Por: Lucas Schardong e Marilene Maia | 06 Novembro 2019
Cerca de 2,2 bilhões de pessoas no mundo não têm serviços de água potável gerenciados de forma segura, equivalente a um em cada três habitantes do planeta, segundo dados da Organização Mundial da Saúde - OMS e do Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF. Desde 2011, o acesso à água potável e saneamento básico foram instituídos como direitos fundamentais, garantidores da vida e da dignidade da pessoa humana. Apesar deste fundamento ter sido aprovado em votação na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas - ONU, a realidade no Brasil é muito diferente do que designa a lei, principalmente quando falamos das populações que vivem em situação de vulnerabilidade.
Esse é o caso das 208 famílias que residem na Ocupação Steigleder. Todos os dias elas enfrentavam um trajeto de quase 2 km para buscar água e poder beber e também realizar tarefas básicas, como cozinhar, tomar banho e lavar as roupas. Não bastasse essa dificuldade toda, a água recolhida vem de uma mangueira improvisada com apoio da comunidade vizinha e é preciso revezar a coleta. Isso tudo se agrava com o fato dos moradores da Steigleder não terem nenhum tipo de acesso a saneamento básico e, consequentemente, viverem em condições insalubres. Depois de muita luta, apenas há três dias foi instalado um sistema de encanamento, mas que ainda não serve água potável, somente para lavagem.
A maioria das famílias que moram na Ocupação Steigleder sustenta-se trabalhando como catadores de resíduos, o que proporciona uma renda extremamente baixa e insuficiente para proporcionar o seu sustento. Algumas das famílias são beneficiárias do Programa Bolsa Família, que vem sofrendo cortes arbitrária e sistematicamente, deixando muitas delas em desalento.
Um dos moradores e líder da comunidade, Cléber dos Santos Martins, conta que o terreno ocupado não estava cumprindo função social, ou seja, sem servir de moradia ou espaço para empreendimentos. “Nós chegamos aqui e era uma terra sem vida. Nós demos vida a esse lugar, com as nossas casas e famílias. Nós também rodamos o comércio da região, consumindo os produtos que são vendidos perto daqui”.
Cléber explica que a luta dos moradores é por regularizar a ocupação e pagar pelos serviços públicos que deveriam estar sendo prestados. “Nós não optamos por isso. Se nós tivéssemos condição de comprar um terreno e construir uma casa, nós faríamos isso, mas nós não temos essa escolha”, revela. Ainda sobre os programas, ele fala: “Não existir programas como Minha Casa Minha Vida e Bolsa Família significa nós estarmos no meio da rua”.
Um dos movimentos realizados para conhecer a situação das ocupações em São Leopoldo e apoiar a luta pela garantia da moradia no município foi a Missão pela Moradia Digna, que ocorreu no mês de março. A Missão foi assumida por um coletivo de entidades: Unisinos, Instituto Humanitas Unisinos - IHU, CDES Direitos Humanos, Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM, Missionárias do Cristo Ressuscitado - MCR, Engenheiros Sem Fronteira Unisinos - ESF, Conselho Estadual de Direitos Humanos - RS e tem inspiração nas missões realizadas pela ONU. Ela foi dividida em três momentos: visita e diagnóstico sobre a situação de quatro ocupações urbanas, com a identificação das situações de violação de direitos; visita às autoridades dos poderes legislativo, executivo e judiciário do município de São Leopoldo que deveriam garantir os direitos; e Audiência Pública com a participação de todos os envolvidos neste processo: comunidades, autoridades e comunidade acadêmica.
Em continuidade à Missão pela Moradia Digna, assumida por diversas instâncias da Unisinos, estiveram reunidos na Ocupação Steigleder, no final de setembro, alunos, egressos e professores dos cursos de Arquitetura, Jornalismo, Serviço Social, Engenharia, Direito e Administração – Gestão de Inovação e Liderança.
Na ocasião, ocorreu a entrega de dois produtos, que resultaram do trabalho conjunto da comunidade com a Universidade. Um deles foi o cadastramento das famílias moradoras na Ocupação, que resultou do mutirão realizado também com as participações das Secretarias Municipais de Habitação e de Desenvolvimento Social. A outra entrega foi a cartilha com o projeto de construção de uma Tenda, demandada pela comunidade, como espaço coletivo para reuniões, formação, trabalho e proteção em situação de necessidades.
Além disso, uma turma do curso de Jornalismo da Unisinos participou da atividade, com apresentação de oficinas sobre fotografia e formas de comunicação, que serão realizadas na Ocupação, indicando a qualificação dos processos de informação da comunidade interna e externamente. A intenção também é que a produção de entrevistas e capturas de som realizadas nas visitas se tornarão podcasts para complementar o trabalho da turma.
O impacto desta presença e produção transdisciplinar para a Ocupação Steigleder é constatada pelos moradores. Como diz Altair José Silva: “nós não pedimos caridade, nós queremos ajuda de vocês para ter mais conhecimento e podermos buscar os nossos direitos com propriedade”. E essa luta feita por diversas frentes faz com que os ocupantes tenham esperança e força para continuar buscando o seu direito por melhorias na comunidade. Como afirma Cléber dos Santos, que vê como positivo morar na Ocupação. “O bom de morar aqui é que nós temos um teto sobre as nossas cabeças. Ou é esse teto, que é totalmente precário, ou é a rua, sem termos onde deixar nossas crianças”, revela.
A identificação do número e da caracterização de todas as famílias moradoras da Ocupação foi constituída como demanda dos processos de mediação realizada pelo Judiciário de São Leopoldo, junto à comunidade e à família proprietária das terras. Esses dados também eram de interesse das lideranças da Ocupação para sua melhor organização e acompanhamento das famílias, em vista das lutas pelo direito à moradia e demais direitos sociais.
O cadastramento foi assumido coletivamente pelas lideranças, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia, pelas Secretarias de Habitação e de Desenvolvimento Social e pela Unisinos. O trabalho iniciou com a definição das questões constitutivas do Cadastro. Seguida pelo mutirão de visitação a todas as famílias e domicílios, com a feitura do questionário.
Essa ação foi realizada nos meses de julho e agosto. As/os acadêmicas/os de Serviço Social e pós-graduandos da especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas, assim como em Residência em Saúde, realizaram a tabulação dos dados, que foram apresentados e discutidos com lideranças em dois momentos, em vista do seu monitoramento e análise.
A comunidade moradora da Ocupação é formada por 208 famílias. Para a estudante de Serviço Social, Natiele Quevedo da Silva, a experiência enquanto aluna foi bastante importante para a realização pessoal e formação profissional. “Eu já conhecia a história da Ocupação antes, mas o cadastro possibilitou dar rosto e voz para as pessoas que foram cadastradas, enxergar essa realidade e relacionar a teoria com a prática”, revela.
O cadastramento realizado subsidiou o trabalho da Secretaria de Desenvolvimento Social, que assumiu, por meio do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS da região, o acompanhamento mais direto às famílias com maiores demandas pela vulnerabilidade social.
Também foi entregue nesta etapa da Missão pela Moradia Digna a Cartilha de Tecnologias Sociais: estratégias para centros comunitários de bairro. Esta Cartilha é resultado da aproximação realizada pelas acadêmicas, egressas e professoras do curso de Arquitetura, que promoveram sucessivas aproximações com a comunidade e suas lideranças, em vista da concepção e projeção de um Galpão Comunitário, que foi por eles demandado desde os primeiros encontros da Universidade com a comunidade. Na Cartilha estão indicadas possíveis soluções para as demandas comunitárias identificadas por meio de processos participativos e de aprendizagem colaborativa.
Assim, desenvolveram-se habilidades e competências para a aprendizagem na ação de processos de autoconstrução assistida de espaços arquitetônicos flexíveis às demandas comunitárias. A Cartilha se deu em três etapas:
1ª etapa: Sistematização de requisitos técnicos e das demandas dos usuários com a idealização conjunta de oficinas de aprendizagem colaborativa;
2ª etapa: Produção de oficinas de aprendizagem para a construção colaborativa de tecnologias sociais e estratégias de projeto de Centros Comunitários e equipamentos para geração de renda;
3ª etapa: Desenvolvimento de uma cartilha com tecnologias sociais para a construção de Centros comunitários.
Com o material elaborado, participantes do projeto Engenheiros Sem Fronteiras - ESF poderão desenvolver os projetos técnicos necessários para a construção da Tenda, que será um espaço de encontro para discutir estratégias, demandas e perspectivas para a Ocupação Steigleder. Além da elaboração da Arquitetura, que fez o projeto, e o núcleo Unisinos dos Engenheiros Sem Fronteiras, que assumirão a obra de construção da Tenda e a elaboração dos projetos complementares, também haverá coparticipação dos alunos do curso de Administração – Gestão de Inovação e Liderança, que assumiu a viabilização do projeto de captação de recursos para a construção do Galpão.
A turma de Gestão de Inovação e Liderança teve a inserção no mutirão a partir de duas oficinas: Liderança e Projeto Social. Assim, abre um espaço novo para o desenvolvimento de competências do curso em conjunto com a construção de um pensamento crítico e um novo olhar sobre o mundo, refletindo o seu futuro como gestores. A ideia é que o projeto continue integrando o currículo, mesmo após o término da participação destes alunos.
Os alunos se organizaram em três frentes para realizar esta captação. Uma delas é responsável por arrecadar os recursos financeiros, outra pelos materiais que serão utilizados na construção e a última pela utilização das redes sociais para dar visibilidade ao projeto. Todos os grupos estão em parceria e servirão de subsídio para o planejamento dos Engenheiros Sem Fronteiras - ESF.
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A transdisciplinaridade pela moradia digna na Ocupação Steigleder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU