24 Setembro 2024
"Um dos desafios ao cristianismo de libertação de hoje é assumir a vocação de aprendermos e ensinarmos juntos o caminho de vivermos o Reino de Deus dentro das possibilidades do nosso tempo. E a “primeira lição” pode ser a distinção entre a sensibilidade e a insensibilidade humana, ou entre o caminho da santidade e o da sacralidade", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
No artigo anterior, O cristianismo de libertação e a revelação como processo pedagógico, escrevi que vivemos em uma época de uma luta de projetos civilizatórios opostos em que vemos com muito mais clareza quem são nossos inimigos do que os detalhes do horizonte utópico que desejamos. Por isso, o sentimento de ódio e discursos irracionais perpassam os dois lados, incluindo no interior das igrejas cristãs.
A dificuldade e, muitas vezes, a impossibilidade de diálogos entre cristãos “bem-intencionados” sobre temas mais polêmicos, – como abortos, matrimônios entre pessoas não heterossexuais e questões políticas envolvendo, no Brasil, bolsonarismo ou socialismo – revela que temos, pelo menos, dois distintos e conflitantes “marcos categoriais”, marcos esses que permitem a esses cristãos interpretarem a realidade social e da Igreja. Pois, os “fatos” não são “puros”, mas só são entendidos como “fatos” na medida em que adquirem sentido no interior de um horizonte de sentido. Por exemplo, cristãos que fazem da luta contra o aborto e o homossexualismo o centro da sua missão ou da sua identidade de ser cristão, interpretam o abortar de um modo muito diferente, oposto, dos que defendem, em sua visão, “o direito de decidir”. Ou então, católicos que defendem que o atual Papa é comunista e que o tema dos sofrimentos dos pobres não faz parte da missão da Igreja, que seria a de salvar as almas, enquanto outros setores do catolicismo afirmam que lutar contra esse mesmo sofrimento é parte central ou importante da missão da Igreja.
Na América Latina, por conta do longo uso da linguagem religiosa cristã tradicional na formação pedagógica do horizonte de sentido e de esperança da sociedade, a luta de interpretação das narrativas bíblicas é fundamental, tanto no campo político quanto no religioso. Isso aconteceu na época do surgimento e do auge do cristianismo de libertação (nas décadas de 1970 e 80) quanto na atual em que predomina uma leitura “conservadora e de direita”.
Uma característica da direita religiosa, seja católica, protestante, evangélica ou pentecostal, é a centralidade do catecismo (no catolicismo) ou de teses teológicas não bíblicas. Isto é, a leitura e o estudo da Bíblia perderam importância nos cultos ou reuniões e na interpretação da realidade social. É claro que padres e pastores citam textos ou frases da Bíblia nas suas pregações ou nas falas, mas não muito, e são interpretados a partir do catecismo católico ou de uma doutrina teológica (por ex., a da prosperidade ou a do domínio). Provavelmente porque na Bíblia, especialmente no Novo Testamento, as principais figuras (Jesus, apóstolos, profetas...) não têm poder, riqueza ou prestígio religioso ou social. Além disso, as características de Deus que aparecem na tradição bíblica são de perdão, amor e solidariedade com quem sofre, e bastante contra os reis, governantes e sacerdotes.
Por isso, penso que os grupos e setores do cristianismo que se identificam na linha da libertação precisam retomar ou aprofundar uma linha de trabalho que foi fundamental no surgimento do cristianismo de libertação: reuniões de Bíblia. A leitura e diálogo sobre textos bíblicos, especialmente dos evangelhos, são processos pedagógicos fundamentais nessa luta. Neste artigo, quero apontar somente a questão do “marco teórico” de um horizonte utópico anticapitalista. Os ensinamentos de Jesus e de outros textos do Novo Testamento nos oferecem uma leitura humanista e ética – em linguagem tradicional, de “santidade”– da realidade social com categorias, como as de perdão e graça, contra uma perspectiva sacrificial da religião, baseada na noção de “sagrado” que exige sacrifícios, sofrimentos e mortes de seres humanos. Religião do sagrado, das leis sagradas acima da vida humana, ensina a insensibilidade humana como uma vontade de Deus.
O capitalismo, que funciona como uma religião baseada na noção de sagrado, – “propriedade é um direito inviolável e sagrado“ (Art. 17 da Declaração da Revolução Francesa) –, na sua atual versão neoliberal, é movido e perpassado de insensibilidade frente aos sofrimentos dos outros, especialmente dos pobres. E essa insensibilidade aprendida e interiorizada na sociedade gera nos devotos do capitalismo a incapacidade de ter sensibilidade também com o seu próprio sofrimento existencial. Perdendo a sensibilidade em relação aos sofrimentos e alegrias de outras pessoas, esses “devotos” canalizam suas sensibilidades no fetiche das mercadorias, sejam esses materiais ou imateriais, para ter a experiência da vaidade de ser superior sobre outros.
Por outro lado, as características do Reino de Deus anunciado por Jesus são marcadas pela sensibilidade e compaixão para com sofrimento e alegrias de outros e da comunidade. A conversão ao Reino de Deus é um processo de aprender a ver e viver a realidade social e humana de um modo distinto do que é dominante no mundo. Infelizmente, uma parte significativa do cristianismo, ao invés de confrontar-se com “o espírito do mundo”, se tornou um auxiliar dessa pedagogia desumana da cultura neoliberal.
Um dos desafios ao cristianismo de libertação de hoje é assumir a vocação de aprendermos e ensinarmos juntos o caminho de vivermos o Reino de Deus dentro das possibilidades do nosso tempo. E a “primeira lição” pode ser a distinção entre a sensibilidade e a insensibilidade humana, ou entre o caminho da santidade e o da sacralidade. Em termos da crítica teológica do capitalismo como religião: Deus é Santo, o Mercado é sagrado.
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A interpretação da realidade social, cristianismos e a pedagogia da (in)sensibilidade. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU