15 Junho 2024
"Enquanto não formos capazes de sair, de nos libertar, da lógica sagrada da vingança em nome de Deus, não seremos capazes de negociar, dialogar, com os nossos inimigos de uma forma razoável e objetiva", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Há algo “estranho”, irracional, nesta guerra de Israel e Hamas. É uma guerra “sem fim” sem sentido, tanto para israelenses e palestinos. Pois, não há como terminar com uma vitória final de uma das partes. Não há como Israel expulsar todos os palestinos da Faixa de Gaza, nem matar todos militantes de Hamas, porque, mesmo que conseguissem, sabemos que irão surgir outros com o dever de vingar a tantos palestinos assassinados ou mortos. De outro lado, o objetivo final de Hamas de fazer desaparecer o Estado de Israel e recuperar a Palestina de antes da decisão da ONU da criação de Israel também não é possível.
A única solução razoável após esses meses de guerra seria uma negociação política que leve a uma trégua e, posteriormente, a uma solução mais permanente de dois Estados nessa região. Entretanto, essa negociação política pressupõe um mínimo de cálculo racional no campo da política. O problema é que as lideranças dos dois lados parecem carecer de racionalidade política porque estão movidas pelo desejo de vingança acumulado. Eu quero refletir teologicamente essa questão da irracionalidade e da vingança nessa guerra a partir de uma afirmação de um historiador israelense.
Tom Segev, em um artigo da revista Foreign Affairs (de mai-jun/2024), fez um comentário interessante. Como ele diz, “para os israelenses, 7 de outubro de 2023 é o pior dia nos 75 anos de história do país”. Nunca antes tantos israelenses foram massacrados e feitos reféns em um único dia. Diante disso, ele diz: “Os israelenses compararam o ataque ao Holocausto; o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu descreveu o Hamas como ‘os novos nazistas’. Em resposta, as Forças de Defesa de Israel realizaram uma campanha militar sem fim em Gaza, movida pela raiva e pelo desejo de vingança. Netanyahu promete que a IDF lutará contra o Hamas até alcançar a ‘vitória total’, embora até mesmo seus próprios militares tenham dificuldade em definir o que isso significa."
Sabemos que o futuro político de Netanyahu depende dessa guerra, mas essa promessa dele de lutar até alcançar a “vitória total” não é fruto somente do seu cálculo da sua sobrevivência política, mas é expressão de desejo de uma parte significativa da sociedade israelense. Vitória final significa a realização plena do desejo da vingança. O problema é saber vingança contra quem? Se fosse vingança contra Hamas, seria compreensível, pois nós seres humanos somos movidos também por vingança. A questão é que não se pode, não se justifica, matar tantos milhares de crianças, mulheres e homens civis em nome de vingar contra os militantes de Hamas.
O segredo dessa “energia” para matar e destruir essa região está na fala do primeiro-ministro: “os novos nazistas” O que se mata não são palestinos ou militantes de Hamas, mas sim “os novos nazistas”, para vingar o holocausto. E, conscientemente eu usei a expressão “o que se mata”, ao invés de “a quem se mata”, porque quando estamos na lógica da vingança absoluta, o inimigo não é visto como um ser humano, mas sim como um sub-humano. O método usado também pelos nazistas. Essa guerra é uma ou “a” oportunidade, – o “kairós” no sentido invertido da Bíblia –, que permite aos judeus que têm a sua raiva, ódio e o desejo de vingança acumulados no fundo da sua “alma”, realizar o seu “desejo e dever” de vingar.
Por outro lado, militantes do Hamas, seus simpatizantes e possíveis futuros militantes também estão esperando a oportunidade de realizar o mesmo dever sagrado de vingar os seus irmãos, pais, filhos, amigos, compatriotas mortos.
Enquanto não formos capazes de sair, de nos libertar, da lógica sagrada da vingança em nome de Deus, não seremos capazes de negociar, dialogar, com os nossos inimigos de uma forma razoável e objetiva. Nas guerras religiosas na Europa dos séculos XVI-XVII, a solução foi a separação do Estado e Igreja. Nas guerras feitas em nome de Deus, não se pode negociar uma paz, pois o seu inimigo representa o diabo. Ou se mata, ou se morre. Foi o processo de secularização – a retirada de Deus no campo da guerra e do Estado – que permitiu o fim das guerras religiosas.
A solução da secularização criado no início do mundo moderno parece não ser mais suficiente. Enquanto não descobrimos ou criamos uma nova solução político-institucional, vale a pena nos lembrarmos da lição da Bíblia (que aparece desde o Caim e Abel até o seu final): a vingança não é a solução, não é de Deus, e um deus que exige vingança é apenas um ídolo, uma expressão humana do desejo de uma vingança absoluta.
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A vingança sagrada na guerra Israel-Hamas: uma reflexão teológica. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU