Viganò ultrapassa os lefebvristas pela direita: a frente tradicionalista se divide depois da Fiducia supplicans

Foto: Canva Pro | Aaron90311

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

23 Janeiro 2024

O ex-núncio nos EUA e inimigo irredutível do Papa Francisco fundou uma associação para sacerdotes que não se reconhecem no magistério do pontífice. Rumores de sua reconsagração como bispo por parte de Williamson, o ex-bispo lefebvriano que foi excomungado e excluído também da Fraternidade São Pio X.

A reportagem é de Francisco Peloso, publicada por Domani, 17-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Servo de Satanás: essa é uma das acusações mais duras dirigidas ao Papa Francisco por Carlo Maria Viganò, ex-núncio nos Estados Unidos, agora de volta às barricadas para liderar as tropas mais enfurecidas do antibergoglismo, após a publicação de Fiducia supplicans, o documento de Dicastério para a Doutrina da Fé que permite aos padres de todo o mundo abençoar os casais em situações irregulares, inclusive aquelas entre pessoas do mesmo sexo, mesmo mantendo inalterada a doutrina da Igreja sobre o casamento entre homem e mulher. Afinal, isso foi suficiente para que vários oponentes de Francisco elevassem o tom de forma inusitada. O antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ludwig Gerhard Müller, falou em blasfêmia ("a bênção de uma realidade que se opõe à criação, não só não é possível, mas é blasfema"), o Cardeal Robert Sarah, também um dos mais ferrenhos inimigos do Papa argentino, disse, por sua vez, que “algumas mídias afirmam que a Igreja Católica incentiva a bênção das uniões de pessoas do mesmo sexo. Mentem. Fazem o trabalho do divisor (ou seja, do diabo, ndr)".

Alguns bispos, acrescentou, fazem o mesmo: “Semeiam dúvidas e escândalos nas almas dos fiéis pretendendo abençoar as uniões homossexuais como se fossem legítimas, em conformidade com a natureza criados por Deus, como se pudessem conduzir à santidade e à felicidade humana”.

Em suma, Fiducia supplicans escancarou as portas às mais ferozes acusações contra o Papa. No entanto, parece que, pelo menos em parte, esses tons tão inflamados sejam mais resultado de frustração e sinal de falta de perspectivas, ou seja, uma agressividade filha das circunstâncias e da raiva mais que de uma estratégia bem precisa.

Viganò e Williamson

O caso de Viganò é exemplar nesse sentido; de fato, já circula há vários dias em muitos sites da área tradicionalista, a notícia de que o ex-núncio se tenha feito reconsagrar bispo por Richard Williamson, um ex-bispo católico inglês, excomungado por Roma por ter realizado várias ordenações ilegítimas; até agora a notícia não foi negada. Williamson, lembra-se, fazia parte dos lefebvrianos, a Fraternidade de São Pio X, da qual se afastou por ela não ser, afinal, suficientemente antipapista, aliás, esta era a acusação, buscava um acordo com a Santa Sé para retornar dentro da Igreja católica.

Assim o bispo deu origem a um cisma dentro do cisma, fundando a União Sacerdotal Marcel Lefebvre. Em total rota de colisão com o Concílio Vaticano II, ("A podridão de uma maçã não é a maçã em si, mas gruda-se à maçã enquanto apodrece. Da mesma forma, a igreja conciliar se gruda à igreja católica que apodrece", afirma Williamson segundo o que reporta o site da organização que ele fundou), mas passou para a história sobretudo pelas suas afirmações antissemitas: da negação das câmaras de gás à afirmação da existência de uma conspiração judaica para dominar o mundo.

Por isso foi também condenado por um tribunal alemão a uma multa, a validade da condenação foi depois confirmada em 2019 pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de Estrasburgo, ao qual Williamson havia se dirigido acusando a Alemanha de ter violado o seu direito à liberdade de expressão.

De acordo com o Tribunal Europeu, portanto, os tribunais alemães agiram corretamente ao condenar o bispo ultratradicionalista por incitamento ao ódio.

Uma escola em Viterbo

Em qualquer caso, Viganò fundou por sua vez, no verão passado, uma associação, Exsurge Domine, para “ajudar sacerdotes e religiosos vítimas dos expurgos bergoglianos”. Recentemente foi divulgada a notícia de que também está sendo construída uma estrutura para abrigar os desertores, o Collegium tradicionalis na Ermida de Palenzana, não muito longe de Viterbo.

Trata-se, explica o site do Collegium, “uma vasta propriedade na província de Viterbo. Os trabalhos já estão numa fase avançada, tanto em relação à renovação como à reforma dos prédios existentes e à construção de novas edificações".

Por outro lado, Viganò não tem dúvidas, ele mesmo se define como “a única voz livre na Igreja católica", que continua "corajosamente o seu ministério episcopal na tutela da Tradição imutável da Igreja e na preservação do sacerdócio católico”. Em relação ao Papa Francisco responsável pela Fiducia supplicans, o juízo é, desnecessário dizer, sem apelo: “Os falsos pastores, os servos de Satanás a começar pelo usurpador que está sentado no trono de Pedro”, como o definiu o ex-diplomata do Vaticano numa declaração de vídeo divulgada na web; o documento em questão, acrescentou, “soa zombeteiro e enganoso porque a confiança no perdão de Deus sem arrependimento chama-se presunção de salvar-se sem mérito e é um pecado contra o Espírito santo”. Cultura

Aquela de Francisco, portanto, “é uma falsa preocupação pastoral para com adúlteros e sodomitas". Segundo ele, o Papa “deseja tornar a Igreja uma concubina da nova ordem mundial". E ele se pergunta “o que nos impedirá no futuro de abençoar o poliamor, a pedofilia ou a bestialidade do amor animal, seria sempre em nome do acolhimento".

É preciso dizer que esses tons virulentos, acompanhados pela fundação de uma associação, cujo caráter cismático parece evidente, não são escolhas que agradaram a determinados setores fundamentalistas e tradicionalistas mais atentos, que julgam criticamente a escolha de Viganò de se colocar de fato por fora da Igreja católica, ainda mais se fosse confirmada a reconsagração por Williamson, o que implicaria a excomunhão latae sententiae, ou seja, imediata, do arcebispo.

Assim, enquanto o Papa, até na TV, confirma a sua ideia de uma Igreja aberta a todos, a qualquer pessoa em busca de Deus, em nome da misericórdia, o que emerge das reações à decisão do Vaticano de consentir, ainda que sob certas condições, às bênçãos a casais homossexuais é um quadro extremamente fragmentado da galáxia extremista do tradicionalismo católico, até hoje sem a capacidade de expressar uma verdadeira liderança, em que se confundem vozes, fugas para frente e posições pessoais.

Leia mais.