04 Junho 2008
“As evidências que temos diante dos nossos olhos indicam que é mais razoável crer que o mundo não foi criado por nenhum deus. Se, de qualquer forma insistimos em acreditar na criação divina, nos vemos obrigados a admitir que o deus que criou o mundo não pode ser todo-poderoso e absolutamente bom”, conclui Peter Singer seu raciocínio. Neste artigo, Singer repassa os argumentos apresentados para explicar a existência do sofrimento a partir de um Deus “todo-poderoso, onisciente e absolutamente bom”. Peter Singer é professor de bioética na Universidade de Princeton e grande defensor dos “direitos dos animais”.
Segue a íntegra do artigo de Peter Singer publicado no El País, 01-06-2008. A tradução é do Cepat.
Vivemos num mundo criado por um deus todo-poderoso, onisciente e absolutamente bom? Os cristãos acreditam que sim. Não obstante, todos os dias nos defrontamos com um motivo poderoso para duvidar disso: no mundo há muita dor e sofrimento. Se Deus é onisciente, sabe quanto sofrimento há. Se é todo-poderoso, poderia ter criado um mundo sem tanta dor, e o teria feito se fosse absolutamente bom.
Os cristãos geralmente respondem que Deus nos concedeu o dom do livre arbítrio, e, portanto, não é responsável pelo mal que fazemos. Mas esta resposta não leva em conta o sofrimento daqueles que se afogam nas enchentes, se queimam vivos em incêndios florestais provocados por um raio ou morrem de fome ou sede durante uma seca.
Os cristãos tratam de explicar este sofrimento dizendo que todos os seres humanos são pecadores e merecem sua sorte, por espantosa que seja. Mas os bebês e as crianças têm as mesmas probabilidades que os adultos de sofrer e morrer em desastres naturais e parece impossível que o mereçam.
Uma vez mais, alguns cristãos sustentam que todos herdamos o pecado original cometido por Eva, que desafiou o decreto de Deus de não comer da árvore do conhecimento. Esta é uma idéia repelente por um tríplice princípio, já que implica que o conhecimento é mau, que desobedecer a vontade de Deus é o maior de todos os pecados e que as crianças herdam os pecados de seus antepassados e podem ser justamente castigados por eles.
Ainda que aceitássemos tudo isso, o problema continua sem solução. Os animais também sofrem por causa das inundações, incêndios e secas e, posto que não descendem de Adão e Eva, não podem ter herdado o pecado original.
Em tempos passados, quando o pecado era levado mais a sério do que hoje, o sofrimento dos animais colocava um problema particularmente difícil aos pensadores cristãos. O filósofo francês do século XVII, RenéDescartes, o resolveu mediante o drástico recurso de negar que os animais possam sofrer. Sustentava que os animais eram simplesmente mecanismos engenhosos e que não se devia tomar seus chiados contorções como sinal de dor, da mesma maneira que não se toma o barulho de um relógio despertador como sinal de que tem consciência. É pouco provável que pessoas que têm um gato ou um cachorro achem esse argumento convincente.
No mês passado, na Universidade de Biola, uma escola cristã no sul da Califórnia, debati a existência de Deus com o comentarista conservador Dinesh D’Souza. Nos últimos meses, D’Souza insistiu em discutir com ateus proeminentes, mas também a ele custou trabalho para encontrar uma resposta convincente para o problema que descrevi.
Primeiro disse que, posto que os seres humanos podem viver eternamente no céu, o sofrimento deste mundo é menos importante que se a nossa vida neste mundo fosse a única que tivéssemos. Isso continua sem explicar por que um deus todo-poderoso e absolutamente bom o permitiria. Por insignificante que seja este sofrimento desde a perspectiva da eternidade, o mundo estaria melhor sem ele, ou ao menos sem a maior parte dele. (Algumas pessoas afirmam que necessitamos de um pouco de sofrimento para apreciar o que é ser feliz. Talvez, mas certamente não necessitamos de tanto.)
Na seqüência, D’Souza aduziu que como Deus nos deu a vida, não estamos em condições de nos queixar por sua imperfeição. Utilizou o exemplo de uma criança nascida sem uma perna. Disse que se a vida em si mesma é um dom, não faz mal se recebemos menos do que poderíamos desejar. Em resposta, assinalei que nós condenamos as mães que prejudicam seus bebês mediante o uso de álcool ou cocaína durante a gravidez. Não obstante, já que dão a vida aos seus filhos, parece que, segundo a opinião de D’Souza, o que fazem não tem nada de mau.
Por último, D’Souza recorreu, como o fazem muitos cristãos quando se sentem pressionados, à afirmação de que não podemos esperar entender os motivos de Deus para criar o mundo assim como é. É como se uma formiga tratasse de entender nossas decisões, por mais insignificante que possa ser a nossa inteligência em comparação com a infinita sabedoria de Deus. (Esta é a resposta que se dá de forma poética no Livro de Jó.) Mas, uma vez que abdicamos assim de nossa capacidade de raciocínio, bem, podemos crer em qualquer coisa.
Além disso, a afirmação de que nossa inteligência é insignificante em comparação com a de Deus pressupõe exatamente o ponto que se está debatendo: que existe um deus onisciente, onipotente e absolutamente bom. As evidências que temos diante dos nossos olhos indicam que é mais razoável crer que o mundo não foi criado por nenhum deus. Se, de qualquer forma insistimos em acreditar na criação divina, nos vemos obrigados a admitir que o deus que criou o mundo não pode ser todo-poderoso e absolutamente bom. Ou é malvado ou não é muito hábil.
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O Deus do sofrimento? Artigo de Peter Singer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU