27 Abril 2024
"A fé sem impacto na vida concreta, não é fé. A fé cristã, de acordo com a Bíblia (e especialmente nos evangelhos), só é verdadeira quando expressa, testemunha, que todos seres humanos são iguais na sua dignidade, ou no amor de Deus. Por isso, todos seres humanos têm direito de viver em dignidade", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
O tema “fé e política” voltou a ser objeto de debate nos últimos tempos, especialmente após o artigo de Frei Betto, e isso é muito bom! Há muito tempo que eu não me sentia tão motivado a escrever e debater sobre essa questão na rede. Agradeço ao Frei Betto e todos outros que estão participando nesse debate.
Eu penso que, neste diálogo, há um problema ou uma dificuldade de compreensão do que chamamos de “política”. Normalmente, as pessoas da igreja que defendem a importância da relação fé e política dizem que a fé tem uma dimensão social e que a política tem um aspecto ético-espiritual e que as duas partes da expressão se unem na busca do “bem comum”, ou no objetivo da boa administração da “polis” para todos. O que estou de acordo.
Porém, o conceito de “política” no mundo moderno tem também outro sentido. Um sentido mais estrito da noção de política tem a ver com o objetivo de conquistar o poder e a administração do Estado. Nesse sentido, as pessoas que participam de um grupo político estão ligadas a um partido ou a uma facção de um partido. Por exemplo, na eleição deste ano, as pessoas cristãs que atuam no campo da política estão apoiando um determinado candidato membro de um determinado partido. Assim, as pessoas que atuam juntos na comunidade cristã ou em projetos sociais em favor dos pobres podem estar apoiando diferentes candidatos ou partidos.
Nesse sentido, o conceito amplo de “política” como a ação de buscar um bem comum na “polis” não é suficiente ou útil aqui. Por isso, no mundo moderno, em que se diferenciou a esfera da política e a do campo social, o conceito de política ficou mais restrito e se diferencia a ação social da ação política. Assim, pessoas e grupos que atuam na defesa dos pobres ou de outras formas de vítimas de relações opressivas fazem ação social e, muitas vezes, exigem do Estado reformas legais e novas políticas de ação. Entretanto, frente às eleições essas pessoas ou grupos podem tomar decisões diferentes e apoiar ou participar em diferentes partidos ou alianças.
É importante distinguir os campos de ação e saber as diferentes “regras” de cada “jogo”. Eu tenho amigos que compartilhamos a mesma fé cristã, mas participamos em igrejas diferentes; estamos juntos na luta por mudanças sociais, mas pertencemos ou apoiamos diferentes partidos. A diferença política tem a ver com diferentes opções do “caminho”, de estratégias e táticas, do uso do Estado e do campo político para chegarmos ao nosso objetivo.
Em termos de teoria social-política, Gramsci nos ajuda muito com a diferença entre “a sociedade política” e a “sociedade civil”. Sem entrar em muita discussão teórica, podemos dizer que a ação da Igreja na esfera pública se dá no campo da “sociedade civil”, espaço social em que se disputa os valores sociais e éticos. Por exemplo, quando o Papa ou padre Júlio Lancellotti diz ou faz uma ação chamando atenção da sociedade sobre a insensibilidade social (por ex, imigrantes ou moradores de rua), o que eles estão fazendo não é uma ação política no sentido estrito, mas uma “ação social”, que impacta na sociedade civil. Enquanto que líderes ou “influencers”, como Malafaia, defendem a desigualdade social como um “valor moral”. É claro que essa ação impacta também no campo da política porque as pessoas impactadas por essa ação vão ter também ações e relações, por exemplo, nas eleições.
Por outro lado, no caso da eleição deste ano, temos vários candidatos que defendem valores da “direita” (por ex, a desigualdade social como promotora do progresso) em diferentes partidos e outros políticos que defendem valores da “esquerda” (a igualdade social como horizonte) em diferentes partidos.
Podemos justificar uma opção política (candidatura) nessa eleição em nome da fé cristã ou de uma outra fé religiosa? Eu penso que não. O que não quer dizer que a fé permite qualquer escolha política. Se assim fosse, a fé não teria nenhum impacto na vida concreta da pessoa e da sociedade. E a fé sem impacto na vida concreta, não é fé. A fé cristã, de acordo com a Bíblia (e especialmente nos evangelhos), só é verdadeira quando expressa, testemunha, que todos seres humanos são iguais na sua dignidade, ou no amor de Deus. Por isso, todos seres humanos têm direito de viver em dignidade.
A fé nos coloca um “limite” entre as quase infinitas opções na vida; um limite que nos oferece um caminho concreto. Sem limites, não há caminho. O caminho da solidariedade em favor dos que sofrem é um caminho que podemos chamar de “ação social”. Mas, para que as ações sociais impactem toda a sociedade, precisamos da mediação de um Estado (com as leis e políticas econômicas e sociais) –o que é da esfera da sociedade política– que esteja a serviço de toda a comunidade, e não só da elite.
Fé e política? Depende do que entendemos pela fé e pela política.
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Fé e política? Depende. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU