo que trazem informações sobre as origens e a evolução do modelado.

Planícies

Mais tecnicamente: as planícies, terraços e dunas aqui em Pelotas são relevos associados às regressões e transgressões marinhas, estão associados às alterações dos níveis de base da rede de drenagem continental, com alterações de perfis longitudinais, com alterações de capacidades e competências fluviais. As rupturas clinográficas (os aclives e declives) nas diferentes formas de relevo em Pelotas são marcadores no espaço e no tempo desses processos. Dinâmicas que estão intimamente associadas às mudanças climáticas no tempo pretérito e que, possivelmente, contribuíram para o derretimento de geleiras de altas altitudes e latitudes, aumento do nível dos oceanos e maiores volumes de água em movimentação no ciclo hidrológico.

É muito incrível e é muito triste ao mesmo tempo, mas ao assistir as diferentes filmagens de vídeos aéreos que chegam até mim, é como seu eu enxergasse uma espécie de “estreitamento entre o tempo geológico e o tempo histórico” aqui em Pelotas, pois é como se os processos associados às origens de certas formas de relevo e os processos atuais de formação de relevo estivessem se sobrepondo. Na pretensa modernidade, penso que estamos acelerando o aquecimento global e, com ele, acelerando, no espaço-tempo, os processos de formação do relevo, denudacionais e agradacionais.

Mas em suma, o que eu quero dizer com isso é que o relevo tem muita coisa para nos contar e, desse modo, orientar nossas tomadas de decisões, como na da expansão urbana. No trabalho de mapeamento geomorfológico que nós realizamos no âmbito do Laboratório de Estudos Aplicados em Geografia Física da UFPel, publicado na Revista Brasileira de Geomorfologia no ano de 2018, eu olho para as planícies que nós mapeamos e olho para as áreas de risco hidrológico divulgadas nessa semana pela prefeitura de Pelotas e é um “cópia e cola”.

Felizmente, ainda há bastante superfícies de planícies aqui em Pelotas que não foram urbanizadas e é muito importante nós discutirmos sobre o futuro delas, pois seguir aterrando e drenando as nossas esponjas naturais (os banhados e as várzeas) pode colocar uma maior população em situação de risco hidrológico, incluindo aquela população que já vive em áreas de planícies. E já é quase um terço da população da cidade, um terço, que está em área que apresenta algum risco hidrológico. E entendam que eu não estou falando de ocupações não planejadas. Estou falando, sobretudo, de ocupações pensadas e propostas, formalmente legalizadas, de terrenos e imóveis sujeitos ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e que incluem os m² caros da cidade.

A UFPel lançou um livro que subsidia a criação de uma Unidade de Conservação na área do perímetro urbano de Pelotas, chamada de Unidade de Conservação do Pontal da Barra. A criação dessa unidade de conservação é uma ação de curto prazo muito importante para mitigar os riscos e as inundações em diferentes sítios urbanos de Pelotas. Os pacotes de depósitos arenosos e as dunas que lá ocorrem são maravilhosos “aterros naturais” de alta permeabilidade e “diques naturais” que ajudam a conter o avanço das águas.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Moisés Rehbein – É um direito da população saber se está adquirindo terrenos ou imóveis em relevos que apresentam algum risco hidrológico, caso os sistemas de contenção nas inundações falhem, pois, os eventos extremos, ao que tudo indica, serão mais frequentes com o aquecimento global e as mudanças climáticas. Várias pessoas com quem conversei me disseram que jamais teriam comprado ou construído suas casas se soubessem que ela estava em uma área de risco, ainda que atenuada por estruturas de contenção às inundações.

Murar as nossas cidades com diques, realizar aterros e o uso de casas de bombas, o uso das engenharias de contenção às inundações, por exemplo, são medidas paliativas nesse contexto de mudanças climáticas. Ainda que os riscos sejam atenuados por intervenções de engenharias, não é possível seguir avançando a urbanização sobre os relevos que apresentam essa característica para ocupação.

Também não é mais possível que se sigam construindo infraestruturas que são vetores de expansão urbana, como os shoppings, por exemplo, assim como, os nossos hospitais, os principais modais de transporte, como aeroportos e vias de acesso terrestre, como importantes rodovias, as estações de tratamento de água, prédios públicos, enfim, qualquer infraestrutura estratégica para situações de desastres, sobre as formas de relevo que indiquem algum risco hidrológico ou geológico.

Nesse sentido, acredito que precisamos olhar para as formas de relevo e tentar entender o que essas formas nos dizem e como elas vão se comportar quando as suas superfícies forem alteradas por nossas ações, a exemplo da supressão das áreas úmidas em detrimento da expansão urbana, em contexto de mudanças climáticas.

Queria reforçar apelos que acho muito importantes. Não vamos naturalizar mais esse desastre. Fala-se que esse é um desastre natural, mas eu me somo àqueles que dizem que esse é um desastre social, uma tragédia resultado de sucessivos desmontes das políticas ambientais para atender demandas particulares, por meio da flexibilização do uso e ocupação da terra nas áreas urbanas e também nas rurais. Nesse contexto de mudanças climáticas, flexibilizar a legislação ambiental sem a concordância daqueles que pesquisam sobre o meio ambiente é igualmente um ato de negacionismo científico.

Políticas sociais

Igualmente importante: não nos esqueçamos que concomitante ao desenvolvimento de políticas ambientais também temos que pensar no desenvolvimento das políticas sociais, como das habitacionais, pois muitas pessoas que ocupam as áreas de risco, sujeitas a escorregamentos ou inundações, constroem sobre elas por falta de opção.

Para Pelotas, a cidade não deve seguir expandindo sobre as formas de relevo que vão colocar em situação de risco hidrológico a sua população. É preciso garantir a integridade das superfícies em planícies que ainda não foram ocupadas pela urbanização. De modo mais geral, acredito que nós precisamos promover a preservação das áreas úmidas e também das florestas porque sem elas, em tempos de mudanças climáticas, nossas cidades estão inundando e ou vão inundar. Chovendo no molhado, ou melhor, chovendo no banhado: é urgente ouvir a ciência no planejamento urbano e rural! Neste momento, desejo que sejamos unidos, solidários, mas também críticos.

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