11 Mai 2022
O mistério não se alimenta apenas de conteúdo interno ou de procedimentos administrativos, mas exige uma forma externa que respeite a linguagem simbólico-ritual de que se constitui.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 07-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode ocorrer que, em uma rápida consideração, se possa achar que o termo “substância”, no âmbito da teologia dos sacramentos, pode se referir exclusivamente à eucaristia e descreva, propriamente, o nível mais íntimo e mais secreto do sacramento eucarístico. O que muda do pão e do vinho, de fato, é verdadeira e realmente apenas a substância.
A substância seria, por isso, aquela dimensão do ser que não se oferece diretamente à percepção dos sentidos, mas que é captada pelo intelecto auxiliado pela fé, na qual ocorre a mudança mais decisiva e significativa: aquela que permite ao corpo e sangue de Cristo de estarem presentes aqui e agora, na realidade da história e do mundo que estamos vivendo, como prova de uma vida que, por meio da morte, tem acesso à plenitude do amor.
A substância, porém, indica nesse caso aquilo que muda no coração eucarístico da Igreja, enquanto os acidentes permanecem inalterados. O mistério, no seu cerne, é dito com uma acepção invertida da noção de substância: ela se torna, pelas lógicas da graça, a referência a uma invisibilidade, que pode ser acessada com uma reviravolta: a substância é o que muda, e o acidente, o que permanece.
A noção clássica, que distingue no ser a substância do acidente, é utilizada, mas de forma invertida, colocando de cabeça para baixo os significados clássicos.
No entanto, a linguagem escolástica também encontrou outra forma de usar a terminologia da substância em relação aos sacramentos. Ela aparece claramente no uso mais clássico do conceito de “substância”, mediante o qual se quer indicar a “resistência última” da “res”, do “dom da graça”, no que diz respeito à ação livre da Igreja.
Nesse caso, por “substância” do sacramento se indica aquilo que, por direito divino, é subtraído da disponibilidade eclesial (Concílio de Trento, Sessão XXI, DH 1728). A fórmula “salva eorum substantia” identifica, no fundo, a intersecção entre “forma, matéria e ministro” que é causa de graça, aquilo que é imutável/divino em relação ao mutável/eclesial.
Aqui, como é evidente, a relação entre substância e acidentes parece ser mais clássica, pois se refere à substância que permanece, enquanto o acidente indica aquilo que muda. Nesse caso, a tradição sobre os sacramentos fala exatamente a mesma linguagem da metafísica e utiliza a noção de substância no sentido comum do termo, a fim de uma distinção entre o que pode mudar e o que permanece.
Por meio desse modo complexo de utilizar as palavras da tradição cultural, a mediação da fé se torna possível, segundo essa dupla acepção de substância, por um duplex ordo, natural e sobrenatural. A doutrina do sacramento se adapta a essa abordagem (e talvez seja a sua secreta inspiradora), porque raciocina de modo duplo e com uma forte tensão interna:
- no nível visível, a substância do sacramento é a resistência à mudança. A substância é aqui o que a tradição metafísica usou como noção, ou seja, “substrato permanente”: na mudança das formas com as quais a Igreja assume a sua posição na história, um “resto” imutável a assegura e a conduz. Esse “resto” é o que ela recebeu e que guarda como um “depositum”. A fidelidade à substância torna-se a condição da sua identidade, da continuidade da fé na descontinuidade da história;
- no nível invisível, a substância do sacramento eucarístico é a possibilidade/realidade da mudança, e assim o mistério se torna “abertura à novidade”. Neste caso, o nível da “substância” é aquele que muda, que sofre uma conversão, que permite a irrupção do eschaton. Na continuidade dos acidentes, a descontinuidade da substância é presença do Senhor, sua autoridade, sua graça, sua e nossa esperança.
Há, assim, na sacramentaria mais clássica, um duplo uso do conceito de “substância”, que prevê um significado duplo e inverso do termo. O que esse modelo produz ao longo dos séculos, porém, não é a conexão entre as duas lógicas, mas a progressiva autonomização de cada uma delas. E é esse efeito, certamente não previsto no início, que complica a nossa vida:
- a lógica da substância “no plano formal” tende a reduzir o ato eclesial "ao seu mínimo": se aquilo que atribui validade permanece em uma “substância mínima”, reduzida a pouquíssimos traços essenciais do sacramento, isso influencia diretamente na “gestão sintética” do próprio sensível, que é continuamente reconduzido à sua “não necessidade”. Essa se tornará a lógica de uma consideração do sacramento como “officium”.
- a lógica da substância que opera no nível do “conteúdo” tende, por sua vez, a anular e a desqualificar toda ação, porque opera em um nível excluído de toda percepção, invisível e ingerível, que, por isso, tende a desviar a atenção da mediação sensível e a concentrá-la na imperceptível conversão substancial e suprassensível. Esta se tornará a lógica de uma consideração do sacramento como “sinal” e como “causa”.
Os dois significados diferentes de “substância”, que operam no plano da forma e do conteúdo, convergem, no entanto, em um ponto: na determinação a deslocar a atenção da contingência para a necessidade de uma substância que, quanto mais for salvaguardada, mais atrai para si todas as atenções.
Em ambos os casos, está em jogo a ação de Deus, e não a ação da Igreja: tanto a “permanência” da substância (do sacramento) quanto a “conversão” da substância (do pão e do vinho) atraem sobre si uma atenção tanto disciplinar quanto doutrinal. Um duplo ato seletivo da experiência torna-se uma consequência da dupla abstração entre “necessário e contingente” e entre “invisível e visível”. A gestão do mistério assume, assim, por um lado, a via “negativa” e “formal” do “mínimo necessário”; por outro, a via “intelectiva” e “afetiva” da “profundidade de uma mudança imperceptível”. Essa polarização, no entanto, põe em crise o sacramento.
La fundación de la Orden Trinitaria, de Juan Carreño de Miranda (Fonte: Wikimedia Commons)
Por isso, não é arriscado defender que a “recuperação da forma visível” do sacramento (entendida como “forma ritual”), proposta pelo Movimento Litúrgico a partir do fim do século XIX, resgata a liturgia do sentido de minoridade ao qual ela tinha sido forçada pelo longo período da teologia escolástica e moderna, e implica uma grande revisão da relação entre “mistério” e “substância”. Isto é, é interrompido o duplo canal com o qual mistério e substância se sustentavam mutuamente, tanto no nível da lógica “oficial” quanto no nível da lógica “sacramental”.
Se a “forma visível” se torna relevante de forma não acessória, isto é, como passagem de necessária mediação, a redutibilidade “substancial” do mistério se torna não mais praticável, sem um dano grave para o próprio sacramento: isso vale tanto em termos de uma “definição de competências” entre a Igreja e o seu Senhor, quanto nos termos da relação entre os acidentes do sacramento e a sua verdade.
Esse duplo front do saber, que elaborou a sua linguagem com tanta delicadeza, está sendo agora posto a dura prova. O motivo é justamente a sua incapacidade de “conservar o mistério”. Tanto a dogmática jurídica e disciplinar quanto a dogmática teológica e doutrinal foram postas em crise e devem agora encontrar novas formas de expressão, para não impedir uma experiência de síntese. Daí também nasce um terceiro significado do termo substância.
Essa reconsideração da tradição sacramental tem um efeito muito singular sobre o próprio conceito de “substância”, que assume assim um terceiro significado surpreendente. É preciso observar que, para além do desenvolvimento litúrgico, que certamente e não por acaso foi o mais consistente no período pós-conciliar – não esqueçamos que, depois do Concílio Vaticano II, a única verdadeira reforma foi a litúrgica – é certo que o que fundamentou teologicamente o campo de experiência aberto pelo Vaticano II foi um conceito diferente de “substância”, não pensado nem como “limite resistente”, nem como “profundidade invisível”, mas como “fenômeno nutriente”.
Esse é, de modo singular, o resultado de uma compreensão surpreendente das palavras de João XXIII, confiadas ao texto do grande discurso Gaudet Mater Ecclesia, com o qual o papa abriu o Concílio e que, no seu centro, encontra uma expressão mediante a qual ele define sinteticamente a “índole pastoral do Concílio”: “Uma coisa é a substância da antiga doutrina do depositum fidei, outra coisa é a formulação do seu revestimento” [1].
Esse texto, que três das quatro versões oficiais alteram profundamente no seu significado mais importante [2], manifesta aquele uso do termo “substância” que G. Ruggieri, em um famoso artigo (“All’origine del Vaticano II: l’intuizione profetica di Giovanni XXIII”, Chiesa e Storia, 3[2013], 83-98), identificou como típico do glossário do padre Angelo Roncalli, depois do bispo, do cardeal e finalmente do papa.
Nessa acepção do termo, que não é “metafísica”, mas “histórica”, substância significa “aquilo que nutre”, aquilo que é “alimento substancial” da tradição. E, como tal, não se identifica nem com um limite nem com um conceito, mas com figuras da experiência do “crescimento”, como são, nos textos de Angelo Roncalli, uma “fonte”, o “missal”, o “cálice” ou o “breviário”.
Essa exterioridade nutriente da substância talvez seja o elemento mais evidente de continuidade entre o Movimento Litúrgico e João XXIII, e nos ajuda a compreender de que modo essa nova visão da substância permite compreender também a virada que a liturgia reformada trouxe para a experiência eclesial.
Tento concluir com uma frase um pouco forte, mas necessária: a teoria do ex opera operato, elaborada no nível sacramentaria geral, na intenção de conservar o “mistério”, na realidade contribuiu para “formalizá-lo”. A relação entre dom e tarefa é muito mais complexa e articulada do que um “dom secreto” garantido por uma “ação formal”.
Com o termo “substância”, favorecemos indiretamente um certo desinteresse pela contingência dos acidentes, tanto no plano do conteúdo quanto no plano da forma. A estilização formal do “opus operantes” não contribui para a potência do mistério, mas o esvazia e o isola.
A recuperação de uma adequada correlação entre “ação de Deus” e “ação do homem” tornou-se a tarefa fundamental dessa redescoberta do tríplice significado de substância. O mistério não se alimenta apenas de conteúdo interno ou de procedimentos administrativos, mas exige uma forma externa que respeite a linguagem simbólico-ritual de que se constitui: esta se torna uma provocação para superar decisivamente as reduções que uma metafísica da substância trouxe in re theologica, confiando antes o discurso de sacramentis a uma “relação suprassubstancial” da qual se constituem originalmente tanto a abertura ao mistério quanto a própria irrupção do mistério. Ou seja, aquele ato “revelativum” de Deus ao qual corresponde, acima de tudo, o ato “orativum” do ser humano (São Tomás de Aquino).
1. É curioso o fato de que esse texto original desapareceu quase totalmente do “discurso oficial”, como atestam as quatro versões presentes no site Vatican.va. Onde o latim, o italiano e o português perderam toda referência à “substância”, enquanto a versão espanhola, surpreendentemente, apresenta-se, para todos os efeitos, como a única tradução literal do italiano original e diz: “Una cosa es la substancia de la antigua doctrina, del ‘depositum fidei’, y otra la manera de formular su expresión”!
2. Se lermos a versão italiana traduzida do latim, encontra-se um texto análogo como suposto significado, mas construído de forma diferente, mediante a abolição do conceito decisivo de “substância”: “Altro è infatti il deposito della Fede, cioè le verità che sono contenute nella nostra veneranda dottrina, altro è il modo con il quale esse sono annunziate, sempre però nello stesso senso e nella stessa accezione” [Uma coisa é, de fato, o depósito da Fé, isto é, as verdades que estão contidas na nossa veneranda doutrina, outra coisa é o modo com o qual elas são anunciadas, mas sempre no mesmo sentido e na mesma acepção].
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A substância do sacramento: dois significados ou, melhor, três. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU