03 Setembro 2020
Stefano Visintin, monge beneditino, é o novo abade de Praglia. Em seu passado, um diploma superior em física nuclear e a docência em teologia fundamental no Pontifício Ateneu Sant'Anselmo de Roma, do qual também foi reitor. A entrevista que reproduzimos a seguir é inspirada em algumas provocações de seu interessante livro Come meridiani nelle vicinanze del polo. Scienza, teologia, religione (Como meridianos nas proximidades do polo, em tradução livre, Ciência, teologia, religião, EDB, 2018).
A entrevista é editada por Gianluca Valpondi, publicada por Reteluna Itália e reproduzida por Settimana News, 30-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Come meridiani nelle vicinanze del polo.
Scienza, teologia, religione
Stefano Visintin
Existem várias interpretações da mecânica quântica. Quais são compatíveis com a fé católica e com a reta razão?
A questão da interpretação da mecânica quântica existe desde o seu surgimento até os dias atuais, sem solução e com o acréscimo de novas interpretações possíveis. A palavra “interpretações” já nos diz que não se trata de uma leitura necessária dos dados científicos, mas apenas de sua possível interpretação. Estamos falando, portanto, de uma possível leitura que inevitavelmente se baseará em determinados pressupostos filosóficos e, implícita ou explicitamente, também metafísicos. O importante é estar cientes desse fato. O resto, a sua razoabilidade e a sua conciliação com a fé, serão avaliado caso a caso, tendo a consciência de estar dentro de um diálogo filosófico e não apenas científico.
Multiverso ou universo? Mas o ser não é, em todo caso, um?
Tanto com o Universo quanto com o Multiverso, a questão metafísica fundamental sempre permanece: por que existe algo em vez de nada? Ou seja, uma explicação sempre deve ser encontrada para o porquê de algo existir (leis físicas, vácuo quântico ...) de onde tudo se originou. E essa explicação deve ser tal que não levante novamente a questão do porquê ela existe. Para bloquear essa corrente que sempre remete a uma causa mais fundamental, é necessário chegar a uma causa que por sua vez não tenha causa ou seja causa de si mesma, uma causa eterna e necessária, em outros termos, divina.
O caminho proposto por Paul Davies para evitar a alternativa entre teísmo e multiverso pode ser reconduzida até a ideia de uma “complexidade irredutível”?
Paul Davies pensa que a teoria do multiverso seja na realidade um cripto-teísmo, um teísmo disfarçado pois não consegue eliminar totalmente a ideia da presença de um plano ou projeto inteligente. Na minha opinião tem razão, pois certamente o nosso Universo, mas também um Multiverso capaz de produzir um Universo como o nosso (com vida autoconsciente) têm uma complexidade tal que é razoável pensar neles, do ponto de vista filosófico ou teológico, apenas como resultado de um plano ou projeto. Posto isto, ele propõe então uma explicação possível, elaborada precisamente para evitar que se fale de design ou plano inteligente. Por essa razão, sua proposta não pode ser reconduzida até a ideia de Michael Behe de uma "complexidade irredutível" que visa, ao contrário, apoiar a ideia da existência de um plano ou um design inteligente.
A ideia de John Wheeler de uma circularidade entre natureza e observador da natureza tem algo a ver com o sintetismo sujeito-objeto do Beato Antonio Rosmini?
A ideia de John Wheeler certamente pressupõe um papel participativo do observador na realidade observada, mas vai além disso na medida em que diz que essa mesma realidade emerge das informações contidas em nossas observações. Ele leva ao extremo a ideia de que não exista uma realidade independente do observador, a ponto de afirmar, como mencionado acima, que a informação contida em nossas observações não são apenas o que aprendemos sobre o mundo, mas o que o faz mundo. Acho que esse papel do observador vai além do que disse o Beato Antonio Rosmini.
Admitido e não garantido que o Verbo crucificado e ressuscitado seja o arquétipo por meio do qual o primeiro homem foi criado, pode-se afirmar que a causa final da existência da própria natureza física das coisas também seja sua causa inicial? Ou, ainda, que a autoconsciência do cosmos seja a contraparte espaço-temporal da eterna, infinita e imutável autoconsciência de Deus? Já estamos no panteísmo? No panenteísmo? Catolicamente, o fim do homem não é justamente ser Deus por participação?
Em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, temos uma antecipação do fim da história. Vemos o fim para o qual tende o ato criador. Um ato criador realizado, porém, por um Deus que também transcende a realidade criada e, portanto, nos permite falar de um fim intencional perseguido por um Ser inteligente que planeja as causas iniciais para alcançar o fim desejado. Portanto, não há nenhuma circularidade entre causa final e causa inicial. Olhando para Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, vemos que nosso fim é o de participar da vida divina. Essa participação, porém, não é uma participação que nos cabe "por natureza", mas "por graça". Deus cria uma realidade distinta de Si mesmo e a chama para entrar livremente na vida divina. Não é panteísmo, a realidade criada é de fato distinta de Deus, mas Mistério da Trindade em que a criação é chamada pelo Pai a participar por Cristo e no Espírito na vida de comunhão divina. Finalmente, no homem, a criação atingiu o estado de autoconsciência, a própria criação torna-se consciente de si mesma e da oferta, feita pela graça, de participação na vida divina. Essa mesma autoconsciência pode ser vista como reflexo da participação, sempre "pela graça", em Deus. À medida que aumenta o grau de participação, aumenta a autoconsciência. Também aqui não há panteísmo pois se fala de "participação" "pela graça" da realidade criada no divino e não da mesma idêntica realidade.
A teoria das (super) cordas, cientificamente, se sustenta? Aproxima-se de algo como a "teoria de tudo" ao reunir sem contradições mecânica quântica e teoria gravitacional, física nuclear e astrofísica?
A teoria das (super) cordas é uma "teoria de tudo", pois busca manter juntos sob um único guarda-chuva matemático todos os aspectos físicos fundamentais do nosso Universo. Há algum tempo, entretanto, registram-se objeções dentro do mundo científico justamente em relação à sua "cientificidade", pois se trata de uma sofisticada construção matemática que até agora não pode reivindicar a seu favor qualquer verificação experimental, direta ou indireta. Talvez um dos primeiros e mais acalorados críticos tenha sido o físico teórico Peter Woit com seu livro "Not even wrong".
Antonino Zichichi: um ponto de referência importante para quem quer lidar seriamente com a ciência, sem perder a bússula da fé? Qual é o "super mundo" de que fala?
O termo "super-mundo" usado por Antonino Zichichi indica os mais recentes desenvolvimentos na física subnuclear, em especial a Teoria da Supersimetria, as Extras Dimensões e Teoria das Cordas. O "super-mundo" é o conjunto de todas essas teorias conectadas em cascata umas às outras. A crítica a esse conjunto de teorias é a mesma vista acima, pois, embora extremamente fascinantes, ainda não produziram previsões experimentalmente verificáveis. Quanto a Zichichi como "guia" seguro no campo da ciência-fé, não tenho motivos para duvidar, mas não estou bem familiarizado com sua obra nesse âmbito.
"Teologia da ciência", "teleologia da ciência", "neofinalismo" ... do que se trata?
O pensamento de Teilhard de Chardin pode ser considerado como um tipo de teologia natural que quer lançar bases racionais para o discurso sobre Deus feito pela teologia; bases racionais que possam ser compartilháveis em nosso tempo marcado pela presença de uma forte cultura científica. Seu pensamento pode ser visto como uma ponte entre o que a ciência diz sobre o universo (especialmente em torno do conceito de "evolução") e a metafísica e a teologia. Na realidade, porém, os limites da teologia natural de Teilhard de Chardin são mais amplos do que aquela "clássica" (existência de Deus e imortalidade da alma), pois incluem, sempre nesse espírito de conexão entre discurso teológico e cultura científica, muitos outros questões: criação, cristologia, doutrina do pecado original, atividade humana, espiritualidade. Além disso, essa sua teologia natural não se direciona tanto para o que está atrás de nós e no início, mas para o que está à nossa frente, para o futuro, para o fim e ao fim de tudo. Tanto que para ele a ciência pura pode, no máximo, existir quando olhamos para trás, mas não quando olhamos para a frente, para o fim da história, pois aqui acabamos nos encontramos necessariamente no campo da religião. Religião e ciência são vistas por ele como duas fases de um mesmo processo de conhecimento, o único capaz de abranger simultaneamente passado (talvez de forma puramente científica) e futuro (certamente em relação à religião) da evolução cósmica. Com seu pensamento, nos deparamos, portanto, com uma nova realidade que deve ser indicada com um novo nome. Como, por exemplo, teologia da ciência. Mas, levando em conta a sua particular ênfase no finalismo dos processos evolutivos cósmicos, bem como o fato de o seu pensamento adquirir originalidade sobretudo graças à sua componente científica, talvez o nome mais adequado, inclusive com um jogo de palavras pertinente, seja teleológica da ciência.
O princípio da incerteza de Heisenberg, e a teoria quântica em geral, nos dizem que há um limite para a capacidade humana de investigação científico-galileana, além do qual se entra no campo da metafísica e da religião? Estava certo, e o que quis dizer, Niels Bohr quando certa vez afirmou que se você não se assusta com a mecânica quântica, então você realmente não a entendeu ainda?
O princípio da incerteza indica que existem aspectos mutuamente exclusivos da realidade de forma que nós não podemos conhecer igualmente bem um e o outro. Ambos os aspectos estão presentes na realidade, mas quando vamos medi-los só conseguimos conhecer bem um ou o outro. O limite está, portanto, em nossa capacidade de conhecimento da realidade sob seu aspecto quantitativo; é uma limitação interna da física. Como nem tudo na realidade é quantificável e mensurável, há outra limitação ligada ao tipo de conhecimento propiciado pela física e que requer, portanto, o uso de outros modos de conhecimento, como aquele filosófico, metafísico e religioso.
Você escreve em seu livro (p. 34) "se o conceito fundamental para explicar a existência é o de ‘relação’, então, na base de nossa própria realidade material, não deveríamos esperar encontrar ‘objetos’, mas sim ‘relações’ e ‘interações’: essas seriam a realidade fundamental e última”. A relação Criador-criatura é uma relação imaterial com o que é material ou uma relação material com o que é imaterial? Estou pensando novamente no corpo glorioso de Cristo, no qual tudo subsiste, no qual tudo é constantemente criado. Afinal, se assim podemos dizer, do próprio Deus, não existe a relação sendo Deus "relações subsistentes"?
Do ponto de vista teológico, quando se fala de "relação" em Deus, entre Deus e a realidade criada, na realidade criada e glorificada, a referência primária é o Espírito de Deus, o Espírito Santo. O Espírito é a Comunhão entre Pai e Filho, no Espírito há inabitação mútua de Deus na realidade criada e da realidade criada em Deus. Do ponto de vista científico, quando se vai estudar os constituintes elementares da matéria, no final se encontra um campo de massa-energia e informação (que organiza, relaciona ...), nada "material" portanto. Obviamente, trata-se de duas maneiras diferentes de chegar aos fundamentos da realidade, mas ambas concordam em identificar no fundamento não "objetos", mas realidades "espirituais".
A complexidade infinita e a simplicidade perfeita coincidem? Essa coincidência ocorre (apenas) em Deus?
O termo "simples" tem vários significados. Aplicado a Deus, significa seu ser não composto, não dividido, não separável, nem divisível, mas absolutamente unitário e perfeito. E é essa perfeição que é compartilhada com as criaturas, de modo que cresce à medida que aumenta seu grau de complexidade. A complexidade da criação é um atributo de perfeição e a substância natural mais complexa (o homem) é o que mais se aproxima da simplicidade absoluta de Deus. No limite, portanto, quando essa complexidade cresce ao infinito atinge a simplicidade divina e aí, mas apenas aí, coincidem.
Criação como sistema-aberto e redenção como sistema-definitivamente-aberto: parece-me uma visão verdadeiramente fascinante, além de realista. Mesmo para um não crente, certo?
Considerar a criação um sistema aberto está, sem dúvida, em sintonia com o que atualmente conhecemos do nosso universo e, por isso, torna-se capaz de falar e dizer algo para muitas pessoas. Lembremo-nos, porém, que mesmo que o processo seja único nele podemos distinguir sem separá-los três momentos: a criação no início; a criação na história; a criação no fim dos tempos. Esta última é então concebida como a inabitação de Deus na nova criação (sem ser absorvido por ela), em que o finitum se torna capax infiniti. Por isso, esse último momento exige uma visão de fé.
Que papel ou lugar o inferno tem no pensamento e na visão de Teilhard de Chardin?
Teilhard de Chardin é famoso por ter uma visão otimista do curso da história e sobre a chegada à meta final na qual Deus será tudo em todos. No entanto, ele não nega que para alguns também exista a possibilidade de um fim negativo da história, ou seja, do inferno. Ele reza para que "o fogo do inferno" nunca atinja ninguém ou se pergunta como se poderia falar de uma redenção universal em Cristo se o inferno fosse excluído, mas não nega a possibilidade de sua existência.
Digitalização da existência: nós mesmos estamos construindo nossa gaiola?
O perigo é justamente esse. Devemos ter o cuidado para não nos pensarmos, nos imaginarmos, nos desenharmos e, por fim, chegar a espelhar com fidelidade aquele modelo digital de homem que nós próprios definimos como modelo. Assim, por exemplo, a amizade torna-se apenas amizade das redes sociais e o pensar torna-se apenas a capacidade de elaborar dados. Em outras palavras, o nosso pensamento, as nossas relações, a nossa pessoa são reduzidos ao seu modelo digital: portanto, não são os modelos digitais que sobem ao nosso nível, mas somos nós que descemos ao deles.
Realidade aumentada, internet das coisas, implantes de microchips, upload da mente humana para um computador ... nostalgia ou ilusão dos corpos gloriosos?
Certamente. Com esses meios o homem quer transcender a si mesmo, quer se tornar um novo ser, melhor em todos os aspectos e imortal. O homem novo e glorioso do Cristianismo é colocado como uma meta a ser alcançada através da tecnociência. O homem se "salva", portanto, sozinho, o homem se torna deus ou pelo menos se aproxima do que indicamos com esse nome só por suas únicas forças. Essa é a tentação do homem desde sempre, essa é a raiz do pecado original, esse é o deslumbramento do homem que, ao se descobrir como espírito, pensa que é Espírito absoluto. Em vez disso, é um espírito que depende e se apoia no Espírito de Deus. Portanto, somente permanecendo em contato com esse Espírito divino e movendo-se sob sua inspiração, ele encontrará salvação, imortalidade e glória.
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Entre a física e a metafísica, o fascínio do mistério - Instituto Humanitas Unisinos - IHU