27 Agosto 2019
Caros amigos e amigas, entre 7 e 20 de agosto, consumou-se a derrota de Salvini, já anunciada há um ano em nossa newsletter de 18 de julho (que agora pode ser consultada em: Raniero La Valle, Lettere in bottiglia, editora Gabrielli, p. 176).
O comentário é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 25-08-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Esse último ato do filme da derrota foi se desenrolando ao mesmo tempo que a tragédia dos náufragos do Open Arms, que não por acaso terminou com o desembarque em Lampedusa na mesma noite em que o governo caía. Também o símbolo confirma, portanto, que a causa da derrota foi a crueldade. O sistema não a sustentou, ele ainda tem (não para sempre) os recursos para fazê-lo e a rejeitou.
A crueldade da cultura e da política de Salvini e da Liga não era apenas em relação a refugiados, estrangeiros, imigrantes, feridos ou submersos. Estava na própria ideia de que existem aqueles que estão antes e aqueles que estão depois na repartição não apenas das riquezas, mas do mínimo vital, da dignidade humana, da própria vida. E não havia piedade nem mesmo para os italianos, que, por um interesse próprio, queria lançar na aventura de permanecerem sozinhos e malvistos na Europa e no mundo, soberanos apenas na arrogância e em sua procurada miséria.
Não havia piedade pela Europa que com todas as suas distorções e injustiças ainda é a nossa mãe, a história de onde viemos e quem somos.
Não havia piedade pelas instituições da democracia e do direito que custaram séculos de luta e sangue de mártires; nada de piedade para os investidos de cargos públicos, todos degradados à simbiose de bunda e cadeira; nem piedade pelos senadores, insultados como não livres, em oposição ao único "livre" daquela sala que queria ter plenos poderes; e não havia piedade para o crucifixo e o rosário, beijados para o benefício das mídias nas bancadas do governo.
É necessário parar por um momento, antes de virar a página sobre essa crise, sobre a controvérsia em torno do uso de símbolos religiosos que explodiu nos jornais e no Parlamento. Já foi dito que esse uso político dos sinais da devoção cristã ofende os sentimentos religiosos dos crentes e a natureza laica do Estado. O Presidente Conte acrescentou que é uma forma de "inconsciência religiosa" e o padre Spadaro, diretor da La Civiltà Cattolica, ficou impressionado com a força dessa expressão. Poderíamos terminar aqui, mas há uma insídia oculta no que aconteceu, há um perigo ainda maior e riscos imprevistos que devem ser identificados, devido ao impacto devastador que poderiam ter no futuro.
Deve ficar claro que a controvérsia não é sobre a fé e nem mesmo sobre religião, mas sobre gestos e símbolos devocionais da religião e da fé que são totalmente legítimos e, aliás, muitas vezes têm raízes profundas nas tradições dos crentes e no imaginário popular, mas que podem ser desviados, distorcidos, banalizados e inclusive invertidos em seu significado. Ofereceu uma preciosa explicação sobre isso, no debate no Senado, o presidente da Comissão Antimafia, Nicola Morra, quando disse que na Calábria a Ndrangheta decidiu "reunir-se" em um santuário de Nossa Senhora, adotá-lo e, portanto, o uso político de terços e nossas senhoras podia transmitir ali mensagens codificadas. Mas além desses casos limites existe o risco de um uso e uma ostentação em chave supersticiosa mágica e de crendice dos signos religiosos, que colocados no circuito social podem deturpar e interceptar a fé, atuando como dissuasores, vacinas e anticorpos à abertura ao relacionamento com Deus.
O caso do jogador de futebol da reserva que entra em campo e faz o sinal da cruz e manda um beijo a Deus, meio que pela graça recebida e meio para tentar obter o milagre de um gol, não é diferente do caso de Salvini, que beija o rosário nas ruas por ter vencido as eleições e se dirige à Imaculada no Senado para exorcizar o fim de sua ascensão política. Com alguma inclemência são chamados de “baciapile” (beija-pias) aqueles que beijam as pias de água benta em vez de praticarem a misericórdia. O beijo é um evento humano sublime e um poderoso gesto religioso, não pode ser usado à toa. Na liturgia o beijo é dado antes da comunhão para entregar a paz, é o beijo que é colocado na sexta-feira santa na cruz de Jesus; houve o beijo da Madalena ao Senhor no jardim da ressurreição; o próprio Deus é um beijo, dizia o camaldulense Bento Calati e ao beijo são dedicados os nove sermões de São Bernardo de Claraval no "Cântico dos Cânticos", no qual, afirmava o próprio padre Bento, "esse grande monge no mais natural gesto de amor soube resumir o segredo místico da vida divina e humana".
E então qual é o risco? É que para proteger a política das incursões do sagrado, mesmo que nas formas de devocionismo mágico e inconsciente à la Salvini, para prevenir recaídas identitárias em políticas "cristãs" e até democratas cristãs, se retorne às caras antigas batalhas laicistas, se volte a erigir muros intransponíveis entre fé e política, se professe a ilegitimidade de toda inspiração religiosa da ação laica na política. Retornaríamos à ideia da religião como ópio, do ateísmo como sinônimo de modernidade e de saber, da fé como negadora do pluralismo e fator de exclusão; voltaríamos à época antes do Vaticano II, antes do encontro fraterno entre as religiões e das religiões com o mundo, antes de ouvir o Papa Francisco, antes de seus diálogos "políticos" com os movimentos populares e sua crítica à economia que descarta e que mata, antes da Laudato Si' para a salvação da terra. E uma vez que a salvação da terra, problema completamente removido da política atual, só pode ser alcançada através de uma grande mudança do espírito humano e do sentimento dos povos que depois possa se refletir na ação política, essa recaída nas cercas históricas do passado a tornaria impossível.
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