16 Março 2024
Há uma antropologia do amor e do casamento a ser reescrita, protegendo a singularidade e a verdade profunda de cada um de nós e de cada relação.
O comentário é de Stefano Fenaroli, teólogo italiano, publicado em Vino Nuovo, 13-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não sou um liturgista, nem um especialista em teologia sacramental, mas despertou a minha curiosidade o processo institucional que acompanhou a questão relativa à bênção de casais homossexuais. O último ato (por enquanto) desse roteiro, a declaração Fiducia supplicans do último 18 de dezembro de 2023, relembra brevemente a trama que o precedeu, ou seja, um Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé, de fevereiro de 2021, a resposta a uma das cinco Dubia levantadas por alguns cardeais em julho de 2023.
O primeiro ato estabelece claramente a não licitude das bênçãos para pessoas do mesmo sexo, pois “implicam uma prática sexual fora do casamento” e os “elementos positivos” que nessa relação também poderiam existir não bastam para “coonestar” a própria relação, que permanece “ao serviço de uma união não ordenada ao desígnio do Criador”.
O segundo ato, assinado pelo próprio Papa Francisco, reitera essa doutrina, segundo a qual o que deve ser protegido é a realidade do sacramento do matrimônio e, portanto, deve-se evitar qualquer rito ou sacramental (incluindo as bênçãos) que possa "dar a entender que se reconhece como casamento algo que casamento não é”.
Por outro lado, introduz-se também outro critério, ou seja, a “caridade pastoral”, segundo a qual a defesa da verdade deve ser acompanhada do amor ao próximo, do reconhecimento da situação particular de cada um, sem necessariamente querer dar forma institucional a uma determinada prática ritual ou sacramental. Abre-se, portanto, o caminho, ainda que timidamente, à procura, guiada pela “prudência pastoral”, de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma concepção errada do matrimônio”.
Chegamos assim, depois dessa rápida revisão, ao último ato, dedicado ao sentido pastoral das bênçãos e, nesse contexto, ao “problema” dos casais homossexuais. Vamos percorrer rapidamente o documento Fiducia supplicans até o n. 31, onde encontramos a explicitação para o caso concreto do que foi exposto teórica e biblicamente nos números anteriores. Para não “produzir confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio”, pode-se evitar a fixação ritual e invocar uma bênção aos casais, ou seja, um pedido de ajuda de Deus, sem implicar assim o reconhecimento de um específico status. Essa distinção passa por um “estilo” litúrgico diferente, “não pelas formas rituais próprias da liturgia, mas como expressão do coração materno da Igreja”, portanto uma bênção que “nunca será realizada contextualmente aos ritos civis de união e nem mesmo em relação a eles. Nem com vestimentas, gestos ou palavras típicas de um casamento”.
Esta, muito rapidamente, é a história. Que interpretação poderíamos dar? Repito, não sou um liturgista nem um estudioso de teologia sacramental. E nem acho que seja necessário. Na realidade, surpreende-me a forma como o problema ligado ao que poderíamos definir como o “reconhecimento” da relação de amor entre pessoas homossexuais tenha sido diretamente conectado, ou no mínimo seja proposto algum acolhimento dentro da estrutura eclesial, desviando o centro da questão para as bênçãos, sobre o seu significado e as suas diferentes explicitações, menos institucional e mais atenta a uma certa “caridade pastoral”. O problema, portanto, seria resolvido (novamente) ignorando aquilo de que se fala e desenvolvendo novas minúcias em torno da “maneira” com que dele se fala. Vamos evitar falar de homossexualidade e, em vez disso, focar no que significa “bênção”, e vamos tentar fechar as contas.
Falo a título pessoal, isso é claro, mas estamos realmente convencidos de que o pedido daqueles que gostariam de ser vistos com outros olhos, de se sentirem acolhidos e reconhecidos na sua fé, na sua comunidade, como discípulos de Jesus, com todas as suas experiências e decepções de amor com o parceiro ou a parceira homossexual, possam estar, ainda que remotamente, satisfeitos com essa "solução"? Realmente não percebemos como, no final, de qualquer forma aquilo que eles vivenciam como amor concreto, numa história que aos seus olhos reflete realmente aquele mesmo amor que desde sempre Deus é e que em Jesus foi revelado, não é levado em consideração, e menos ainda é reconhecido na sua bondade, na sua licitude e na sua capacidade de ser sinal no mundo da presença amorosa de Deus?
Num livro que teve, talvez com razão, pouca repercussão, tentei abordar o tema do amor e do casamento segundo uma chave cristã diferente. Será certamente um texto a ser retomado e que gostaria de ampliar, especialmente no que diz respeito a esse tema. Limitar-me-ei aqui a ressaltar como claramente o amor homossexual se distingue do amor heterossexual pela impossibilidade de se abrir à geração. Isso, na minha opinião, torna-o “algo” diferente do amor heterossexual, mas ainda assim uma forma específica de verdadeiro amor.
Porém, pergunto-me: é possível reduzir o sentido da geração ao único processo físico-biológico que pode dar à luz a um filho ou uma filha? É possível reconhecer o mesmo significado simbólico, que biologicamente se encontra na concepção de uma nova vida, quando falamos, por exemplo, de uma adoção? Não se trata também nesse segundo caso de acolher alguém, certamente já gerado por outros, numa espécie de regeneração, de nascimento para uma vida nova, abrindo-o a uma vida boa e encarregando-se desse mesmo bem que é prometido? Em outras palavras, no caso da geração biológica heterossexual, bem como da adoção (nesse caso homossexual), nem sempre se trata de manter uma promessa de bem para com alguém que nos é confiado e que em si é objeto (e símbolo) do nosso amor (e daquele de Deus)?
O discurso é certamente complexo, mas acredito que vale a pena iniciá-lo e desenvolvê-lo, sobretudo porque considero decididamente urgente começar a olhar para o amor homossexual não como um problema em si ou como uma cláusula que pode ser resolvida de uma forma quase grotesca, movendo estranhas alavancas em matéria de teologia sacramental, canonística ou litúrgica. Estamos falando de pessoas, de histórias, de relações que como tais devem ser reconhecidas, acolhidas e preservadas na sua própria singularidade amorosa.
Eu sou o primeiro (e disse isso em Il custode di questa storia) a defender como as diferentes formas de amor devem ser distinguidas, mas acredito que como tais devem ser abordadas e consideradas. Não estamos dando um “prêmio de consolação” a alguém, não se trata de exceções incômodas a serem enquadradas segundo padrões em que, como bons consertadores eclesiais, nos sentimos à vontade, mas que, francamente, não afetam ninguém, com exceção dos encarregados das obras (quantos sabem a diferença entre sacramento e sacramental?).
Há uma antropologia da fé, do amor e do casamento a ser reescrita, protegendo a singularidade e a verdade de cada um, de cada relação, na profundidade que é própria de cada um, com a transparência, a coragem e a consciência histórica dos tempos que estamos vivendo, porque afinal essa é a única forma que temos de prestar contas hoje, como em todos os tempos, da fé, da esperança e da caridade que há em nós, em cada um de nós.
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Ecce omo. Seja abençoado! Artigo de Stefano Fenaroli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU