12 Outubro 2023
A relação entre fé e política é uma relação que, especialmente no Ocidente, gerou aberturas, inovações, confrontos e mudanças ao longo dos séculos. Além de ser impregnada pela experiência popular e democrata-cristã, o século XX italiano viu a ascensão e, logo em seguida, o declínio da experiência dos Cristãos pelo Socialismo (CPS). Discutimos a história e a relevância daquela experiência com Luca Kocci. Professor de italiano e história em escolas secundárias de Roma, Kocci colabora com Il Manifesto e Adista. Pela editora Il pozzo di Giacobbe, publicou recentemente o livro Cristiani per il Socialismo 1973-1984. Un movimento fra fede e politica (Cristãos pelo Socialismo 1973-1984. Um movimento entre fé e política, em tradução livre, do site da Pastoral da Cultura da diocese de Palermo, 4 de outubro de 2023).
Foto: Divulgação.
A entrevista é de Rocco Gumina, publicada por Settimana News, 06-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Kocci, quais são as raízes ideais e históricas da experiência dos Cristãos pelo Socialismo?
A história dos CPS constitui uma etapa importante no longo percurso das relações entre cristianismo e marxismo, que se desenvolvem sobretudo na Europa durante o século XX e depois se intensificam a partir da década de 1960. Nesse período, de fato, ocorrem mudanças significativas no mundo comunista que ajudam a superar algumas desconfianças do passado em relação aos católicos.
Em nível internacional, o processo de desestalinização iniciado pelo XX congresso do PCUS em 1956. Na Itália, o X congresso do PCI de 1962, no qual é reconhecido que a aspiração a uma sociedade socialista “pode acontecer em homens que têm uma fé religiosa" e que aliás "pode encontrar um estímulo na própria consciência religiosa, face aos dramáticos problemas da sociedade contemporânea mundo"; e, no ano seguinte, o discurso de Palmiro Togliatti em Bergamo, intitulado O destino do homem, que lança um apelo aos católicos “para a compreensão mútua e o entendimento” sobre alguns temas, a começar pela ameaça nuclear.
Existem também viradas importantes na Igreja. O pontificado de João XXIII, a encíclica Pacem in terris e o Concílio Ecumênico Vaticano II inauguram de fato uma fase de abertura ao mundo moderno e afrouxam o rígido anticomunismo do período de Pio XII, facilitando assim o diálogo entre católicos e marxistas e iniciando novas reflexões dentro das grandes associações eclesiais: o exemplo mais evidente é aquele das ACLI que renunciam ao colateralismo com a DC e formulam a “hipótese socialista”.
Depois entra em cena o movimento de 1968, que produz também uma significativa “contestação católica”, cujo resultado mais evidente é o nascimento das Comunidades cristãs de base, que, pelo menos na fase inicial, têm um peso importante nos CPS. Esse é o terreno em que os CPS italianos têm as suas raízes. Porém, inspirando-se, ou melhor, colocando-se em continuidade direta com uma experiência homônima. De fato, dois anos antes, os CPS já haviam nascido no Chile de Allende e se espalhado por outros países latino-americanos, haurindo de certa forma da teologia da libertação, uma nova forma de fazer teologia a partir da realidade social dos pobres - também analisada com as ferramentas das ciências sociais, incluindo o marxismo - e visando a construção de uma práxis de libertação na história, com evidentes implicações políticas. Os CPS italianos colocam-se explicitamente em continuidade com a experiência latino-americana.
Na Itália, os Cristãos pelo Socialismo tiveram uma breve, mas significativa parábola que visava tanto a reforma da política como a da Igreja. Quais foram os temas políticos e eclesiais que propuseram à sociedade italiana naqueles anos?
Os CPS foram um movimento político e não eclesial, mas é verdade que sempre caminharam em dois trilhos: aquele do empenho político e aquele do empenho eclesial, com o objetivo de transformar a sociedade em sentido socialista e renovar a Igreja em sentido evangélico.
No que diz respeito à política, a intenção principal era demolir o “mandamento” que prescrevia a unidade política dos católicos na DC e orientar a militância política dos crentes para a esquerda, sem privilegiar um determinado partido e sem querer construir uma espécie de componente ou de corrente católica na esquerda, aliás, contestando a própria categoria sociológica e política de católico. Ao mesmo tempo, queriam exortar as forças da esquerda a abordar a "questão católica" e ajudá-las a superar uma espécie de miopia, tentando fazer com que compreendessem que o chamado mundo católico não era um único bloco monolítico reacionário, mas que dentro dele existiam sensibilidades e posições diferenciadas com as quais era possível empreender caminhos comuns.
No que diz respeito aos principais temas sociais e políticos em que os CPS se empenharam, além das campanhas eleitorais de 1975 e pelo voto à esquerda, especialmente o referendo pelo não à revogação da lei do divórcio (em 1974), a batalha contra a Concordata - evidenciando, no entanto, posições diferentes entre aqueles que pretendiam uma revisão radical e aqueles que, em vez disso, pretendiam uma revogação total - e também o empenho por uma lei sobre o aborto, que foi aprovada em 1978, e depois a campanha para confirmar a lei no referendo de 1981, embora o movimento já estivesse em crise naqueles últimos anos.
No que diz respeito aos temas mais eclesiais, mais especificamente a elaboração de uma reflexão densa sobre algumas temáticas particulares: a relação entre fé e política, a alienação e a ideologia religiosa - para a redescoberta de uma fé evangélica autêntica, libertada de “incrustações burguesas” que se acumularam ao longo do tempo -, a religiosidade popular, a leitura materialista da Bíblia, a laicidade.
Os documentos do Concílio Vaticano II representaram uma virada em apoio ao empenho plural dos católicos na política. Como as aquisições do Concílio influíram no caminho dos cristãos rumo ao socialismo?
Considerando que a recepção do Concílio foi tudo menos pacífica e unívoca - como o demonstram as fortes tensões que atravessaram a Igreja e o mundo católico na tumultuada fase pós-conciliar -, mesmo assim aquela reunião declarou, num certo sentido, o fim de uma época, afirmando, especialmente na constituição Gaudium et spes, a autonomia dos leigos nas atividades e nas escolhas políticas: às hierarquias eclesiásticas não cabe fornecer indicações específicas, mas apenas formar as consciências cristãs dos fiéis, cuja tarefa é "inscrever a lei divina na vida da cidade terrena".
Modificam-se, portanto, alguns aspectos importantes do legado intransigente sobre a relação entre Igreja e sociedade: reconhece-se a legitimidade das formas de autodeterminação na organização do consórcio civil, desvinculando a ação política dos católicos da dependência direta da hierarquia, mesmo não sendo completamente superado o controle geral sobre as formas de vida coletiva por parte da autoridade eclesiástica, que reserva a si o juízo moral sobre os direitos fundamentais do homem e a decisão final sobre os fins da atividade política dos fiéis. Em todo o caso, o Concílio afirma que a fé não pode ser utilizada como escora da ação política. Os CPS, apesar das suas contradições, inserem-se nessa linha de ruptura.
Em seu recente livro, Cristiani per il Socialismo 1973-1984. Un movimento tra fede e politica evidencia-se uma forma peculiar de compreensão da relação entre fé e política dos cristãos para o socialismo. Quais são seus principais insights sobre esse tema?
O objetivo era conseguir viver a militância política em estreita relação com uma fé liberta de ideologias religiosas, sem dualismos, ou seja, separando a fé da política e vice-versa; sem intimismos, reduzindo assim a fé a um assunto privado; sem fundamentalismos, ou seja, fazendo as escolhas políticas derivarem da fé; mas redescobrindo toda a envergadura política da mensagem evangélica. Em geral, os CPS apresentaram aos cristãos a questão de como poder ser ao mesmo tempo crentes na esquerda e socialistas na Igreja, sem lógicas identitárias ou partidárias e sem ter que abjurar da fé ou renunciar às convicções políticas.
Que mensagem as teses e a experiência cristã para o socialismo oferecem ao momento político atual?
Numa fase de crise da participação política e de recolhimento individualista na própria particularidade, diria que a experiência dos CPS relança primeiramente o tema do “amor político”, ou seja, a natureza política da mensagem evangélica de que se falava acima. Em segundo lugar, recorda-nos que o cristianismo não é uma religião civil identitária, a ser eventualmente usada como clava contra os adversários, mas sim uma fé que também impulsiona à ação política, embora esta deva ser conduzida de forma laica, portanto, sem se tornar portadora de específicos valores ou interesses católicos. Enfim, a “opção preferencial pelos pobres”, para expressar isso na linguagem da teologia da libertação.
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Cristãos para o socialismo. Um movimento entre fé e política. Entrevista com Luca Kocci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU