Comitês de Bacias Hidrográficas estão abandonados. Entrevista especial com Sérgio Cardoso, Viviane Feijó Machado, Valéria Borges Vaz e Rafael José Altenhofen

Representantes dos Comitês de Bacias Hidrográficas analisam a gestão dos recursos hídricos no Rio Grande do Sul em um contexto de mudanças climáticas

Foto: Prefeitura de Canoas

Por: João Vitor Santos | Edição: Patrícia Fachin | 08 Novembro 2023

Após os eventos climáticos extremos ocorridos no Rio Grande do Sul nos últimos meses, o Sindicato dos Engenheiros no Rio Grande do Sul (Senge-RS) criticou publicamente o sucateamento da estrutura do Estado, como os Comitês de Bacias Hidrográficas. Em nota, o sindicato disse que “transformar em sucata a estrutura do Estado é uma prática ainda mais inexplicável quando do enfrentamento de calamidades climáticas”.

Para refletir sobre a atual situação e o enfrentamento dos efeitos dos eventos climáticos extremos, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU entrevistou por e-mail os representantes de alguns comitês do RS.

Para Sérgio Cardoso, presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Gravataí, “pensar com uma visão regional e de longo prazo não está na cultura do Rio Grande do Sul nem na do Brasil. O enfraquecimento dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes) e dos Comitês de Bacia, como espaços democráticos da política pública, está enraizado no medo de construção coletiva e democrática de acesso aos bens difusos, onde o mais importante não está subjugado puramente a uma visão monetária de seus atores”.

Viviane Feijó Machado, presidente do Comitê Sinos, explica que os Comitês de Bacias Hidrográficas do Estado fazem parte do Sistema Estadual de Gestão de Recursos Hídricos e “são fundamentais para a gestão democrática, pois são órgãos deliberativos que, através das entidades que os compõem e das discussões realizadas, promovem as políticas públicas para a gestão das águas, buscando a garantia da quantidade e da qualidade de água para os usos múltiplos”.

Valéria Borges Vaz, do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo, destaca que “os Comitês de Bacias, ao longo dos anos, têm gastado muita energia, tentando mostrar a importância da sua função e do quanto podem e devem fazer pela gestão das águas no Rio Grande do Sul”. Na avaliação dela, atualmente “se faz necessário o entendimento político da função dos Comitês de Bacias”.

Rafael José Altenhofen, presidente do Comitê Caí, ressalta que “as recentes ações do governo estadual em resposta às catástrofes ambientais ocorridas em junho e setembro de 2023 também se deram com pouca ou nenhuma interface com os comitês de bacia, como é o caso da bacia Caí”.

Dilton de Castro, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí, destaca que ações de mitigação à crise climática e desastres ambientais não podem ser feitas no plano das bacias, pois este é um problema global. Entretanto, menciona, "alguns temas definidos no plano de bacia, como a restauração de matas ciliares, proteção de nascentes e recargas hídricas são pontos de sinergia para que se minimize a ocorrência de desastres socioambientais".

Por sua vez, Christian Linck da Luz, secretário executivo do Conselho da Bacia Hidrográfica do Rio Mampituba, pontua que "com a desmobilização gerada nos comitês nos últimos anos (dos 25 comitês, 3 já fecharam e outros estão há, no mínimo, três anos sem nenhum recurso para manutenção) pelos governos, é muito difícil fazer uma mobilização eficiente e atraente. Recentemente foi aprovado o Plano de Governo para as Mudanças Climáticas, mas daí ficamos nos perguntando quando falam em 'descarbonização', onde, efetivamente, encontraremos soluções".

A seguir, os entrevistados comentam a situação dos respectivos comitês e destacam os desafios e perspectivas das instituições no atual contexto de mudanças climáticas.

Confira as entrevistas.

Sérgio Cardoso preside o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí. Geólogo, também é membro da Câmara Técnica de Água Subterrânea do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul, da Câmara de Gestão do Guaíba, que integra o Conselho da Área de Preservação Permanente (APA) do Banhado Grande.


Sérgio Cardoso (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Sérgio Cardoso – Somos um país federado. Nascemos em um município e na nossa certidão consta identificado o município/estado. Nos organizamos por município nas políticas públicas. Elegemos vereadores, deputados, prefeitos, governador e presidente, sempre na lógica municipal. Pensar com uma visão regional e de longo prazo não está na cultura do Rio Grande do Sul nem na do Brasil. Após a Constituição de 1989, o estado foi esquartejado com aproximadamente mais de 180 novos municípios e tantas dezenas de novos prefeitos e centenas de vereadores entre 1989 e 1996. Na Constituição de 1989, tentou-se regionalizar o macroplanejamento para que o estado tivesse maior funcionalidade, ou seja, pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes), agregados de municípios, ou pelos Comitês de Bacias, agregando as mesmas águas dentro de um mesmo território.

A sociedade gaúcha fracassou nos dois modelos de construção coletiva, os Coredes e os comitês. A fragmentação do estado na implantação das políticas públicas só tem um ganhador, o caos institucional que vivemos atualmente, tendo como pano de fundo as mudanças climáticas, que encontram uma sociedade desorganizada para fazer o enfrentamento.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Sérgio Cardoso – Ao analisar a composição interna dos Comitês de Bacias, percebemos que eles não foram extintos graças à desorganização dos governos estaduais e também municipais, que se renovam geralmente de quatro em quatro anos com visões curtas, puramente eleitoreiras de permanência de poder, sem visão de Estado, que deveria atender aos interesses da maioria da população, preservando os bens coletivos, a exemplo bens naturais.

O enfraquecimento dos Coredes e dos Comitês de Bacia, como espaços democráticos da política pública, está enraizado no medo de construção coletiva e democrática de acesso aos bens difusos, onde o mais importante não está subjugado puramente a uma visão monetária de seus atores.

Manterem esses espaços puramente de figurino, sem funcionalidade, também é para atender a um grande equívoco de iniciarmos o mundo de quatro em quatro anos, ou de dois em dois anos, com uma troca de gestores políticos que não passariam, muitas vezes, no teste do pezinho sem sofrer qualquer tratamento – imaginem admitirem que a ciência tem que ser uma prioridade nas suas definições político-administrativas.

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Sérgio Cardoso – Os Comitês de Bacias são colegiados compostos por entidades públicas e privadas que devem buscar a valorização da construção coletiva em detrimento do individual, muitas vezes puramente setorial e com visão apequenada de participação social. Está provado que a representatividade de nossos vereadores e deputados deve ser fortalecida ao longo do período de gestão de construção coletiva dos conselhos municipais setoriais ou regionais para a tomada de definição do uso dos bens que são de todos, como o ar e a água superficial ou subterrânea.

Estimular a organização das associações de moradores, sindicatos, ONGs, partidos políticos com respeito à diversidade é fundamental para que tenhamos uma representação regional nos Comitês de Bacias e para que fortaleçamos o discurso de que as pessoas devem ser situadas também dentro de uma bacia X ou Y, e que este é seu território de organização social e democrática no Brasil e, em breve, no mundo.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Sérgio Cardoso – Deveríamos ter regras de transição entre os governos, com isso evitando a descontinuidade de muitas políticas públicas que, às vezes, dão certo e não deveriam ser abandonadas em nome da terra arrasada que, de maneira proposital, é abordada. Nem sempre os melhores gestores são escolhidos para cuidarem dos interesses coletivos, fazendo da gestão estatal um grande laboratório, no qual a população mais carente é a mais prejudicada, inclusive no acesso à água e ao saneamento.

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Viviane Feijó Machado é graduada em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É servidora pública, atuando como Operadora de Tratamento de Água no Serviço Municipal de Água e Esgotos de São Leopoldo (Semae). Preside o Comitesinos, um dos comitês de bacias hidrográficas pioneiros no RS.


Viviane Machado (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Viviane Feijó Machado – Os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs) fazem parte do Sistema Estadual de Gestão de Recursos Hídricos. São fundamentais para a gestão democrática, pois são órgãos deliberativos que, através das entidades que os compõem e das discussões realizadas, promovem as políticas públicas para a gestão das águas, buscando a garantia da quantidade e da qualidade de água para os usos múltiplos.

Os CBHs buscam a preservação do recurso hídrico. A atuação deles é para garantir a quantidade e a qualidade de água para seus usuários e a vazão ecológica necessária para a preservação da vida aquática, mas também para a proteção desse recurso fundamental para a sobrevivência dos seres vivos. Os temas debatidos nas plenárias dos comitês estão totalmente relacionados com a resiliência necessária para o enfrentamento às mudanças climáticas. Posso citar alguns: recomposição de mata ciliar, proteção de nascentes e de banhados, importância da planície de inundação ser respeitada pelos planos diretores municipais etc. No aniversário de 35 anos (17-03-2023) do Comitesinos, fizemos, em parceria com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o I Simpósio de Manejo de Bacias Hidrográficas e Mudanças Climáticas, cujos temas apontados no título do evento foram relacionados. Inclusive há um vídeo do pesquisador Carlos Nobre que pode ser acessado em nosso site (abaixo). Ele aborda o tema com ênfase no RS.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Viviane Feijó Machado – A composição dos CBHs tem a relação de 40% de representantes de usuários, 40% de representantes da sociedade civil e 20% de representantes do poder público, sendo que ela deve refletir os segmentos e interesses da bacia hidrográfica, e as entidades representantes devem ter atuação comprovada na bacia. É um fórum amplamente democrático, cuja participação é fundamental para deliberar sobre os assuntos de interesse comum naquela bacia para a mediação de conflitos e conciliação dos usos.

Os CBHs muitas vezes não são acionados pelo estado nas questões relacionadas aos recursos hídricos. Um exemplo foram reuniões sobre a escassez hídrica no RS realizadas sem convite aos CBHs que tratam deste assunto permanentemente. Outro exemplo foi o que ocorreu em 2022, quando tivemos a primeira reunião do Conselho de Recursos Hídricos, mas as outras três foram canceladas ao longo do ano. Os comitês mobilizaram-se e, através dos representantes do Conselho, fizeram solicitação de reunião para tratar da escassez hídrica, tendo a reunião sido marcada no fim do ano.

Assim, são diversas atitudes que mostram não haver reconhecimento por parte do estado quanto à importância dos comitês, do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SEGRH) e de todo o trabalho desenvolvido dentro dos comitês, que possuem um histórico de informações sobre cada bacia, essencial para estas discussões. Inclusive, muitas vezes os comitês vêm debatendo, deliberando e alertando para esses episódios extremos de escassez severas e de cheias alarmantes, porém sem serem ouvidos. No entanto, após a confirmação desses eventos críticos, os CBHs são cobrados em relação a ações. É importante compreender que agregam mais custos e menores efeitos as ações realizadas nas situações emergências, pois, para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, são necessárias ações com planejamento para médio e longo prazo.

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Viviane Feijó Machado – É necessária a implementação de todos os instrumentos definidos na Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) (nº 9.433/97). O SEGRH prevê os Planos de Bacia, o Enquadramento de corpos hídricos, a Outorga e a Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos. A bacia do Sinos tem Plano de Bacia, mas há bacias sem esta ferramenta que fundamenta e orienta a implantação de programas e obras. O Enquadramento dos corpos hídricos estabelece as metas de qualidade de água a serem alcançadas em determinado período, conforme os usos em cada trecho, sendo fundamental para a gestão desses recursos. A Outorga é o direito de uso do recurso hídrico por um período dentro da capacidade do manancial e está diretamente relacionada ao balanço hídrico da bacia.

O instrumento Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos não foi ainda implementado no estado, mesmo tendo a Lei Gaúcha das Águas (nº 10.350/94) servido de base para a PNRH (nº 9.433/1997) e termos exemplos no país de aplicação da cobrança e de retorno em melhoria da qualidade e da quantidade de água na respectiva bacia. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem o objetivo de indicar aos usuários o real valor da água, promover seu uso racional e ter disponível recursos financeiros para a recuperação das próprias bacias hidrográficas, pois esses recursos não podem ser destinados a outro fim, conforme a lei, sendo que quem paga são todos aqueles que retiram água do corpo hídrico ou lançam efluentes nele.

Para dar suporte técnico aos comitês, que não têm personalidade jurídica, são necessárias as Agências de Bacia ou a definição de uma Agência Delegatária, conforme a Lei Nacional, que fará a gestão financeira para implementar as ações deliberadas nos comitês e embasadas pelo Plano de Bacia, através dos recursos da cobrança. São valores baixos para cada usuário-pagador, mas em conjunto representam um valor considerável para a melhoria da qualidade e quantidade de água da bacia onde o usuário está instalado, assim o valor pago retorna em benefícios para os próprios usuários. O RS está há 29 anos sem arrecadar estes valores e esses recursos poderiam ter melhorado e muito as 25 bacias hidrográficas, desde o abatimento de carga até o monitoramento e prevenção contra cheias.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Viviane Feijó Machado – Enquanto o estado não implementa a Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos, que através das Agências de Bacia podem destinar até 8% da arrecadação para sua própria manutenção e dos CBHs respectivos, há a necessidade de uma estruturação mínima das Secretarias Executivas dos comitês. O Comitesinos está desde 2019 sem receber qualquer recurso estadual para a manutenção de sua Secretaria Executiva e há comitês que não o recebem há mais tempo. A estrutura mínima (aluguel de sala, computador, internet, material de escritório, recurso humano etc.) se faz necessária para viabilizar as atividades dos comitês, como elaborar ofícios, organizar as reuniões, atender a comunidade da bacia quanto a informações e demandas. O Comitesinos tem uma situação privilegiada pela parceria desde sua constituição com a Unisinos, que disponibiliza salas, telefone, internet e todo o suporte necessários para seu funcionamento, assim como a secretaria executiva do Comitesinos vem sendo mantida de forma voluntária.

Os CBHs são braços do estado no SEGRH e têm papel fundamental pela gestão das águas em suas respectivas bacias hidrográficas. É necessário que o estado garanta a estrutura mínima para cada um dos 25 CBHs do sistema, pois sem esse apoio o SEGRH fica comprometido. A solução definitiva é a implementação da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos, pois é ela que garantirá os recursos financeiros para todo o SEGRH, desde a manutenção dos CBHs até a recuperação das bacias hidrográficas.

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Valéria Borges Vaz é graduada em Economia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), especialista em Gestão de Recursos Hídricos pela Universidade de Santa Maria (UFSM), mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordena o Núcleo de Gestão Pública da UNISC e preside o Comitê Pardo, representante da UNISC.


Valéria Borges Vaz (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Valéria Borges Vaz – Os Comitês de Bacias integram o Sistema Estadual de Recursos Hídricos e têm as suas atribuições definidas na Lei nº 10.350/1994, como, por exemplo, definir objetivos de qualidade das águas, aprovar e acompanhar a implementação do Plano da Bacia, aprovar valores de cobrança e definir critérios de rateio e dirimir conflitos. São espaços colegiados participativos que reúnem os usuários da água, a população da bacia e os governos para deliberar ações que visem alcançar a segurança hídrica para os usos escolhidos, mantendo a preservação e buscando a recuperação da bacia, que efetivamente acontece a partir da implementação das ações, que devem, sim, evitar quando possível e mitigar os efeitos dos desastres naturais.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Valéria Borges Vaz – Os Comitês de Bacias, ao longo dos anos, têm gastado muita energia, tentando mostrar a importância da sua função e do quanto podem e devem fazer pela gestão das águas no Rio Grande do Sul. Faz-se necessário o entendimento político da função dos Comitês de Bacias. Acredito que quanto mais sinergia houver entre os entes do Sistema Estadual de Recursos Hídricos e as estruturas executivas dos governos estaduais e municipais, melhor poderemos alcançar os objetivos comuns e de forma mais inteligente, com efeitos positivos para o meio ambiente, para a economia e para a sociedade.

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Valéria Borges Vaz – O principal desafio para o fortalecimento dos comitês é o reconhecimento político da função dos Comitês de Bacias dentro do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, além da modernização da Lei Estadual nº 10.350/1994, que poderá propor alternativas para a implementação das Agências de Região Hidrográfica e para a cobrança pelo uso de recursos hídricos. Para a atuação efetiva nas bacias, é preciso que haja regularidade e responsabilidade com a manutenção das estruturas dos Comitês de Bacias.

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Rafael Altenhofen é graduado em Biologia e mestre em Diversidade e Manejo da Vida Silvestre pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Coordena a ONG União Protetora do Ambiente Natural (Upan) e preside o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Caí (CBH Caí).


Rafael Altenhofen (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Rafael José Altenhofen – Nossa Constituição Federal reconhece que todo poder emana do povo e deve ser exercido pelo povo. Assim, nossos governantes, do nível federal a municipal, nas esferas legislativa e executiva, apenas estão momentaneamente empoderados em exercício de representação que deveria ser de total e exclusiva defesa do interesse comum. Mas sabemos que esse exercício de representatividade, na forma de democracia representativa, encontra limites e esbarra justamente em falhas que prejudicam ou até mesmo, em alguns casos, não configuram adequada representatividade, com a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, impessoalidade e igualdade no trato aos administrados por aqueles representantes que elegemos.

Mesmo havendo princípios constitucionais e administrativos que regem a gestão pública, com leis e políticas de Estado que deveriam ser observadas, independentemente de quem esteja no poder de representação, na prática são notórios os casos em que essas são suplantadas (explícita ou implicitamente) por políticas de governo (mesmo que transitórios e de passagem), agindo em atenção a interesses setoriais. Nesses casos, sempre que houver, adicionalmente, alinhamento setorial político entre o poder executivo e maioria na esfera legislativa, acabará havendo uma espécie de pacto de conivência e omissão no dever de fiscalizar o cumprimento das leis. A situação de não aplicação da integralidade da Política Estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 10.350/1994), notadamente seu instrumento “cobrança pelo uso da água” (previsto também no Art. 171 da Constituição gaúcha), e o sucateamento dos comitês de bacia hidrográfica (órgãos de Estado) são um claro exemplo disso.

Neste contexto os comitês de bacia hidrográfica possuem um papel democrático sem igual, de características ímpares, por dois aspectos diferenciados. O primeiro é que, na mesma linha dos conselhos de direitos (de políticas públicas setoriais), eles constituem-se parlamentos das águas, onde se possibilita o exercício de uma democracia participativa que leva os centros de decisão para mais perto da sociedade, via arranjos eleitos entre pares nas diferentes categorias de usuários de recursos hídricos e de representantes das populações das respectivas bacias, sendo esses eleitos a cada dois anos entre seus pares. O segundo diferencial, que os coloca em patamar além daqueles modelos de democracia representativa e mesmo dos outros arranjos de democracia participativa, é que eles gerem a água sob a ótica do uso que suas categorias fazem ou pretendem fazer dela.

À primeira vista isso poderia ser óbvio, mas não é bem assim. A democracia encontra um desafio constante, que é equilibrar o poder de tomada de decisão com o conhecimento necessário para se saber as consequências práticas e as interfaces dessas decisões, de modo que quanto menos conhecimento se tem, mais arriscadas as decisões tomadas por um dado grupo e, ao mesmo tempo, maior o risco de que esse, sem o adequado domínio sobre o que está decidindo, seja manipulado em suas decisões.

A falta de domínio de um assunto, entretanto, jamais pode ser óbice para o exercício do direito de decidir – o que, na prática, sob a ótica da responsabilidade sobre o que se decide, gera uma espécie de contradição entre o direito, o poder e o dever. Na democracia representativa, temos exemplos concretos disso em omissões do dever por parte de gestores públicos e em projetos de lei que ora ou outra tramitam e cujas justificativas apresentadas para a população – valendo-se muitas vezes do desconhecimento técnico dos cidadãos sobre a temática – são totalmente descoladas das consequências reais de sua aplicação.

Nos Comitês de Bacia, por outro lado, o decidir sobre quantidade e qualidade da água com vistas à manutenção ou ampliação de seus usos ocorre por meio de um sistema que se fundamenta em parâmetros de qualidade, agrupados em cinco classes de usos de água, que vão da melhor (a especial ou zero) até a de pior qualidade (classe IV). Cada qual é delimitada a partir de critérios técnicos padronizados por resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), podendo ser destinada ou vedada a determinados tipos de usos.

Cabe à população da bacia, por meio de suas categorias de representantes e usuários nos comitês, em seu processo de planejamento hídrico – a partir de aportes prévios (técnicos) dos tipos de usos, quantidades, conflitos, e dos padrões de classes de águas doces verificados (fase de diagnóstico) –, decidir quais os usos que deseja continuar realizando no futuro (fase de prognóstico). Tal fase é o produto de um processo de negociação e harmonização de interesses, visando sempre a compatibilização de todos os múltiplos usos da água.

A partir desta compatibilização e deste estabelecimento de cenários de usos futuros pelos comitês são determinadas (pela equipe técnica, a partir de parâmetros padronizados) as respectivas classes de qualidade (processo de enquadramento dos corpos hídricos) e de quantidade de água (vazões de referência para outorga) necessária para garantir o cenário desejado. Por fim, definido o cenário futuro do plano pelos representantes nos comitês (prognóstico), parte-se para a terceira fase, a da definição (novamente pela equipe técnica) dos planos e ações necessários para garantir seu alcance e os respectivos valores a serem empregados (viabilizados conforme critérios de rateio na cobrança do uso desses recursos). Tanto a definição dos planos e ações, seus prazos, quanto os critérios e valores de cobrança também necessitam, após traduzidos e detalhados à plenária dos comitês, ser validados (aprovados) por elas.

Numa realidade prática, podemos tomar como exemplo uma dada representação da categoria da agricultura, que não necessita dominar os parâmetros técnicos de qualidade e balanço hídrico envolvidos, mas domina aspectos de sua demanda – que poderia ser continuar retirando água de um dado corpo hídrico para irrigar suas hortaliças, por exemplo. A partir dessa decisão, são analisados, pelos representantes no comitê e pelo corpo técnico, os parâmetros de qualidade e quantidade hídrica necessários para manter e/ou viabilizar tal atividade – o que inclui debater sobre e com categorias cujos usos (seja de captação, seja de lançamento de efluentes), à montante do corpo hídrico, possam eventualmente contribuir para reduzir os parâmetros desejáveis à irrigação e, também, aqueles que possam ser afetados, à jusante, pela retirada de água por ela. Uma vez definido esse uso pela plenária, então a equipe técnica, em comparação à situação atual do corpo hídrico, propõe quais diretrizes e ações são necessárias no plano de bacia naquele trecho para se atingir ou se manter tais condições de quantidade e qualidade de água, cabendo então novamente aos representantes no comitê a deliberação final sobre o proposto.

Com isso, possibilitam-se um amplo domínio e um amplo entendimento de cada categoria de representação da população e de usuários no comitê, sobre aquilo que se está decidindo, sempre em harmonização ao interesse comum, havendo pouco espaço para proselitismos políticos que pudessem favorecer setor A ou B em detrimento da garantia da disponibilidade de água em quantidade e qualidade para todos os múltiplos usos na bacia. Fica a certeza, nesse contexto, de que o sucateamento dos comitês de bacia no RS pode interessar somente a pequenos grupos setoriais desinteressados na gestão democrática e participativa da água que, embora atendendo a interesses específicos, se afastam daqueles coletivos.

Eventos extremos

Em termos práticos, relacionados à gestão de recursos hídricos, podemos agrupá-los no “Uso dos recursos hídricos”, na “Proteção dos recursos hídricos” e na “Proteção contra os recursos hídricos”. Quando analisamos efeitos da crise climática relacionados a eventos hidrológicos extremos no RS, estamos falando, por um lado, na intensificação de estiagens e secas, que reduzem a disponibilidade hídrica, comprometendo a recarga de aquíferos, as águas superficiais e aquelas contidas nos solos, afetando em maior ou menor grau a biodiversidade e diferentes categorias de usos que dela dependem. Por outro lado, em seu contraponto extremo, essas alterações climáticas provocam concentrações de chuvas muito acima das médias em curtos espaços de tempo, provocando inundações e enxurradas, com graves consequências estruturais, econômicas, de perdas de vidas humanas e ambientais.

Tanto as ações de mitigação ou prevenção aos efeitos das secas e estiagens quanto as ações em torno das inundações e enxurradas, em suas interfaces com a gestão e o ordenamento territorial, ambiental, de saneamento e de proteção a riscos a vidas humanas, possuem interface com os papéis legalmente definidos aos comitês e ao planejamento e gestão hídrica por bacia hidrográfica. Da mesma forma, os comitês podem ter um papel essencial em ações de prevenção, como, entre outras, aquelas relacionadas ao estímulo a boas práticas agrícolas, tratamento de efluentes e conservação e restauração de vegetação nativa.

Na bacia Caí, por exemplo, um termo de parceria entre o comitê, organizações ambientalistas e o Ministério Público, estamos desenvolvendo um programa de assessoria aos municípios na elaboração de Planos Municipais de Conservação e Restauração da Mata Atlântica, associados à elaboração, inédita em nível nacional, de um Plano Regional Mata Atlântica no âmbito territorial da Bacia Hidrográfica.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Rafael José Altenhofen – Nessa conjuntura ainda temos a influência negativa de aspectos relacionados à falta de tangibilidade pela população. Por tratarem-se, muitas vezes as políticas ambientais e de recursos hídricos, de aspectos com consequências práticas que se fazem notar somente a médio ou longo prazo, não possibilitam assim uma percepção clara e objetiva de causa e efeito entre a má gestão ou omissão e seus resultados no dia a dia.

No contexto das mudanças climáticas, mesmo que essas já tenham sido há tempo antecipadas pela comunidade científica e alertadas pelos ambientalistas, ficava, até pouco tempo, difícil perceber, aos olhos da população em geral, como a não implementação integral da Política Estadual de Recursos Hídricos e o sucateamento dos comitês de bacia poderiam contribuir para agravar essa situação. Talvez as catástrofes ambientais ocorridas em junho e setembro últimos no RS e a massiva cobertura pela mídia, onde se intensificou o debate sobre as causas e responsabilidades, possam ter contribuído decisivamente para mudar esse cenário de percepção pela população em geral.

Infelizmente, entretanto, ainda preponderam os já citados pactos de conivência políticos em aparente favorecimento a setores específicos, com interesses que se sobrepõem aos do coletivo, e o descolamento perceptivo da população entre causa e efeito, o qual ainda a desmobiliza em cobrar dos governantes a aplicação da legislação. Esse cenário tem contribuído para a manutenção e gradual ampliação do afastamento dos comitês, por parte do governo estadual e determinadas representações municipais e setoriais, do processo de tomada de decisão e até mesmo o planejamento hídrico no contexto das mudanças climáticas.

Como exemplo, cito eventos (incluindo um promovido pelo Ministério Público gaúcho) e programas de ações de combate às estiagens e seca, onde nem sequer os comitês de gerenciamento de bacia hidrográfica foram convidados a participar. As recentes ações do governo estadual em resposta às catástrofes ambientais ocorridas em junho e setembro de 2023 também se deram com pouca ou nenhuma interface com os comitês de bacia, como é o caso da bacia Caí.

Em 23-10-2023, o governo gaúcho apresentou o “ProClima2050 – Estratégias para o enfrentamento das mudanças climáticas do Estado do RS”, que não contou com a participação nem do colegiado do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) nem dos comitês de bacia hidrográfica, seja em sua concepção, seja até mesmo no evento de lançamento. Aliás, nas 29 páginas de seu documento base não há uma menção sequer aos comitês de bacia hidrográfica.

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Rafael José Altenhofen – Como dito, os comitês atualmente vêm sendo, por sucessivos governos estaduais, sucateados (pois esses não garantem sua manutenção estrutural, financeira nem suporte previsto via agência de bacia ou de região hidrográfica), escanteados dos processos de tomada de decisão em gestão hídrica, bem como não tendo implementados seus planos de bacia, cujas ações de efetivação em boa parte não cabem propriamente aos comitês, vez que esses não possuem caráter executivo. Se analisarmos com olhar pragmático essa situação sob a ótica da população em geral – que desconhece as atribuições legais dos comitês e do Sistema Estadual de Recursos Hídricos e não os vê na linha de frente no que é unilateralmente decidido e realizado pelo governo –, é de se imaginar que não haveria mesmo percepção da pertinência dessas instâncias participativas, uma vez que são pouco ou nada efetivas e resolutivas.

Valendo tal constatação, numa relação de causa e efeito, pode-se depreender, por outro lado, que a lógica inversa também seja verdadeira. Em outras palavras, respeitar o que é previsto em lei, garantindo a manutenção estrutural, financeira e de suporte aos comitês, implantando-se todos os instrumentos de gestão de recursos hídricos previstos, implementando seus planos de bacia e respeitando seu papel na gestão e na definição de políticas correlatas a recursos hídricos, recolocariam essas instâncias colegiadas em seus devidos lugares de destaque, protagonismo e de consequente reconhecimento pela população das bacias que representam.

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Dilton de Castro é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí. Possui bacharelado em Ecologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), especialização em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestrado em Geografia pela mesma instituição.


Dilton de Castro (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Dilton de Castro – Os comitês têm a função de dirimir os conflitos, em primeira instância, sobre a gestão das águas, sobre o que tem disponível para todos os usos que a sociedade faz. Outra coisa importante dentro dos comitês é o fato de ter representantes da sociedade como um todo, representantes de usuários, aqueles que retiram e grandes quantidades diretamente dos mananciais, da sociedade consumidora e do estado. A representação é plural, com trabalhadores rurais, classe patronal de agricultores, órgãos de abastecimento público, como a Corsan, e assim por diante.

Um dos instrumentos de gestão das águas e que o comitê define é o plano da bacia, que é levantado a partir de um diagnóstico feito sobre a quantidade de água que se tem em determinada bacia. A partir de projeções que se tem sobre o uso atual e os usos futuros, uma negociação é feita para que não falte água nem no presente e nem no futuro.

Com relação à mitigação da crise climática e para evitar desastres ambientais, não se pode considerar que seja feito no plano de bacias, pois a questão é mais ampla e é um problema global. Entretanto, alguns temas definidos no plano de bacia, como a restauração de matas ciliares, proteção de nascentes e recargas hídricas são pontos de sinergia para que se minimize a ocorrência de desastres socioambientais. O comitê não vai incidir sobre a mitigação da crise climática, mas pode promover ações para minimizar as cheias por recargas hídricas e a mesma coisa em relação à seca, se houver. São pontos onde há convergência.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Dilton de Castro – A estrutura dos colegiados, no Rio Grande do Sul, foi definida antes da Política Nacional de Recursos Hídricos, que é de 1997. A Lei das Águas no Rio Grande do Sul é de 1994 e a Constituição de 1988 e o Código do Meio Ambiente já previam as bacias hidrográficas como unidades de planejamento.

A composição é bem democrática, 40% de usuários, 40% de sociedade e 20% do governo. Então, do ponto de vista jurídico, ela é bem democrática. Entretanto, vários instrumentos de gestão ainda não foram implementados e isso afeta, obviamente, o poder de decisão que os comitês poderiam ter. Um deles é a cobrança do uso da água, que está previsto tanto na lei federal quanto estadual e, aqui no Rio Grande do Sul, nenhuma bacia, nenhuma região hidrográfica implementou.

Assim como não temos também as agências regionais de águas previstas na nossa Lei das Águas. Sem estes instrumentos, a estrutura do colegiado fica capenga. Aprovamos um plano, por exemplo, mas o recurso que teríamos para executar o plano não existe porque ele viria da cobrança, alguns setores são contrários à cobrança, mesmo que revertêssemos o recurso da cobrança para garantir água. Há disputas como essas dentro dos colegiados.

Despejados por falta de repasses estaduais

Com relação ao aporto do poder público, para se ter ideia, no aqui do Comitê do Rio Tramandaí estamos sem recursos desde o governo de José Ivo Sartori. Já passaram praticamente oito anos sem que haja um repasse para a manutenção da estrutura do comitê. Inclusive, aqui no Tramandaí, nós do escritório fomos despejados por falta de pagamento. É uma vergonha, não para o Comitê em si, mas para toda a sociedade gaúcha, termos essa posição política, que não é ao acaso, de tratar os comitês desta maneira que chega ao extremo de não termos recursos para manutenção. Como não existe cobrança e nem agência regional, a lei nos garante que o repasse seja feito pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente, através do Fundo Estadual de Recursos Hídricos e isto não vem sendo feito há um bom tempo.

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Dilton de Castro – Primeiro, é termos recursos. Como estes recursos não vêm sendo aplicados, faz-se um trabalho de forma voluntária, inclusive cobrindo os custos pagando com o próprio dinheiro. Temos reuniões e fazemos toda a organização sem recurso algum, demandamos muitas horas de trabalhos mensais só para nos organizar em termos da região hidrográfica do Tramandaí e fora a conexão que temos com o Fórum Gaúcho de Comitês e participações em outras representações. Todos estes trabalhos que eu, como presidente, faço é voluntário e já sabia disso, mas todas as outras demandas que temos de estrutura básica, telefonia, aluguel de sala, uma secretária administrativa, está sendo tudo pago pela gente ou de outras formas que não pelo estado. Este é o primeiro desafio, pois a estrutura está desmontada e sem isso pouco podemos fazer.

E demandas não faltam. Na bacia do Tramandaí temos vários problemas com cheias. Tem uma comporta na Lagoa Fortaleza, em Cidreira, que vive na iminência de romper. Como fazer algo se não temos capacidade financeira para mobilizar as pessoas, as entidades, promover seminários, encontros, qualificação para os próprios membros do comitê? E tampouco temos condições de promover o plano de bacia que foi aprovado ano passado e não se tem recurso para aplicar. Os desafios passam por aí, ou seja, ter todos os instrumentos previstos por lei.

Além disso, o sistema que outorga é bastante precário. Especialmente na nossa bacia, existem muitos mananciais onde se retira água para diversos usos e não se sabe o volume que tem. Água está sendo retirada sem saber se o volume é sustentável ou não. Temos uma carência de informações, apontadas inclusive no plano de bacia, muito grande para ser resolvida. Não se tem uma rede hidrometeorológica suficiente; na verdade, quase não existe. Temos todas essas questões que são desafios.

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Christian Linck da Luz é biólogo e geógrafo, mestre em Botânica e doutor em Geografia Ambiental. Professor de biologia, geografia e francês com 26 anos de experiência no ensino básico e superior. Membro da ONG Onda Verde, consultor ambiental e secretário executivo do Conselho da Bacia Hidrográfica do Rio Mampituba.


Christian Linck da Luz (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Qual a importância dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul e como sua atuação pode contribuir para a mitigação da crise climática e evitar desastres ambientais?

Christian Linck da Luz – Nunca foi tão importante na história humana como atualmente para a gestão do uso da água, essencial à vida, e todos os ambientes naturais. Por exemplo, recentemente vimos o grande número de mortes de dezenas de botos-cor-de-rosa na Bacia Amazônica. Igualmente, de acordo com a ONU, estamos vivenciando uma nova realidade mundial em que surge a categoria dos “refugiados climáticos”, com dezenas de países (especialmente os mais pobres) e milhões de pessoas perdendo seus lares e terras, gerando um passivo socioambiental de muitos bilhões de dólares.

O Rio Grande do Sul também não está fora das mudanças climáticas, basta verificarmos as enxurradas recentes, o furacão Catarina (segundo climatologistas, é questão de tempo que ocorra novamente) e os já recorrentes períodos de estiagem e escassez hídrica, especialmente, na metade sul e oeste do estado (no primeiro semestre, quase metade dos municípios estavam sob decreto). Sobre este último, torna-se quase inacreditável os inúmeros avisos e alertas de entidades ambientalistas e universidades sobre os problemas da falta de água e a total inércia da sociedade na solução. Por exemplo, sabemos que a pecuária é responsável por um dos maiores passivos socioambientais dos recursos hídricos (considerando as várias etapas do processo produtivo). Outro exemplo é a recente aprovação, com reprovação de diversos representantes, do Zoneamento Florestal em que será estimulado o plantio, essencialmente, de eucaliptos, também, sabidamente, grande consumidor de recursos hídricos.

Isso aconteceu sem que nem fosse apreciado e aprovado o Zoneamento Ambiental em que foram investidos muito tempo e dinheiro e até hoje não se tem acesso a este precioso documento.

Tanto a quantidade quanto a qualidade são essenciais e, neste sentido, os Comitês de Bacias Hidrográficas estão perfeitamente inseridos para que possamos discutir com as diversas representações da sociedade os seus usos e restrições.

Cobrança pelos recursos hídricos

Este é um ponto crucial nos Comitês de Bacias Hidrográficas. Para isto, entendemos que a Cobrança pelos Recursos Hídricos (já existente em alguns estados), prevista na Legislação Estadual há quase trinta anos, seja prioridade na sua aprovação e aplicação. Isto significa que, por exemplo, no caso de um cidadão, possa contribuir significativamente para a melhoria socioambiental de sua região, com apenas uma doação mensal de centavos. Isto é revolucionário.

Porém, temos duas situações. A primeira é que teremos uma maior independência ao paternalismo assistencialista do Estado “sensu amplo”, sem precisar ficar sempre com aquele discurso clichê de que o Estado não ajuda os comitês de bacias, que não podemos fazer nada etc. Todavia, nos perguntamos se é tão bom, por que até hoje não obtivemos sucesso em algo tão significativo?

Muitos afirmam que este mecanismo de cobrança diminuiria o poder dos governos vigentes, fato que implicaria numa menor atuação de sucesso político partidário, pois as inúmeras benfeitorias e ações ambientais, de saneamento e melhorias a população não seriam mais atribuídas a tal político ou tal partido, mas sim a melhor e mais pura definição de democracia, exercida dentro da plenária de um comitê de bacia, com as suas diversas representações da sociedade.

Ampla discussão

A segunda e melhor situação é que, a partir da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, poderá ser discutido e aprovado dentro de cada Bacia Hidrográfica o que é melhor para cada região e município. Após isto, os recursos, sem burocracia e desvios de finalidade, poderão ser rapidamente aplicados em usos como a construção de pequenas centrais de tratamento de esgoto, recuperação da mata nativa ciliar, tão importante à manutenção dos rios, ou também um plano efetivo e funcional de prevenção a desastres ambientais.

Agrotóxicos

Outro ponto essencial, ligado à qualidade das nossas águas é o importante e sensível tema dos agrotóxicos. Tanto no Brasil quanto aqui no Rio Grande do Sul, tradicionalmente ligado ao agronegócio, sabemos que o uso de agrotóxicos é um grande problema, seja para os ambientes naturais, seja para a sociedade. Sabemos do uso abusivo de agrotóxicos, do uso de agrotóxicos proibidos no Brasil, e mesmo os permitidos por aqui, muitos já foram banidos há décadas, por exemplo, na Europa. Sabe-se que nos animais que compõem o topo da cadeia alimentar ocorre um aumento significativo na concentração dos agrotóxicos, a chamada “bioacumulação”.

Então, por exemplo, pesquisas mostraram que o leite materno tem um alto teor de agrotóxicos, tornando este ato algo hediondo na nossa sociedade e que devemos lutar de todas as formas para combater situações vergonhosas e criminosas para nossa população. Outro ponto importante e esquecido (propositalmente) é a investigação e análise do percentual de agrotóxicos na água que consumimos, tanto nas águas superficiais quanto nas águas subterrâneas. Pouco a pouco, através da nossa alimentação, consumo da água e contato direto e indireto, vamos nos envenenando e adoecendo, fato que acaba causando um passivo bilionário à sociedade, mas que, obviamente, não é repassado às megacorporações multinacionais.

IHU – Como analisa a estrutura destes colegiados hoje e o espaço que vem sendo dado a eles pelo poder público no debate sobre as questões climáticas?

Christian Linck da Luz – Este ponto é muito importante. Porém, com a desmobilização gerada nos comitês nos últimos anos (dos 25 comitês, 3 já fecharam e outros estão há, no mínimo, três anos sem nenhum recurso para manutenção) pelos governos, é muito difícil fazer uma mobilização eficiente e atraente. Recentemente foi aprovado o Plano de Governo para as Mudanças Climáticas, mas daí ficamos nos perguntando quando falam em “descarbonização”, onde, efetivamente, encontraremos soluções (praticadas há décadas, por exemplo, em alguns países da Europa) para itens como estes:

a) Inspeção veicular ambiental, comum há mais de 30 anos na Europa e por aqui nunca vimos nada a respeito. Um veículo a diesel antigo e desregulado pode poluir equivalente a dezenas de carros;

b) mapeamento das cidades com maior potencial de vulnerabilidade às mudanças climáticas para torná-las (com envolvimento REAL das representações socioambientais como os CBHs, ONGs, etc., muita pesquisa e investimentos) cidades resilientes;

c) analisar como serão tratadas a mineração e o agronegócio (notoriamente criticado internacionalmente como maior fator contribuidor as mudanças climáticas no Brasil).

IHU – Quais os desafios para fortalecer os comitês e torná-los ainda mais atuantes e relevantes nas comunidades em que estão inseridos?

Christian Linck da Luz – Os desafios estão ligados à manutenção financeira dos Comitês de Bacias, tanto pelo Estado (não os governos) e, principalmente pela Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos para, a partir daí sim, especialmente com a Coordenação da Secretaria Executiva do Comitê, apoiados e orientados pela sua Direção e seu Colegiado, se fortalecerem para fazer uma atuação exemplar em cada Bacia Hidrográfica.

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