Durante a conversa com o professor Rodrigo Paiva, o Rio Guaíba ultrapassou a marca histórica de 4,77 metros, ocasionando uma enchente sem precedentes na capital gaúcha
O Rio Grande do Sul vive sua maior catástrofe climática, com 265 municípios atingidos e mais de 300 mil pessoas afetadas. Os números da precipitação acumulada são muito superiores às médias históricas do período.
Choveu, na última semana, na Região Central, no Vale do Taquari e na Serra Gaúcha mais de 500 mm e 600 mm em diferentes pontos. Os valores representam 30% da média anual inteira de precipitação. Fontoura Xavier é a cidade do interior que registrou o maior volume de chuva em 24 horas, entre os dias 30 de abril e 1º de maio, com 500,6 milímetros.
Em Porto Alegre, a chuva acumulada já passa dos 300mm, que é a média de todo o outono. Na cidade de Canoas, localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre, por onde cruzam os Rios dos Sinos e Gravataí e o Arroio Sapucaia, a prefeitura informou que choveu 405mm em apenas cinco dias. A média histórica de todo o mês de maio é de 112mm.
O volume de água acumulado nas regiões segue o curso das bacias hidrográficas e afunila no Delta do Rio Jacuí, chegando também à capital do estado, no Rio Guaíba, que marcou a cota histórica de 4,77 metros na noite desta sexta-feira, 03 de maio de 2024. A informação é do professor Rodrigo Paiva, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Paiva é professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Junto com seus colegas, divulgou a projeção de impacto da enchente em Porto Alegre em um cenário de falha do sistema de proteção da cidade. A melhor situação, explica o pesquisador, “é a que está se encaixando nas observações mais recentes, [em que] o Guaíba entraria em um nível de maior estabilização, chegando a quase 5 metros amanhã [04-05-2024], pois não tem grande previsão de ventos fortes ou algo abrupto”.
Contudo, se a chuva não der uma trégua, as análises apontam para um desastre ainda maior. “Em um cenário mais pessimista, [o nível do Guaíba] superaria 5 metros já nessa madrugada e, talvez, no sábado chegaria algo como 5,50 metros”, pontua Paiva.
As pesquisas realizadas no IPH têm evidenciado que “o Rio Grande do Sul, em comparação com outras regiões do Brasil, é onde aparece uma maior tendência de aumento das cheias, tanto em termos de magnitude como frequência”, assinala Paiva. O pesquisador é enfático ao afirmar que “devemos nos adaptar”, pois, em virtude da emergência climática, vamos ter “o aumento desses fenômenos”.
Rodrigo Paiva (Foto: Reprodução do YouTube do entrevistado)
Rodrigo Cauduro Dias de Paiva é professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre e Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pelo IPH/UFRGS e Doutor em Hidrologia pela Université Toulouse III Paul Sabatier, desenvolve ensino e pesquisa em hidrologia, modelos hidrodinâmicos e observações de satélite no contexto de mudanças ambientais e gestão dos recursos hídricos. Atualmente coordena o projeto "Tecnologias para Análises Hidrológicas em Escala Nacional", financiado pela Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico.
IHU – O senhor faz parte do Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH da UFRGS e estuda, entre outros temas, as cheias do Guaíba. Considerando o cenário atual, cuja cheia do Guaíba registrou 4,72 metros no às 20h, faltam 4 cm para superação da famosa Enchente de 1941. A previsão é atingir até as próximas horas. O que isso significa?
Rodrigo Paiva – Temos observado essa elevação rápida do nível do Guaíba há uns dois dias. Num primeiro momento havia um alerta de que poderia passar a cota de cheia – 3 metros -, o que motivou o fechamento das comportas e o acionamento dos sistemas de proteção de Porto Alegre. Passou essa medida ontem [02-05-2024], e essas previsões que vínhamos desenvolvendo era de superar 4 metros ontem à noite. Superar 4 metros significa uma cheia maior do que as cheias extremas que tivemos em setembro e novembro de 2023, sendo a segunda maior cheia da história. Hoje lançamos outras previsões onde se esperava ultrapassar a cota de 4,76 metros, que é a cota da cheia de 1941, que é a maior da história.
Isso acaba de acontecer, pois na última medição feita há pouco [conversamos na noite do dia 03-05-2024, às 21h30min] a cota [do Guaíba] chegou a 4,77 metros e ultrapassou a marca de 1941. Portanto, vivenciamos uma cheia que já é a maior de todas.
Temos muitos impactos e em muitas regiões, com o interior do estado muito impactado, seja por através de perdas de vidas humanas, danos às propriedades, às infraestruturas de transportes – estradas e pontes. Na região de Porto Alegre tem muita gente impactada, em especial na região das ilhas e na Zona Sul. Mais ao Norte também e na Região Metropolitana.
Em Porto Alegre tem um dique que protege a cidade, quando está abaixo da cota de 6 metros, mas já viemos alertando – e o poder público também – que as pessoas que estão nessas regiões deveriam já trabalhar com a hipótese de cenários ruins, de o sistema falhar localmente, causando uma inundação local, ou mesmo a cota do Guaíba superar o nível máximo do sistema. As pessoas deveriam já se preparar para sair ou evitar essas áreas. Temos, realmente, um evento de grandes proporções.
IHU – Existe a possibilidade de ultrapassarmos a marca dos 5 metros?
Rodrigo Paiva – As previsões que desenvolvemos no IPH são baseadas nos dados observados de chuva, de níveis do rio, de previsões de chuva de modelos meteorológicos e simulações com modelos hidrológicos e hidrodinâmicos que simulam no computador o comportamento desses rios.
A previsão mais atualizada que desenvolvemos no IPH, mostra, em um cenário mais pessimista, que consideramos superestimado, superaria 5 metros já nessa madrugada e, talvez, no sábado chegaria algo como 5,50 metros. Em uma previsão mais conservadora, que está se encaixando mais nas observações mais recentes, o Guaíba entraria em um nível de maior estabilização, chegando a quase 5 metros amanhã. Mas, há essa faixa de estabilização, pois não tem grande previsão de ventos fortes ou algo abrupto. Temos certeza de que no sábado ele não irá baixar.
IHU – De que magnitude é o evento climático que o RS tem vivido nos últimos dias? Era possível prever e com isso minimizar os danos em várias localidades?
Rodrigo Paiva – Esse já é, com certeza, o maior evento que essa população já observou. Talvez o evento de 1941 tenha sido parecido, mas não está na memória da maior parte das pessoas. Além disso, a vulnerabilidade da população hoje é maior, pois há uma maior densidade demográfica ocupando áreas de risco, e estamos mais expostos a essas inundações extremas de alguma forma.
Houve previsões das chuvas intensas, foram emitidos alertas da Defesa Civil do estado e em relação a parte hidrológica também foram emitidos alertas. Agora, foi muito rápido. Essa cheia em Porto Alegre foi mais rápida do que as anteriores, que foram mais graduais.
Pontos turísticos da cidade, Usina do Gasômetro e Cais Embarcadeiro na sexta-feira, 03-05-2024 (Foto: Gilvan Rocha | Agência Brasil)
No caso de Porto Alegre foi muito boa a resposta rápida, tanto no acionamento do sistema de proteção às cheias e no aviso às pessoas – isso foi bem-sucedido. Porém, toda a nossa cultura como sociedade de prevenção, convivência e enfrentamento a desastres naturais precisa melhorar muito. São muitas ações, desde educação a melhores políticas públicas de ocupação do território, evitando áreas de risco.
Além disso, a própria população exigindo mais investimento em sistemas de alerta, previsão e monitoramento. Tudo pode melhorar. Mas, no momento em que estamos enfrentando esse extremo, é hora de resolver os problemas urgentes, que é salvar vidas, diminuir os prejuízos econômicos e de toda a sociedade. Depois, deve ter muita reflexão como melhorar a médio e longo prazo.
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IHU – É possível que algumas regiões da cidade precisem ser evacuadas? Por quê? Como deve ser esse processo?
Rodrigo Paiva – As zonas que não estão contempladas pelo sistema de proteção, o ideal é que as pessoas não fiquem nesses locais. Já nas regiões onde há o sistema, existe uma preocupação de que, nos próximos dias, mantendo-se ou elevando o nível, o sistema falhe em algum local. É como se fosse a situação de uma pessoa morando abaixo de alguma barragem com grande reservatório: quando está em uma situação extrema, há o acionamento de um plano de ação emergencial, um aviso às pessoas e uma evacuação temporária. Eu desconheço se há um protocolo específico que esteja sendo adotado agora. Por enquanto, está mais no nível de recomendação.
As cenas em Porto Alegre são impressionantes! A previsão é que o Guaíba supere hoje o limite histórico de 4,76m, quando houve a cheia de 1941, maior já registrada. O rio pode chegar a 5,50m hoje. O centro está sendo evacuado nas partes próximas à água. pic.twitter.com/CT0beEbkCP
— Miguel Rossetto (@MiguelSRossetto) May 3, 2024
IHU – Existe a possibilidade de prever qual será o cenário para os próximos dias das regiões próximas ao Rio Guaíba em Porto Alegre, entre eles o 4º Distrito, o Centro e o Centro Histórico?
Rodrigo Paiva – Sim. Se não houver chuvas na Bacia do Guaíba, a tendência é do nível se manter alto por alguns dias e a partir da semana que vem ele volta a baixar. Talvez ficar abaixo dos 3 metros, que é a cota de inundação, ou abaixo de 2,5 metros, que é a cota de atenção, vai demorar cerca de uma semana para baixar. Tudo dependerá das chuvas.
Todas as regiões que você citou são baixas, com apenas uma parte do Centro Histórico mais alta, e elas estão suscetíveis a comportas com vazamento de água, alagamento local. Hoje (03-05) houve o caso de uma das comportas da Zona Norte que não aguentou e começou a vazar. Nesses locais o nível da água vai acompanhar o nível do Guaíba. A drenagem pluvial e o sistema de esgoto também ficam prejudicados. É uma situação difícil nessas regiões.
Em análise dos fatos recentes no estado #gaúcho, @blogdosakamoto é cirúrgico ao lembrar que o estado, assim como o resto do país, só lembra do aquecimento global durante as crises.
— ClimaInfo (@ClimaInfoNews) May 3, 2024
E que este deve ser o "maior desastre" da história do Rio Grande do Sul.🧵 pic.twitter.com/1gqepUHWmy
IHU – E nas regiões das ilhas quais devem ser efeitos da enchente? Elas podem ficar totalmente submersas?
Rodrigo Paiva – Há regiões que estão totalmente submersas. Inclusive tem relatos de pessoas que achavam que suas casas eram altas e onde nunca havia chegado a água que as casas estão inundadas e foram atingidos.
O IPH desenvolveu esse mapa [abaixo] que faz uma comparação do terreno com essas cotas de 4,76 metros ou 5 metros e mostra as áreas que seriam impactadas. Então, dentro de Porto Alegre, boa parte disso estaria protegido pelo muro. São áreas que têm maior risco se o sistema de proteção contra cheias falhar.
Já na região das Ilhas - Ilha da Pintada, Ilha das Flores -, onde não há o sistema de proteção, observamos que com a cota de cheia de 1941 já está tudo marcado aqui e toda a ilha está impactada. Nesse cenário, temos uma extensão muito grande impactada.
IHU – O RS tem 19 barragens em situação de risco. É possível prever os danos caso alguma delas se rompa parcial ou totalmente?
Rodrigo Paiva – As barragens grandes têm um Plano de Ação Emergencial - PAE para entender como seria uma onda de cheia gerada por uma ruptura hipotética. Faz-se um levantamento de águas abaixo e a jusante de quais áreas seriam impactadas, qual o tempo que essa onda levaria para chegar e quais ações seriam realizadas e como comunicar a Defesa Civil. Isso está previsto na legislação brasileira por meio da Política Nacional da Segurança de Barragens.
Muitas barragens estão em situação de alerta e com os reservatórios muito cheios. Algumas até já acionaram esse PAE, como no caso de Linha Francisca, 14 de Julho também já acionou, pois acabou rompendo parcialmente ontem. Existe uma atenção e todos os reservatórios devem ser monitorados para, caso seja necessário, já acionar esse plano.
🚨💪 Mais de 6 mil vítimas das chuvas já foram resgatadas no RS. Em Porto Alegre, barcos foram utilizados para transportas pessoas que residem na região das ilhas.
— Governo do Rio Grande do Sul (@governo_rs) May 3, 2024
As forças de segurança gaúchas atuam incansavelmente, contando com apoio de outros estados e das Forças Armadas. pic.twitter.com/RHzyZqzFFS
IHU – Existe algum Plano de Ação Emergencial compatível com a situação atual?
Rodrigo Paiva – Alguns desses planos se colocam nesse cenário de uma cheia muito grande e um rompimento; é possível. Todos os operadores dessas barragens têm esses planos.
IHU – Em setembro de 2023, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), no qual o senhor trabalha, emitiu uma nota propondo um conjunto de ações urgentes, de curto e médio prazo (de três a seis meses) e de longo prazo para evitar tragédias como aquela em que 40 pessoas morreram. De lá para cá foi feita alguma ação para mitigar os riscos à população da região?
Rodrigo Paiva – Observamos amadurecimento em alguns pontos, como, por exemplo, o sistema de alertas do estado foi amadurecido, até com a experiência em relação a esse processo. À época colocamos uma lista grande e ainda há muitos pontos a serem melhorados.
IHU – Podemos ter a repetição desses eventos em poucos meses? Por quê?
Rodrigo Paiva – Esse tipo de evento, mesmo raros, podem acontecer a qualquer momento. Em hidrologia classificamos os eventos pelo tempo de retorno, o quanto ele é frequente ou raro. Mas isso é aleatório e não sabemos quando acontecerá de novo, pode ocorrer novo fenômeno logo ou demorar. Devemos estar sempre preparados para esses eventos, pois é diferente de algo cíclico, como verão e inverno, que acontecem uma vez por ano. Mas um evento desses não é possível prever, ainda mais no Rio Grande do Sul, em que as chuvas acontecem em todas as épocas do ano. A preparação tem que ser constante.
IHU – Esse evento extremo está associado às mudanças climáticas?
Rodrigo Paiva – É difícil qualificar esse evento em específico, pois ainda estamos enfrentando e não estudamos com todos os detalhes. O que posso dizer, a partir de projeções de impactos de mudanças climáticas sobre os extemos hidrológicos, que temos desenvolvido no IPH e em projetos de pesquisa, é que percebemos que o Rio Grande do Sul, em comparação com outras regiões do Brasil, é onde aparece uma maior tendência de aumento das cheias, tanto em termos de magnitude como frequência. Podemos esperar, para a nossa região, devido às mudanças climáticas, o aumento desses fenômenos. Então, devemos nos adaptar.
A av. Júlio de Castilhos, no centro, é uma das principais vias para quem sai da capital (Foto: Giuliam Serafim | PMPA)