02 Julho 2024
"Na época em que uma civilização que tinha orgulho de ser cristã, isto é, de viver como Jesus ensinou e de ajudar os pobres –mesmo que seja somente com uma esmola –, era inimaginável políticos e líderes religiosos defenderem a criminalização de ajuda aos pobres. Mas, se não prestarmos atenção, logo teremos pequenas mudanças legais que dificultarão cada vez mais a ação solidária aos pobres", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Recentemente uma lei que criminaliza o dar comida aos moradores de rua e de outras populações vulneráveis na cidade de São Paulo gerou muita polêmica. O projeto aprovado rapidamente na primeira votação foi suspenso por conta da reação da sociedade. Contudo, esse projeto e, o mais importante, essa ideia de criminalizar quem ajuda aos pobres é um sintoma de algo muito importante na nossa civilização Ocidental. Isto é, esses projetos semelhantes que aparecem no mundo inteiro não é resultado de algum político “maluco” ou insensível aos sofrimentos dos pobres, mas é expressão de um novo projeto civilizatório e utópico.
Em todas civilizações, quando ocorrem profundas mudanças tecnológicas e, com isso, os processos de divisão social do trabalho se transformam, as sociedades mudam e surgem grandes problemas e desafios, especialmente o que fazer com aqueles trabalhadores que não se encaixam e não são mais “úteis” à nova divisão social do trabalho: os pobres e trabalhadores excluídos do novo sistema de trabalho.
Na Inglaterra de século XVI e, depois, especialmente nos séculos XVIII-XIX, tivemos várias legislações e mecanismos de controle dos pobres que estavam sendo expulsos dos seus lugares de trabalho, o campo, e não tinham nem treinamento e nem empregos suficientes nos nascentes sistemas e empresas industriais. Criminalizar os pobres – que buscam comidas em lugares que possam encontrar – e colocá-los nas prisões foi uma das soluções da civilização cristã protestante inglesa. Os pobres eram vistos como preguiçosos ineficientes e, ao mesmo tempo, pecadores a serem enviados ao inferno pela teologia da predestinação.
Frente a essa nova civilização insensível, que era justificada em nome da fé cristã, tivemos na Inglaterra a reação de líderes cristãos, como o movimento metodista dos irmãos Wesley – que originou a Igreja Metodista – e, na Europa continental, as criações de várias congregações religiosas católicas de trabalho social, como orfanatos, hospitais, escolas técnicas... e movimentos da ajuda aos pobres, por exemplo os que nasceram ou foram inspirados por São Vicente de Paulo. Enquanto não surgiam projetos políticos sociais que depois seriam chamados de Estado de bem-estar social, eram esses movimentos religiosos que respondiam aos sofrimentos dos pobres ou do que se tornaram pobres às mudanças tecnológicas e sociais.
As grandes transformações do mundo moderno (por ex., a criação do sistema de mercado capitalista e a ideologia do mercado livre, e a mudança da noção de Terra e do dinheiro como mercadoria a ser comprada e vendida – ver, por ex., Karl POLANYI, A grande transformação: as origens da nossa época) mudaram a visão e a organização da vida humana e das sociedades. Agora, no fim do primeiro quarto do século XXI, estamos vendo uma transformação tecnológica mais radical: a inteligência artificial generativa. Mais do que o encantamento dessa tecnologia (de imagens, sons e conteúdos que não diferenciam mais o que é real e o que não) que muda como vemos, sentimos e o que nós somos como seres humanos, temos também a promessa de felicidade de viver em um mundo “transcendente” e a imortalidade.
Essas mudanças na noção de espaço, tempo, sensação, a identidade do ser humano e o que é o mundo utópico trarão também grandes transformações na forma como se trabalha (a divisão social do trabalho) e o modo de distribuição dos bens produzidos pelo capitalismo atual. E o que é o mais importante para uma reflexão teológica, é a compreensão de quem são os pobres e os pecadores, os que economicamente e moralmente não cabem nesse mundo.
Parece que não haveria problemas em ONGs e comunidades de inspiração espiritual ou religiosos ajudar os pobres, mas é que dar comida aos pobres em situações de rua “enfeia” as ruas e os bairros dos bons consumidores; assim como ajudar e apoiar os imigrantes que buscam sobreviver incomoda os “nacionais”, os cidadãos. Isso poderia ser resolvido com aumento de trabalhos sociais do Estado, mas isso vai contra ideologia neoliberal.
Na época em que uma civilização que tinha orgulho de ser cristã, isto é, de viver como Jesus ensinou e de ajudar os pobres – mesmo que seja somente com uma esmola –, era inimaginável políticos e líderes religiosos defenderem a criminalização de ajuda aos pobres. Mas, se não prestarmos atenção, logo teremos pequenas mudanças legais que dificultarão cada vez mais a ação solidária aos pobres. Em vez de ampliar ações de bem-estar social dos pobres e vulneráveis, os Estados e igrejas poderão caminhar numa direção contrária.
Isto mostra que devemos defender as leis concretas que promovam os direitos humanos fundamentais de todos os seres humanos, mas não esquecer que as leis que realmente funcionam – as que forçam as pessoas e o Estado a agir – são as leis assinadas pelo Estado.
A fé cristã nos inspira a lutar por um mundo mais justo humano, e essa fé, portanto, precisa ser articulada de modo eficiente com a criação das leis e políticas sociais do Estado em favor de todas pessoas.
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O crime de ajudar os pobres: a versão do século XXI da Lei dos Pobres. Fé e Política. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU