30 Março 2023
"A própria noção de 'mercado livre', isto é, o mercado que se torna livre de nenhuma interferência ética, social ou política, é em si a expressão de algo sagrado, o que está acima de todas outras coisas. Nesse sentido, para o neoliberalismo, até a democracia deve estar submetida ao mercado", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
No dia 08 de janeiro de 2023, uma multidão de apoiadores do Bolsonaro atacou, invadiu e ocupou as sedes dos Três Poderes (o legislativo, judiciário e o executivo) demandando a volta do presidente Bolsonaro no lugar do presidente Lula. Isto é, um golpe. No meio dessa multidão e dos que publicamente defenderam essa tentativa de golpe estavam muitos cristãos e líderes das igrejas. O que aconteceu?
Na história recente do Brasil já tivemos um golpe militar, em 1964, com apoio dos setores das igrejas cristãs (a católica e as protestantes), precedida de campanhas civis pedindo uma intervenção militar contra um governo eleito. Entre as campanhas, a mais conhecida foi a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, defendendo os valores tradicionais cristãos (o rosário e a família) e pela observação das “liberdades individuais”, (a liberdade religiosa e a propriedade privada) contra o comunismo.
Na tentativa de golpe de 2023, os principais atores desse processo foram civis conservadores, sem uma presença visível dos militares, e a liderança religiosa desse movimento não era mais católica, mas sim de evangélicos e pentecostais. É claro que tivemos também católicos nesse movimento, mas mostrando a mudança do cenário religioso e político do país, as principais lideranças cristãs apoiando essa tentativa foram evangélicas e pentecostais. Todos, incluindo os não-cristãos, unidos contra a ameaça do “comunismo”, representada pelo presidente Lula e o seu partido. O comunismo, visto como o “diabo” a ser exorcizado na sociedade, seria uma síntese das principais bandeiras desse conservadorismo radical:
a) a defesa da família (contra a comunidade LGBTQ+ e os que defendem o matrimônio de uma família não tradicional),
b) a defesa da religião cristã (contra as chamadas religiões pagãs, especialmente as afro-brasileiras),
c) e a propriedade privada e a política neoliberal (os programas sociais em favor dos pobres e possível aumento de imposto dos mais ricos).
O que justificou no passado e o que justifica essa tentativa de golpe agora? Golpe é um processo político-social que vai contra o sistema democrático e dos fundamentos da sociedade que os democratas querem viver e passar para as próximas gerações. Por isso, os defensores da democracia moderna secular ficaram escandalizados com o golpe e a defenderam como algo sagrado, que mereceria, se for o caso, defender até com o seu sangue. Nesse sentido, a secularização que ocorreu na sociedade moderna não significou o fim ou desaparecimento da noção de “sagrado”, mas sim o deslocamento do sagrado da instituição social Igreja para o Estado moderno democrático.
A separação entre o Estado e a Igreja muda o fundamento último da sociedade moderna. Isto é, na vida social e pública, o sagrado saiu da Igreja e foi para o Estado; enquanto que a Igreja passou a cuidar fundamentalmente da esfera privada e a vida pós a morte.
Por outro lado, os chamados “conservadores” não veem na democracia o fundamento último, o sagrado, da boa sociedade. Os cristãos conservadores não aceitam que Deus e a Igreja sejam reduzidos a algo sem importância na vida política e social. Se Deus é Deus, o ser onipotente e onipresente, o domínio de Deus deveria ocorrer em todos os aspectos e lugares da vida social e política. Por isso, os cristãos deveriam estar presentes em todos esses lugares e instituições políticas e jurídicas para impor à sociedade, aos cristãos ou não, as leis de Deus.
Por exemplo, para essa teologia e os seus seguidores, os então presidentes Bolsonaro e Trump, ao escolher um cristão “de verdade” como um juiz do Supremo Tribunal Federal, estão realizando a missão de fazer o mundo viver de acordo com a lei de Deus (por exemplo, com posições contra o aborto e a família não tradicional). Nesse sentido, Bolsonaro, que carrega no seu nome o “Messias”, é o “Mito” (como o chamam os seus seguidores), aquele que realizará a missão messiânica de fazer acontecer no mundo toda a vontade Deus.
E por que a vontade de Deus não está se realizando agora? Porque há os enviados do demônio atrapalhando as ações dos enviados por Deus. Razão pela qual, vemos uma guerra espiritual do bem contra o mal.
Nessa cosmovisão, tão divulgada nas igrejas evangélicas e pentecostais no Brasil, e também em muitos outros lugares, é a tarefa dos cristãos e das igrejas fazer o Mito Bolsonaro voltar ao poder para terminar a sua missão. E por que tantos pastores e lideranças das igrejas cristãs gostam e apoiam essa visão do mundo, essa teologia do domínio? Porque nessa visão, os pastores e os cristãos têm um papel central na história, lhes dá uma identidade especial que a sociedade contemporânea não lhes oferece. Pois, na globalização neoliberal de hoje, essa identidade de pessoa especial é oferecida aos ricos, aos que pertencem a ambientes altamente tecnológicos, de alta cultura ou de sucesso.
No fundo, estamos lidando com a luta de duas noções de sagrado conflitantes: o sagrado do domínio de Deus no mundo e a noção da democracia como um valor e princípio sagrado. Entretanto, além dos conservadores e democratas, temos um terceiro “sagrado” em disputa no nosso mundo. Entre os defensores da tentativa de golpe, no Brasil e nos EUA, tivemos aqueles que não se preocupam com a teologia de domínio de Deus ou com a Igreja, mas sim transformam a propriedade privada como o sagrado. Mesmo sendo um indivíduo moderno, se a situação política exigir, pode ir contra a democracia porque está em jogo algo que é absolutamente fundamental, a sua propriedade.
No texto de “A Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadão”, de 1789, da Revolução Francesa, que em nome da razão negou o mundo da religião e dos valores tradicionais, encontramos uma frase que nos ajuda a entender essa questão: “a propriedade é um direito inviolável e sagrado”. A noção de sagrado sempre está relacionada a algo que está acima de outras coisas ou regras comuns, normais, ou “profanas”, ou está na base fundamental que sustenta todo o sistema. O sistema capitalista tem como o seu fundamento último a propriedade privada e as leis e os direitos dos proprietários de vender e comprar as propriedades. Nesse sentido, o trabalhador é considerado um comerciante que vende o seu trabalho em troca de salário. O trabalho humano não é considerado importante porque é uma atividade humana que gera os bens necessários para a vida, mas por ser a propriedade privada de um proprietário.
É claro que essa noção de propriedade privada como algo sagrado tem uma longa história, com idas e vindas, altos e baixos, mas agora, com a cultura e política neoliberal, voltou a ocupar um lugar mais alto.
Não acabe aqui uma discussão sobre “o capitalismo como religião”, ideia colocada por Walter Benjamin e retomada por muitos teólogos e cientistas sociais do nosso tempo, ou a crítica teológica do capitalismo atual, feita por vários teólogos da libertação, mas só quero apontar que há uma linha na atual sociedade em que a propriedade privada e as leis do “mercado livre” se tornaram o sagrado. A própria noção de “mercado livre”, isto é, o mercado que se torna livre de nenhuma interferência ética, social ou política, é em si a expressão de algo sagrado, o que está acima de todas outras coisas. Nesse sentido, para o neoliberalismo, até a democracia deve estar submetida ao mercado.
Quando a sociedade ou um país precisa escolher entre o mercado “livre” e a democracia moderna, que pressupõe os direitos humanos e os direitos sociais dos pobres, os neoliberais escolhem o mercado e, consequentemente, o autoritarismo ou a ditadura. Não devemos esquecer que a primeira experiência do projeto neoliberal “vendido” a um país foi na ditadura de Pinochet, em Chile.
Frente a esses três tipos de sagrado, há um outro caminho que seja mais humano e mais cristão? Sem entrar na discussão sobre a diferença entre a noção de sagrado (que é sempre o fundamento último de um sistema social humano) e a noção de “Santo” (uma linguagem humana sobre Deus que é Amor e doador da Vida), eu penso que o antigo ensinamento de Santo Irineu é nos muito útil: “A Glória de Deus é o Homem Vivo”, ou como disse Dom Romero, mártir da América Latina, “A glória de Deus é o pobre vivente”. Isto é, para essa perspectiva cristã, o valor mais absoluto, o que muitos chamam de sagrado, não é o que é conservador, democrático ou mercado, mas sim que todos seres humanos vivam com dignidade.
As instituições econômicas, políticas, culturais ou religiosas não podem ser consideradas “sagradas”, pois todos elas são e devem ser instrumentos, meios, para defender a vida de todas pessoas, sem exclusão. Tornar algo humano como “o” sagrado é cair no que a Bíblia chama de idolatria.
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Os três sagrados e o ataque à democracia: uma perspectiva teológica. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU