27 Agosto 2019
"O fato de que se queiram excluir os membros de tais comunidades de algumas profissões importantes que, dizem, estão relacionadas a uma 'autoridade' - indica que tais pessoas certamente criam problemas, talvez sejam perigosas. Os preconceitos em circulação, assim como a islamofobia, fornecem detalhes a esse respeito".
O comentário é de Charles Taylor, filósofo canadense e autor de Uma era secular (São Leopoldo: Unisinos, 2010), em artigo publicado por la lettura, 25-08-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há duas definições de laicidade invocadas em nossos debates atuais. A primeira diz respeito ao que pode ser definido como laicidade restritiva; a segunda é conhecida como laicidade aberta. A diferença crucial é a seguinte: de acordo com a laicidade restritiva, o Estado pode ser neutro entre as diferentes religiões, enquanto assume uma posição entre religião e não-religião. A religião é um problema: deve ser limitada e circunscrita a uma área restrita, geralmente limitada à vida privada dos cidadãos. Deve, portanto, estar ausente de certos espaços, que o presidente francês Jacques Chirac descreveu como "espaços da República". De acordo com a laicidade aberta, por outro lado, pretende-se que o estado seja neutro não apenas em relação às diferentes religiões, mas também em relação a religião e não-religião.
Muitas vezes, a laicidade restritiva é considerada uma posição «francesa», mas, na realidade, os dois conceitos colidem tanto na França como aqui no Canadá, ainda que, desde o início deste século, a laicidade restritiva tenha prevalecido na França. É compreensível que essa posição tenha desempenhado um papel fundamental quando, na França, em 1904-1905, se chegou a legislar sobre a separação entre Igreja e Estado. Na época, a República era ameaçada por partidários de um monarquismo ultracatólico. No entanto, hoje, fora desse contexto conflituoso, o conceito restritivo não faz mais sentido.
Pois bem, as duas concepções indicadas acima não têm legitimidade igual. Na verdade, apenas a laicidade aberta é compatível com a democracia igualitária, em que cada cidadão desfruta dos mesmos direitos que todos os demais. A laicidade restritiva é inevitavelmente destinada a discriminar, se não entre religiões, pelo menos entre religião e não-religião. E o que podemos notar na lei 21 de Québec, que adotou o modelo francês da laicidade restritiva. De fato, essa lei impede de exercer suas profissões àqueles que - através da prática religiosa - revelem sua convicção e seu compromisso com uma determinada religião; em vez disso, as profissões estão abertas a todos os outros cidadãos, sejam eles observadores de outras religiões, ou que não pratiquem nenhuma. Tal discriminação poderia ser considerada legítima só em democracias que tenham a pretensão de representar um grupo majoritário, por exemplo, uma determinada etnia, e ser justificadas na limitação dos direitos dos outros.
Como acontece hoje na Hungria. No entanto, as nossas Constituições e as tradições que identificamos como normativas nos levam a continuar no caminho da democracia igualitária. O respeito igual por todos os cidadãos exige que lhes seja dada igualdade de liberdade, incluindo a liberdade de consciência. É evidente que a lei 21 infringe esse princípio. O que ela propõe está longe de ser uma simples variante cultural do regime de laicidade, em vigor na maioria das democracias inclusivas e igualitárias. Ela se distancia de maneira dramática.
Uma maneira diferente para dissimular a natureza discriminatória da lei 21 consiste em defini-la como a expressão de um direito coletivo. Os direitos coletivos são certamente importantes. No entanto, devem ser encontradas maneiras para harmonizá-los com aqueles individuais. Mas nesse caso, de qual direito coletivo se trataria? Um povo tem o direito de decidir quais estruturas adotar para sua vida em comum, ou seja, como deve se autodeterminar, como se costuma dizer: se será independente ou não, que língua será adotada na vida pública, qual será a natureza de sua constituição política. Mas pode um povo que já escolheu a forma de uma democracia igualitária que respeita os direitos (como quando adotamos a Carta dos Direitos), se permitir, com um voto majoritário, limitar os direitos de alguns de seus cidadãos? Introduzir discriminação à custa de determinadas minorias? Isso está longe de ser óbvio.
A Lei 21 não só vai contra os nossos princípios fundamentais, mas visa vergonhosamente as minorias mais vulneráveis, os membros das comunidades culturais recentemente chegados entre nós e poucos numerosos. Um jovem que cresceu entre nós, que tem a vocação de ensinar, que conseguiu fazer estudos brilhantes e que pretende procurar emprego na escola pública, porque é ali que existe uma evidente necessidade, bem, esse jovem, a partir do outono de 2019, encontrará a porta barrada se a observância de sua fé implica em usar um "símbolo religioso". É um destino cruel para ele, mas ao mesmo tempo é uma perda para o Quebec que, como todas as sociedades de hoje, precisa de professores competentes e confiáveis. Esse tipo de legislação - que tem como alvo determinadas comunidades, já vítimas de graves suspeitas, tanto por causa da propaganda populista dos partidos de direita de vários países, incluindo o nosso grande vizinho do sul, quanto por causa da onda islamofóbica induzida pelas redes sociais, têm como consequência o agravamento de uma atmosfera já envenenada. O fato de se queiram excluir os membros de tais comunidades de algumas profissões importantes que, dizem, estão relacionadas a uma "autoridade" - indica que tais pessoas certamente criam problemas, talvez sejam perigosas. Os preconceitos em circulação, assim como a islamofobia, fornecem detalhes a esse respeito: essas pessoas oficialmente discriminadas tornam-se o alvo de atos de ódio, entre os quais os menos graves já são por si só muito desagradáveis (como, por exemplo, ouvir palavras hostis enquanto se anda na rua). Quanto aos mais graves, não é necessário mencioná-los aqui.
Alguns estudos realizados em todas as sociedades onde medidas restritivas semelhantes à lei 21 foram objeto de campanhas eleitorais por partidos importantes como aquele de Marine Le Pen na França, dos defensores do Brexit na Inglaterra, os republicanos de Trump, o Parti Québécois em 2014 - registraram um aumento dramático nos episódios de ódio. Portanto, em nome de que interesse público se tem o direito de submeter a semelhantes provas uma minoria de cidadãos, recentemente chegada entre nós?
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A laicidade absoluta oprime a fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU