23 Janeiro 2024
O ex-núncio nos EUA e inimigo irredutível do Papa Francisco fundou uma associação para sacerdotes que não se reconhecem no magistério do pontífice. Rumores de sua reconsagração como bispo por parte de Williamson, o ex-bispo lefebvriano que foi excomungado e excluído também da Fraternidade São Pio X.
A reportagem é de Francisco Peloso, publicada por Domani, 17-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Servo de Satanás: essa é uma das acusações mais duras dirigidas ao Papa Francisco por Carlo Maria Viganò, ex-núncio nos Estados Unidos, agora de volta às barricadas para liderar as tropas mais enfurecidas do antibergoglismo, após a publicação de Fiducia supplicans, o documento de Dicastério para a Doutrina da Fé que permite aos padres de todo o mundo abençoar os casais em situações irregulares, inclusive aquelas entre pessoas do mesmo sexo, mesmo mantendo inalterada a doutrina da Igreja sobre o casamento entre homem e mulher. Afinal, isso foi suficiente para que vários oponentes de Francisco elevassem o tom de forma inusitada. O antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ludwig Gerhard Müller, falou em blasfêmia ("a bênção de uma realidade que se opõe à criação, não só não é possível, mas é blasfema"), o Cardeal Robert Sarah, também um dos mais ferrenhos inimigos do Papa argentino, disse, por sua vez, que “algumas mídias afirmam que a Igreja Católica incentiva a bênção das uniões de pessoas do mesmo sexo. Mentem. Fazem o trabalho do divisor (ou seja, do diabo, ndr)".
Alguns bispos, acrescentou, fazem o mesmo: “Semeiam dúvidas e escândalos nas almas dos fiéis pretendendo abençoar as uniões homossexuais como se fossem legítimas, em conformidade com a natureza criados por Deus, como se pudessem conduzir à santidade e à felicidade humana”.
Em suma, Fiducia supplicans escancarou as portas às mais ferozes acusações contra o Papa. No entanto, parece que, pelo menos em parte, esses tons tão inflamados sejam mais resultado de frustração e sinal de falta de perspectivas, ou seja, uma agressividade filha das circunstâncias e da raiva mais que de uma estratégia bem precisa.
O caso de Viganò é exemplar nesse sentido; de fato, já circula há vários dias em muitos sites da área tradicionalista, a notícia de que o ex-núncio se tenha feito reconsagrar bispo por Richard Williamson, um ex-bispo católico inglês, excomungado por Roma por ter realizado várias ordenações ilegítimas; até agora a notícia não foi negada. Williamson, lembra-se, fazia parte dos lefebvrianos, a Fraternidade de São Pio X, da qual se afastou por ela não ser, afinal, suficientemente antipapista, aliás, esta era a acusação, buscava um acordo com a Santa Sé para retornar dentro da Igreja católica.
Assim o bispo deu origem a um cisma dentro do cisma, fundando a União Sacerdotal Marcel Lefebvre. Em total rota de colisão com o Concílio Vaticano II, ("A podridão de uma maçã não é a maçã em si, mas gruda-se à maçã enquanto apodrece. Da mesma forma, a igreja conciliar se gruda à igreja católica que apodrece", afirma Williamson segundo o que reporta o site da organização que ele fundou), mas passou para a história sobretudo pelas suas afirmações antissemitas: da negação das câmaras de gás à afirmação da existência de uma conspiração judaica para dominar o mundo.
Por isso foi também condenado por um tribunal alemão a uma multa, a validade da condenação foi depois confirmada em 2019 pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de Estrasburgo, ao qual Williamson havia se dirigido acusando a Alemanha de ter violado o seu direito à liberdade de expressão.
De acordo com o Tribunal Europeu, portanto, os tribunais alemães agiram corretamente ao condenar o bispo ultratradicionalista por incitamento ao ódio.
Em qualquer caso, Viganò fundou por sua vez, no verão passado, uma associação, Exsurge Domine, para “ajudar sacerdotes e religiosos vítimas dos expurgos bergoglianos”. Recentemente foi divulgada a notícia de que também está sendo construída uma estrutura para abrigar os desertores, o Collegium tradicionalis na Ermida de Palenzana, não muito longe de Viterbo.
Trata-se, explica o site do Collegium, “uma vasta propriedade na província de Viterbo. Os trabalhos já estão numa fase avançada, tanto em relação à renovação como à reforma dos prédios existentes e à construção de novas edificações".
Por outro lado, Viganò não tem dúvidas, ele mesmo se define como “a única voz livre na Igreja católica", que continua "corajosamente o seu ministério episcopal na tutela da Tradição imutável da Igreja e na preservação do sacerdócio católico”. Em relação ao Papa Francisco responsável pela Fiducia supplicans, o juízo é, desnecessário dizer, sem apelo: “Os falsos pastores, os servos de Satanás a começar pelo usurpador que está sentado no trono de Pedro”, como o definiu o ex-diplomata do Vaticano numa declaração de vídeo divulgada na web; o documento em questão, acrescentou, “soa zombeteiro e enganoso porque a confiança no perdão de Deus sem arrependimento chama-se presunção de salvar-se sem mérito e é um pecado contra o Espírito santo”. Cultura
Aquela de Francisco, portanto, “é uma falsa preocupação pastoral para com adúlteros e sodomitas". Segundo ele, o Papa “deseja tornar a Igreja uma concubina da nova ordem mundial". E ele se pergunta “o que nos impedirá no futuro de abençoar o poliamor, a pedofilia ou a bestialidade do amor animal, seria sempre em nome do acolhimento".
É preciso dizer que esses tons virulentos, acompanhados pela fundação de uma associação, cujo caráter cismático parece evidente, não são escolhas que agradaram a determinados setores fundamentalistas e tradicionalistas mais atentos, que julgam criticamente a escolha de Viganò de se colocar de fato por fora da Igreja católica, ainda mais se fosse confirmada a reconsagração por Williamson, o que implicaria a excomunhão latae sententiae, ou seja, imediata, do arcebispo.
Assim, enquanto o Papa, até na TV, confirma a sua ideia de uma Igreja aberta a todos, a qualquer pessoa em busca de Deus, em nome da misericórdia, o que emerge das reações à decisão do Vaticano de consentir, ainda que sob certas condições, às bênçãos a casais homossexuais é um quadro extremamente fragmentado da galáxia extremista do tradicionalismo católico, até hoje sem a capacidade de expressar uma verdadeira liderança, em que se confundem vozes, fugas para frente e posições pessoais.
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Viganò ultrapassa os lefebvristas pela direita: a frente tradicionalista se divide depois da Fiducia supplicans - Instituto Humanitas Unisinos - IHU