28 Fevereiro 2024
"Enquanto o mundo assinalava no dia 24 passado o segundo aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia, o fracasso até hoje de todos os esforços diplomáticos, incluindo os do Vaticano, para pôr fim à guerra era dolorosamente claro".
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 25-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A razão mais óbvia para esses fracassos, é claro, é o fato de nem a Rússia nem a Ucrânia terem ainda demonstrado qualquer interesse real em fazer o tipo de concessões que seriam necessárias para uma solução negociada.
No entanto, no que diz respeito especificamente ao Vaticano, há uma série de fatores adicionais que ajudam a explicar por que seus esforços para desempenhar um papel de mediação foram insuficientes, e recentemente um novo fator começou a se destacar: o fato de que as agendas externa e interna do Papa Francisco podem estar em conflito em relação ao envolvimento com a Rússia.
Na verdade, a própria flexibilidade e o pensamento não tradicional que tornam Francisco mais aberto à agenda geopolítica e diplomática ad extra da Rússia, ou seja, em relação ao mundo mais amplo, também podem tornar este papa algo difícil de ser engolido pelos russos ad intra, ou seja, em relação à vida interna da Igreja.
Esse pensamento vem à mente à luz da reação ortodoxa russa ao Fiducia supplicans, o controverso documento do dia 18 de dezembro do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano, que autoriza os padres a administrarem bênçãos não litúrgicas a casais envolvidos em relacionamentos “irregulares”, incluindo as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Embora o documento tenha gerado uma enorme controvérsia dentro do rebanho católico, ultimamente também começou a se tornar o foco da reação ecumênica, incluindo uma nova nota crítica da Comissão Sinodal Bíblico-Teológica do Patriarcado de Moscou, ou seja, a liderança da Igreja Ortodoxa Russa.
De acordo com uma declaração do dia 20 de fevereiro publicada no site do Patriarcado de Moscou, a comissão examinou o documento sob a direção do Patriarca Kirill, e foi unânime ao chegar à conclusão de que “esta inovação reflete um acentuado afastamento do ensino moral cristão”.
A declaração seguiu-se a uma entrevista anterior concedida pelo Metropolita Hilarion Alfeyev de Budapeste, chefe da comissão que estudou a declaração Fiducia supplicans e ex-número dois na estrutura de poder ortodoxa russa depois de Kirill, na qual Hilarion se referia ao documento como “uma espécie de choque”.
“Todos agora acreditarão que a Igreja abençoa casais homossexuais”, disse ele, insistindo que o documento, assim, “engana aqueles que recebem tal bênção e aqueles que a testemunham”.
Hilarion geralmente é visto como um dos moderados na hierarquia ortodoxa russa, e não como parte da linha dura firmemente antirromana.
A reação negativa à declaração Fiducia supplicans contrasta com a ampla abertura do papa à Rússia no front geopolítico, em que substancialmente ele está mais próximo da posição do Brics – agora Brics mais seis, com a admissão da própria Argentina de Francisco, assim como da Arábia Saudita, Irã e outros – do que de Washington, Bruxelas ou da Otan.
Em grande parte do mundo em desenvolvimento, não existe nenhuma presunção de que as potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos, tenham qualquer monopólio da virtude moral, nem qualquer convicção generalizada de que a Rússia deva ser excluída do sistema internacional. De acordo com a The Economist, o número de nações neutras no conflito na Ucrânia ou que apoiam a posição da Rússia é de cerca de 70, representando quase dois terços da população mundial, incluindo a Índia e a China.
Nesse sentido, a política do Papa Francisco de se recusar a condenar nominalmente o presidente Vladimir Putin e de dar pistas de que a Rússia pode ter tido preocupações legítimas de segurança com o fato de a Otan “latir à sua porta”, o que contribuiu para o conflito, está em sintonia com sua agenda mais ampla de descolonização da política externa do Vaticano, o que significa uma mudança de uma instituição predominantemente ocidental para uma instituição verdadeiramente global.
Falando pouco antes do aniversário de sábado, o enviado escolhido a dedo pelo pontífice para o conflito, o cardeal italiano Matteo Zuppi, empregou mais uma vez o tipo de retórica que ocasionalmente levou os ucranianos, especialmente os católicos ucranianos, ao afastamento.
É importante, disse Zuppi em uma entrevista ao jornal italiano La Stampa, “lembrar, apesar da tentação de uma polarização que nada tem a ver com a compreensão dos problemas, que todas as guerras são sempre fratricidas”.
“É sempre Caim quem mata seu irmão Abel”, disse ele.
Francisco também usou o termo “fratricídio” em múltiplas ocasiões para se referir ao conflito, sempre atraindo protestos de ucranianos que insistem que essa não é uma luta entre irmãos, mas sim uma guerra de conquista na qual há um agressor claro e uma vítima clara.
Sabendo que muitos ucranianos acham essa expressão irritante, o fato de Zuppi ainda a usar é revelador.
Desde o início de seu papado, Francisco tem desfrutado de uma relação relativamente amigável com Putin, e os dois já encontraram uma causa comum antes. Em 2013, Francisco e Putin uniram forças na oposição ao que parecia à época um impulso ocidental ao uso da força militar na Síria para promover uma mudança de regime, mantendo efetivamente Assad no poder.
Em uma entrevista em março de 2023, Francisco também se esforçou para descrever Putin como um homem de cultura.
“Ele me visitou três vezes como chefe de Estado, e era possível ter uma conversa de alto nível com ele”, disse o papa. “Falamos sobre literatura uma vez. Ele é um homem que não fala apenas russo. Ele fala alemão fluentemente e fala inglês. É instruído.”
Tudo isso sugere que, política e diplomaticamente, Francisco e seus aliados não fazem parte do consenso antirrusso das potências ocidentais, uma posição que teoricamente poderia posicionar bem o Vaticano para agir como intermediário.
Por outro lado, qualquer esforço desse tipo teria provavelmente de passar pela Igreja Ortodoxa Russa – que, como vimos, pode apreciar o estilo diplomático do pontífice argentino, mas parece ter dúvidas sobre alguns elementos de sua abordagem teológica e doutrinal. levantando assim questões sobre o nível geral de confiança nessa relação.
A partir da perspectiva amplamente de centro-esquerda deste papado, os desejos de promover a paz em todo o mundo, de ouvir a voz do mundo em desenvolvimento e de ir ao encontro de grupos anteriormente marginalizados, como a comunidade LGBTQ+, sem dúvida são da mesma natureza.
O caso da Rússia, contudo, sugere que as coisas nem sempre são assim tão simples. Às vezes, um elemento da sua agenda pode realmente estar em conflito com outro, por mais consistentes internamente que possam parecer.
Então, aqui começa a parte verdadeiramente difícil: é preciso escolher.
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No aniversário da guerra na Ucrânia, Fiducia supplicans é um obstáculo ao esforço de paz do Vaticano? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU