14 Setembro 2024
"A escatologia cristã se anuncia, na visão que Jesus tem dela, como o desbloqueio do suporte que o “comum”, que faz seu trabalho sem chegar à consciência de quem é movido pela sua força, representa para o destino feliz do humano - assim pode ser entendido “o fizeram por mim” de gestos que tocam existências comumente humanas, marcadas pelo fracasso que a vida pode representar para muitos", escreve Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 09-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O recente Instrumentum laboris para a segunda sessão do Sínodo faz uma importante afirmação sobre o sentido da Igreja Católica em relação à salvação desejada por Deus: “Por meio de sua Igreja, guiada por seu Espírito, o Senhor quer reacender a esperança no coração da humanidade, restituir a alegria e salvar a todos (...). A renovação do povo de Deus encontra expressão em uma Igreja que, reunida pelo Espírito por meio da Palavra e do Sacramento, proclama a salvação que experimenta continuamente para um um mundo faminto de sentido e sedento de comunhão e solidariedade” (IL, Introdução).
Em primeiro lugar, são destacadas as condições teológicas que criam o nexo entre as práticas da comunidade cristã e o destino universal para a intimidade escatológica com o Deus de Jesus. Na Igreja, o poder de orientação e de convocação são removidos de sua configuração institucional e postos firmemente nas mãos confiáveis do Espírito. Na medida em que está sujeita à orientação do Espírito e se realiza como uma comunidade por ele convocada, então sua função teológica emerge: a de anunciar uma salvação da que se experimenta (se deveria experimentar) na Igreja. As notas visíveis dessa experiência são a esperança e a alegria - é com base nelas que se pode avaliar a correspondência efetiva da Igreja Católica ao destino desejado para ela pelo Senhor.
O documento mostra aqui uma certeza que, no entanto, deveria ter sido cercada de maior cautela: se o núcleo incandescente da salvação cristã é aquele de ser uma experiência, não um discurso metafísico ou uma ontologia, é claro que não pode ser pensada como se fosse um ex opere operato. Pois o desejo cristão de Deus é que a salvação, de todos e de todas, possa ser sentida, apreciada, desfrutada – por qualquer um e qualquer uma, em todos os lugares e em todos os tempos. Para uma ontologia sacramental e institucional da salvação, não havia necessidade de investir nela os afetos mais elevados e íntimos de Deus - a ponto de fazer com que sua força geradora original coincidisse com eles. A junção entre salvação e experiência, com referência à Igreja, continua sendo importante e não deve ser subestimada.
Pois é precisamente ela que permite uma ampliação contextual das formas em que a experiência salvífica do Deus de Jesus pode ser feita pelos homens e pelas mulheres do nosso tempo. Na introdução da Parte III, o IL afirma que “a vida sinodal missionária da Igreja, as relações das quais é tecida e os percursos que garantem seu desenvolvimento, nunca podem prescindir da concretude de um ‘lugar’, ou seja, de um contexto e de uma cultura”.
Em outras palavras, a salvação como experiência só é possível como forma concreta de vida humana - na variedade das linguagens e das condensações culturais que a caracterizam. O singular da salvação é, portanto, constitutivamente plural: o “enraizamento em um lugar e em uma cultura” valoriza a “concretude na qual, no espaço e no tempo, toma forma uma experiência compartilhada de adesão à manifestação de Deus que salva” (IL, n. 80).
A experiência de salvação é tal somente se for compartilhada; e sua forma comum é capaz do plural dos lugares onde acontece o encontro entre o Evangelho que salva e a multiplicidade das vivências humanas: “Esta mensagem assume uma forma plural, expressa na diversidade de povos, culturas, tradições e línguas. Levar a sério essa pluralidade de formas evita pretensões hegemônicas e o risco de reduzir a mensagem salvífica a uma única compreensão da vida eclesial e das expressões litúrgicas, pastorais ou morais” (IL, n. 81). Precisamente por ser uma experiência, a forma de salvação não pode ser hegemônica - ela também se dá fora do logos grego e do ius romano.
No entanto, não podemos esquecer que o tema da salvação ainda está sob a hegemonia do pensamento teológico ocidental e da sua contribuição para a gênese da modernidade. É entre os séculos XIII e XIV que podemos situar a privatização dogmática da salvação cristã.
O episódio no qual ela se condensa é a diatribe entre o Papa João XXII e o Papa Bento XII em torno da chamada retribuição imediata essencial. Recuperando uma tradição do cristianismo oriental, João XXII tenta reconjugar salvação e história colocando na ressurreição (do corpo) o acesso à visão e ao gozo bem-aventurado de Deus.
Em contraste, na bula Benedictus Deus de 1336, Bento XII (retomando a sistematização de Gregório Magno) afirma a imediata retribuição essencial para a alma separada do corpo: acolhida imediatamente no céu ou descida imediatamente ao inferno. Diante desse estado de coisas, Moioli se pergunta: “Como se pode conceber que a morte individual antes do fim/parusia dê acesso à situação escatológica plena, sem cair em uma escatologia não cristãmente inaceitável da pura imortalidade ou ressurreição da alma? Qual é a relação entre a pessoa individual, sua morte, seu destino e a história na sua dimensão escatológica - ou seja, a salvação como destino comum (compartilhado) de todos e de todas? A doutrina da imediata retribuição essencial não explica o fato de que, também para os indivíduos, “o fim da história ocorre nos últimos tempos com a ressurreição/parusia” (Moioli).
Desvinculada do destino da história comumente humana, a salvação é, portanto, privatizada e desmaterializada - perde profundidade concreta: a retribuição essencial imediata (da alma) faz com que a ressurreição (do corpo) pareça um mero ornamento acidental que nada significa para a condição escatológica (definitiva). A ideia resultante de sujeito formará a base do caminho do sujeito moderno, representando a introdução teológica daquele que será o ego cartesiano em sua dualidade de res cogitans e rex extensa.
Uma outra consequência é a despotenciação teológica do sentido da história humana, que se encontra sem um destino desejado por Deus para ela. O que temos diante de nós é um sujeito da salvação essencialmente não social, ao qual corresponde uma destinação da história humana comum a todos e a todas.
Hoje é necessário começar a pensar na salvação novamente em termos de sujeito coletivo e reinvestir a história comumente humana com uma dimensão teológica que não seja o mero somatório de inúmeros percursos individuais - recuperando a ressurreição do corpo como índice indispensável para a salvação cristã, com toda a sua materialidade e todo o ambiente em que vive, se move e respira.
Por um instante, a pandemia suspendeu o mundo dos átomos individuais (colocando-os paradoxalmente à distância uns dos outros), suficientes para si mesmos e destinados, de forma privada, à alegre comunhão com Deus - desnudando o poder (ambivalente) do destino comum de todos. No cenário surreal, mas surpreendentemente caloroso, de uma Praça de São Pedro deserta, o Papa Francisco assumia a responsabilidade global de dizer uma palavra aos povos de uma terra desorientada, em 27 de março de 2020. “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa expostas aquelas falsas e supérfluas seguranças com as quais construímos as nossas agendas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Ela nos mostra como abandonamos o que alimenta, sustenta e dá força à nossas vidas e à nossa comunidade (...). Este é o momento de escolher o que conta e o que passa; de separar o que é necessário do que não é. E podemos olhar para tantos companheiros de viagem que, com medo, reagiram doando suas vidas (...). É a força atuante do Espírito derramada e moldada em dedicações corajosas e generosas. É a vida do Espírito capaz de redimir, valorizar e mostrar como as nossas vidas são mantidas e sustentadas por pessoas comuns (...) que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.
Devido a um estranho jogo de interconexões culturais entre o teológico e o eixo central da modernidade ocidental, a sombra de sua privacidade individual ainda paira sobre a salvação - precisamente porque não se consegue superar o fato de ser uma experiência (humana) compartilhada por todos e todas (da qual a Igreja deveria ser um fenômeno tangível). Nas dobras dessas interconexões, desenvolveu-se um pensamento extremamente refinado para diz que a salvação é uma questão apenas do indivíduo - e de sua vicissitude individual de liberdade. Em nossas comunidades ainda circula um cristianismo difundido, construído em torno de um egoísmo soteriológico, em que até mesmo os gestos de amor são, em última análise, funções e instrumentos de uma salvação privatizada. Não deveria surpreender tanto assim que essa salvação tenha pouco a dizer para a história das gerações que despontam à vida no mundo do nosso Ocidente.
Se ninguém se salva sozinho, se o Magistério da Igreja sanciona o fim da salvação como propriedade privada e exclusiva do indivíduo, então é necessário começar a pensar em chave teológica o comum: aquilo que é compartilhado por todos e dá sustento a cada um, ninguém excluído, sem gerar rivalidade - segundo uma bela definição de A. Bilgrami (Capital, Culture, and the Commons, Orient BlackSwan, 2022). No âmbito das nossas reflexões sobre a salvação, o comum não é um tema que se acrescenta a ela, mas sim o âmbito prático em que ela acontece e se torna possível - ou seja, é a chave concreta que nos permite lê-la e decifrá-la como nosso destino compartilhado.
Mas também é necessário passar de representações lógico-linguísticas da salvação, como aquilo que separa uns dos outros, para experiências de salvação que são comuns aos seres humanos. “A experiência vivida é composta de aspectos e práticas não discursivas: sensações, sofrimento, prazer, dor, história, memória, cultura - tudo isso é expresso em vez de representado” (Bilgrami).
Sair da salvação privatizada, a fim de se abrir para um destino comum, também significa desconstruir o vínculo que, no decorrer da modernidade ocidental, foi construído entre sujeito, propriedade e capital. Porque o “comum”, que existia como figura político-cultural concreta de uma comunidade, foi gradualmente expulso de nossa experiência ocidental precisamente pela privatização (das terras). Mais ou menos no mesmo período em que a Igreja privatizava a salvação, as terras comuns ou coletivas sofriam aqueles cercamentos que recebem o nome de enclorures que as retirava do benefício compartilhado de uma coletividade humana. E é precisamente essa subtração que gerou na nossa mentalidade ocidental a suspeita e a aversão em relação ao que não tem proprietário (como nossa tendencial incapacidade de cuidar dos bens públicos acessíveis a todos e usufruíveis por todos - que são, no entanto, algo diferente do “comum”).
Suspeita e aversão que nós, hoje, acostumados com a propriedade privada, sentimos como um preço insustentável que o “comum” pede para pagar àqueles que o compartilham para poder ser tal. De fato, o ganho do “comum” é “a longo prazo, não imediato e sempre incerto; não é todo para o indivíduo, mas distribuído entre todos os que dele participam e o sustentam” (Bilgrami); enquanto o ganho privado é imediato e certo – dizendo respeito apenas ao indivíduo (exatamente como a retribuição imediata essencial dogmatizada por Bento XII).
A lógica prática do “comum” não é a indistinção de uma justiça como igualdade abstrata (típica do percurso jurídico da modernidade), mas a de uma justiça concreta como equidade entre os muitos que a ela pertencem, compartilhando-a entre si sem rivalidade. Justiça, esta, que tem seu próprio direito (como nos mostra a experiência das terras coletivas), mas que não representa a força fundadora que torna possível o “comum”.
Em um primeiro momento, seguindo Bilgrami, poder-se-ia dizer que essa força é a da confiança prática que circula entre todos aqueles que compartilham o “comum”. É claro que a confiança (não como imperativo moral, mas como fundamento das relações compartilhadas) desempenha um papel importante na configuração do “comum”, mas ainda não é o nome certo a ser dado à sua força fundadora. O que o constitui se torna aparente precisamente quando o “comum” se dissolve, quando a conclusão da privatização faz com que pareça impossível: “Somente se os indivíduos estivessem profundamente alienados uns dos outros é que então se perguntariam com ansiedade medo: “o que acontece se eu me empenho com o comum e os outros não?” Isso sugere o fato de que se o comum fizesse seu trabalho (...) o ideal que expressa seria o de uma mentalidade não alienada” (Bilgrami).
Para nos livrar dessa alienação mútua entre os seres humanos, que separa uns dos outros e leva à desconstrução do “comum” possível, é necessário sair da lógica do privado ligada a uma organização do humano como capital. Uma organização que não suporta o “comum” indeterminado sem propriedade específica na justiça de sua equidade, e muito menos suporta o rigoroso limite que ele coloca no ganho individual do indivíduo (também da salvação eterna).
Quando Lucas, nos Atos, imagina o fundamental da comunidade que virá, se baseia precisamente no “comum” (cf. Atos 4,32-36). Esse passo, vezes demais idealizado e, portanto, desvalorizado na injunção que representa para a Igreja de todos os tempos, desempenha um papel fundamental na organização da intriga literária da segunda mesa em Lucas. É a ação do Espírito que molda a comunidade, que aparece como o sujeito de apoio da narrativa - um sujeito composto exatamente por ser comum. O “comum”, portanto, constitui a assembleia dos crentes, a tornam tal – os quais o expressam por meio de gestos de compartilhamento igualitário daquilo que sustenta a vida humana.
Não é a partilha dos bens que faz a communitas cristã, mas o fato de que a convocação do Espírito se realiza precisamente como ser-comum; é esse fundamento prático que acende a possibilidade daquele modo de ser da Igreja que se expressa na justiça evangélica da partilha igualitária - pela qual não se é abstratamente todos iguais, mas, ao contrário, concretamente todos diferentes. A força do “comum” é honrar essa diversidade sem que ela seja sentida com ressentimento.
A expressão do sacramento do compartilhamento, possibilitado pelo ser-comum ao qual o Espírito dá acesso, ocorre no gesto que deposita aos pés dos apóstolos o ganho do “comum”. É, portanto, a este último que eles devem sua autoridade, que se acende dentro da comunidade (pela primeira vez) na forma passiva de reconhecimento (e não na forma ativa de exercício). Se a força constituinte do “comum” for perdida, essa autoridade fica sem fundamento - literalmente apoia no nada; se pensarmos em uma primazia do exercício, que torna ornamental o reconhecimento, a autoridade apostólica fica sem legitimidade - pode ser juridicamente válida pelo tempo que se quiser, mas sai daquela dinâmica constituinte que a torna tal. Pensar no reconhecimento como estratégia de governo (da Igreja), como tende a fazer o Instrumentum laboris do Sínodo para tornar digerível a sinodalidade para os bispos, é não entender que é exatamente o reconhecimento que gera a autoridade de alguns dentro da comunidade - na ausência dele, e de sua anterioridade, o que fica nas mãos apostólicas é um poder impositivo e coercitivo. Alienante, de fato - porque dispensa alguns do preço que o “comum” pede a todos para pagar para ser como deve ser.
O fato de que na evidência do reconhecimento surja a autoridade apostólica na Igreja demonstra, mais uma vez, a capacidade de diferença e diferenciação própria do “comum”. A equitas não torna todos iguais de forma amorfa, mas, ao contrário, quer que cada um receba de acordo com a sua necessidade - e isso só é possível se todos permanecerem no “comum”, onde as aspirações dos poderes mundanos são desativadas de seu ser força constituinte que não pode ser selada dentro em um quadro institucional definido.
O papel estratégico do “comum”, princípio organizador da construção da comunidade cristã, aparece novamente na repetição da cena da deposição que vê como protagonista Barnabé. A ênfase concedida objetivamente excede a materialidade de seu gesto e, portanto, é uma indicação de outra coisa - certamente não de sua maior generosidade em comparação com os outros, até porque a justiça da equidade interdita qualquer mecanismo de comparação. Em vez disso, a cena mostra que Barnabé também, como o resto da communitas, é movido pela força indisponível, mas exprimível, do “comum”. E é isso que o legitima dentro da comunidade de Jerusalém. A legitimação do ser-comum nunca é para benefício próprio, mas para o benefício do sujeito coletivo que ele torna possível. Com Barnabé, isso fica evidente: a autoridade que o ser-comum lhe confere perante a comunidade de Jerusalém está a serviço da comunhão com o cristianismo dos gentios de Paulo. Porque este último, ao lado de Barnabé, ele próprio entra na luz daquele “comum” que sempre tinha tentado aniquilar em sua expressão.
Um nexo que precisamente o “comum” de Lucas destaca: para falar do e para o judaico-cristianismo, Lucas fala a linguagem política helenística - e, ao fazê-lo, dirige a palavra a ambos os lados do cristianismo que ouvem sua narrativa e procuram se reconhecer nela. O “comum” não é, portanto, um espaço delimitado nem um lugar identificável, mas sim uma lógica operacional que move os atores do sujeito coletivo que nele encontram seu sentido.
A escatologia cristã se anuncia, na visão que Jesus tem dela, como o desbloqueio do suporte que o “comum”, que faz seu trabalho sem chegar à consciência de quem é movido pela sua força, representa para o destino feliz do humano - assim pode ser entendido “o fizeram por mim” de gestos que tocam existências comumente humanas, marcadas pelo fracasso que a vida pode representar para muitos. Nunca nos salvamos sozinhos, e certamente nunca nos salvamos sem o outro completamente inesperado (e aparentemente insignificante em relação à justificação religiosa de nosso destino pessoal) - ao contrário, é precisamente o seu estar, o seu ser-comum, que se torna a razão para a salvação das nossas existências.
Dessa forma, se pode começar a pensar em uma santidade que, em vez de estar alicerçada do acúmulo de méritos, de acordo com a lógica da privatização da salvação, é desempenhada inteiramente em sua dispersão, de acordo com a equidade operativa do “comum”. A ele nossos mortos e nossos santos permanecem tenazmente ligados, sem saber como e quando o que eles depositaram sustentará a necessidade de cada um - mas certos de que todos e todas, de agora até o último dia, poderão haurir dele sem mérito algum.
Palestra proferida durante a Semana Teológica em Camaldoli.
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Salvação, singular plural. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU