21 Mai 2024
Por alguns dias pareceu que a desgraça ao menos teria um lado positivo. A enchente mais extensa da história do Brasil, que arrasou o Rio Grande do Sul, matando pelo menos 151 pessoas, fez a opinião pública brasileira finalmente descobrir que estamos numa crise climática. Imprensa e formadores de opinião também se deram conta de que os ataques do Congresso e à legislação ambiental prejudicaram o RS e reduzem a resiliência do Brasil. O “Pacote da Destruição”, conjunto de quase 30 projetos de lei e PECs para arrasar o meio ambiente e os direitos indígenas caiu na boca do povo.
O artigo é publicado por Observatório do Clima, 20-05-2024.
Um senador que queria aprovar a legalização do desmatamento na Amazônia na semana em que o país se mobilizava para mandar ajuda aos gaúchos inventou uma dor de barriga e não apareceu no Congresso. Um PL sobre adaptação climática passou na CCJ do Senado. Um acossado Rodrigo Pacheco chamou Anitta para conversar.
Mas seria esperar demais de um país que criou toda uma cultura política baseada em kit gay e mamadeira de piroca que de repente o senador Heinze e o deputado Alceu Moreira entendessem que as leis que eles defendem ameaçam a vida dos eleitores deles e que a atmosfera não tem partido.
Além de tentar minar os esforços de resgate espalhando fake news sobre uma população fragilizada, a direita bolsonarista segue negando o aquecimento global. Negacionistas da pandemia e do clima, como o notório Eduardo Girão (Novo-CE) e Rogério Marinho (PL-RN), votaram contra o PL de adaptação, este alegando ainda que a reconstrução do RS demandaria flexibilizar o licenciamento ambiental. O imperador Arthur Lira, depois de bloquear Anitta no Instagram, formou uma comissão só com deputados pró-garimpo para “investigar” as violações no território yanomami. E mais de um vereador gaúcho andou dizendo por aí que árvore piora enxurrada “porque faz peso no solo”. Sério.
É evidentemente cedo ainda para saber como a catástrofe sulina mexerá com a política e a política ambiental – a chuva continua caindo, o frio está chegando e no sudeste do estado as águas estão subindo em vez de baixar. Uma coisa, porém, parece provável: a liderança do Brasil como presidente da COP30, ano que vem, dependerá em muito da reação de Executivo e Parlamento à enchente.
Em algum momento a enchente vai retroceder no Rio Grande do Sul, e muita coisa precisará ser feita para recuperar o estado. Mas tudo terá que levar em consideração o cenário de mudanças climáticas. Não dá mais para fingir que o clima não mudou. Veja oito pontos em que especialistas recomendam ficar de olho sobre o processo de reconstrução.
É consenso entre especialistas: não é possível reconstruir ou projetar infraestruturas de qualquer tipo olhando para o passado. O clima continuará mudando nos próximos anos, mesmo se parássemos hoje de emitir gases-estufa. É preciso planejar estruturas adequadas a esse novo cenário, o que vale para casas, edifícios, espaços comunitários, estradas, infraestruturas urbanas e rurais, sistemas de transporte, equipamentos de saúde e outros, que precisam ser preparadas para choques e efeitos de longo prazo do “novo normal”, além de ter capacidade de rápida reconstrução em caso de desastres. Para criar resiliência a ondas de calor, tempestades, enchentes, secas, frio intenso, aumento do nível do mar, ventos fortes e outros extremos, as chamadas soluções baseadas na natureza são indispensáveis, como aponta o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - Pnuma.
Walter Collischonn, hidrólogo e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, destaca que a reconstrução do estado exigirá a mobilização de cientistas, com dados e estudos aprofundados. Ele exemplifica com a análise topográfica de terrenos, explicando que, em Porto Alegre, a disponibilidade de dados permitiu a projeção de áreas afetadas em caso de falha do sistema de proteção hidráulica. “Fizemos mapas rapidamente indicando quais seriam as profundidades da água em caso de falha do sistema de proteção, para diversos bairros e o aeroporto. Decisões foram tomadas. (…) Mas, para Canoas, a gente não tinha essa informação de topografia de alta resolução disponível. A reconstrução vai exigir essa informação bem detalhada”, diz.
Em nota publicada no dia 2 de maio, o Instituto de Arquitetos do Brasil, escritório do Rio Grande do Sul, ressaltou que é necessária a elaboração de planos setoriais como os de Drenagem Urbana e de Ação Climática em diálogo com os Planos Diretores. Um problema é que nem sempre o documento que fixa regras e estratégias de planejamento para o município considera ações que podem ser intensificadas por eventos extremos. Um exemplo é a revisão do plano diretor de Porto Alegre, que não considerou cheias no Guaíba. Os debates para a publicação da nova versão devem ser retomados no fim do ano, após a eleição municipal. “Entender a realidade urbana sob os efeitos da crise climática é imperativo. O planejamento e a legislação devem acompanhar a realidade que se apresenta, de modo a mitigá-la e transformá-la”, diz a nota.
Um estudo publicado pelo Instituto Escolhas em setembro de 2023 mostra que o Rio Grande do Sul teria 1,16 milhão de hectares em áreas de preservação permanente e reservas legais, sendo 64,5% do bioma Pampa e 35,5% da Mata Atlântica, para serem recuperadas.
As chuvas prejudicaram de plantações de arroz a hortaliças, impactando sobretudo produtores familiares, mas o prejuízo vai além da perda de uma safra. O engenheiro agrônomo Eduardo Trevisan, diretor de ESG e Certificações do Imaflora, explica que as fortes chuvas afetam a fertilidade do solo. Isso significa que os agricultores terão que recuperar os nutrientes da terra. Alguns também terão que começar a plantar em uma área com menos risco de alagamento. Quem perdeu infraestrutura para estoque ou criação de animais terá que reconstruir espaços adaptados para escapar da água.
“O produtor vai precisar de assessoria técnica do poder público para que possa, além de decidir quais são as melhores áreas para reconstruir as propriedades etc., saber também quais práticas devem adotar para recuperar o solo. Isso tudo vai ser fundamental . O apoio da iniciativa privada também”, diz Trevisan. Também diz que será preciso uma comunicação efetiva para que as informações cheguem aos produtores, inclusive sobre a preservação de áreas de conservação.
Em nota publicada em 2 de maio, o Instituto de Arquitetos do Brasil, escritório do Rio Grande do Sul, ressaltou que é essencial colocar em prática os Planos de Ação de Bacias Hidrográficas para gestão das águas, desenvolvidos a partir da Lei 10.350/1994. A lei instituiu o Sistema Estadual de Gestão das Águas do Rio Grande do Sul, que nunca foi plenamente implementado. O agrônomo e ecologista Arno Kayser, fundador do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos - Comitesino, avalia que as lacunas na implementação do Sistema agravam os efeitos das tragédias climáticas no estado.
Em entrevista ao site Sul 21, ele explica que o Sistema prevê a definição de prioridades a partir de estudos técnicos e participação das comunidades. Construções de diques, barragens, comportas, distribuição de água e resposta a desastres seriam, assim, planejados de forma integrada. “Os eventos extremos representam um novo desafio para a gestão das águas. Especialmente a tomada de medidas para prevenir as secas como também as enchentes. Mas também para gerenciar a distribuição de água para a população e para os agentes econômicos e ainda dar parâmetros para o sistema de proteção ambiental controlar a poluição”.
O sociólogo Victor Marchezini, coordenador do Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos-COPE no Cemaden, diz que é essencial que os governos federal, estadual e municipais mantenham um portal da transparência atualizado para que a sociedade saiba o que está sendo feito com o dinheiro destinado à reconstrução, inclusive os valores vindos de doações.
Segundo Marchezini, precisamos de políticas públicas para construir sistemas de alerta de acordo com as necessidades das pessoas. O sociólogo destaca quatro eixos fundamentais para a criação de mecanismos. O primeiro consiste em conhecer as ameaças (inundações, ondas de calor etc.) e as vulnerabilidades dos territórios. O segundo é capacitar os municípios para que saibam monitorar. O terceiro está relacionado à educação. O quarto eixo é a capacidade de resposta do alerta. Marchezini explica que o alerta precisa ser explicativo. “Ao receber as informações, o que fazer? É complementar aquela recomendação para buscar um abrigo seguro. Mas onde está esse abrigo seguro? Para onde eu vou? Onde é a rota de evacuação?” Marchezini recomenda aos gestores públicos a leitura de um artigo sobre alertas centrados nas pessoas.
Uma ação essencial para que a reconstrução do Rio Grande do Sul não reproduza as vulnerabilidades do território e a degradação ambiental de antes do evento extremo é escutar as demandas de diferentes grupos sociais atingidos pelas chuvas. De acordo com Victor Marchezini, para isso é fundamental que sejam discutidos mecanismos para a realização de audiências públicas. “É importante monitorar em que medida o estado e os municípios vão criar esses processos de envolvimento das pessoas atingidas uma vez que são necessários mecanismos para evitar que alguns grupos sejam favorecidos no que é chamado de indústria do desastre ou capitalismo do desastre”, diz Marchezini.
O sociólogo também destaca a necessidade da formação de associações de afetados para que possa garantir um “peso político maior nas rodadas de discussão pública sobre os rumos do processo de reconstrução e recuperação do desastre”. É importante também garantir a participação de universidades e instituições de ciências e tecnologia dos governos federal e estadual. “O apoio que o governo federal e o estadual precisam ofertar aos municípios não se resume a recursos financeiros, mas também a um apoio científico”, diz.
Um levantamento do Observatório do Clima mostrou que há ao menos 25 projetos de lei (PLs) e três propostas de emenda à Constituição (PECs) que ameaçam gravemente os direitos socioambientais tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Se aprovados, os projetos do Pacote da Destruição causarão dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão, abrindo caminho para mais tragédias como a do Rio Grande do Sul. Como contou o repórter Marcelo Canellas, a catástrofe atual parece não constranger os autores das propostas, como o deputado Alceu Moreira (PMDB/RS) – autor do PL que tira a proteção de áreas não florestais, expondo milhões de hectares do Pampa, do Pantanal e do Cerrado à devastação –, e o senador Jaime Bagattoli (PL/RO) – que propôs a redução da área de reserva legal das propriedades na Amazônia dos atuais 80% para 50%.
Falando em Pacote da Destruição, foi por pouco que um de seus projetos não foi pautado no Senado nos últimos dias, mesmo diante da catástrofe no Rio Grande do Sul. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa pretendia avaliar justamente o projeto de lei 3.334/23, do ruralista Jaime Bagattoli (PL-RO), que expõe 28,17 milhões de hectares (ou 281.661 km²) de áreas de floresta na Amazônia legal ao desmate. O PL tem parecer favorável do relator, o também ruralista Marcio Bittar (União-AC), que alegou questões de saúde e não compareceu à sessão. O texto modifica o Código Florestal e permite a redução da reserva legal de imóveis rurais em áreas de floresta na Amazônia dos atuais 80% para 50%. As novas regras liberariam para desmatamento uma área equivalente a todo o estado do Rio Grande do Sul , segundo Nota Técnica do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
O presidente da Câmara dos Deputados é outro que segue sem constrangimento atuando contra direitos socioambientais. Na segunda-feira (13-05), Arthur Lira instalou a comissão externa que participará da investigação sobre a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, em Roraima e Amazonas. O requinte de crueldade: 14, dos 15 membros designados, são deputados bolsonaristas, ruralistas, pró-garimpo e defensores do infame Marco Temporal. Como relatou O Eco, a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), criticou a escolha dos integrantes da comissão.
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8 pontos a observar na reconstrução do RS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU