14 Novembro 2023
Kohei Saito, filósofo marxista japonês que se voltou para a ecologia motivado pela catástrofe de Fukushima, ganhou grande notoriedade internacional com o seu trabalho sobre o comunismo de decrescimento. Nesta entrevista ao Green European Journal, Saito explica o que o socialismo e o ambientalismo podem aprender um com o outro e o motivo pelo qual o Japão, economicamente estagnado e devastado por uma pandemia, acabou sendo um território fértil para as ideias decrescentistas.
O Capital no Antropoceno, publicado no Japão em 2020, alcançou um sucesso sem precedentes. A previsão é que Slow Down: The Degrowth Manifesto seja publicado em inglês, em inícios de 2024.
A entrevista foi publicada originalmente por Green European Journal e reproduzida por El Salto, 13-11-2023. A tradução é do Cepat.
Como passou a se interessar por Marx e depois pelo comunismo de decrescimento?
Descobri as obras de Marx e Engels aos 18 anos, quando comecei meus estudos na Universidade de Tóquio, em grupos de estudantes que lutavam para proteger os trabalhadores jovens. Inicialmente, fiquei mais interessado na exploração da classe trabalhadora e depois cada vez mais pela desigualdade em geral, depois que a crise de 2008 agravou a situação no Japão. Marx havia alertado justamente a respeito destes problemas, que só ganhariam mais importância no futuro. Então, decidi me mudar para a Alemanha para continuar estudando Marx.
Em 2011, depois do terremoto no Japão e da catástrofe nuclear de Fukushima, percebi que o capitalismo não se limita apenas à exploração dos seres humanos, mas também engloba essas tecnologias colossais que foram criadas em busca de lucros e que, em última instância, trouxeram consigo um verdadeiro desastre para a vida de muitas pessoas no Japão.
Então, você chegou ao mundo da ecologia através da questão nuclear, em vez da climática?
Inicialmente, eu estava mais otimista em relação ao desenvolvimento da tecnologia, mas depois de Fukushima, comecei a refletir sobre a tecnologia e o capitalismo e perdi parte desse otimismo. Também comecei a me interessar mais pela questão da mudança climática em 2014, após ter lido Tudo pode mudar, de Naomi Klein.
Apesar de tudo, continuava otimista. Pensava que algumas medidas políticas socialistas, com um planejamento maior e trabalho garantido, poderiam alcançar a igualdade e, ao mesmo tempo, maior sustentabilidade. Foi quando comecei a ler mais e me deparei com as obras de Jason Hickel, Giorgos Kallis e a abordagem do decrescimento em geral.
Não restava dúvida de que havia certa tensão entre Marx e o decrescimento e em torno de Marx e a crise climática, sendo assim, comecei a ler suas obras mais tardias. Passei a reinterpretar as suas ideias, em particular os seus estudos sobre as sociedades pré-capitalistas.
Percebi que Marx havia se interessado por essas sociedades pré-capitalistas porque são Estados essencialmente estáveis não orientados para o crescimento. E, apesar disso, conseguiram garantir a sustentabilidade e a qualidade de vida para toda a população. Foi assim que cheguei à tese do comunismo de decrescimento.
Como você relaciona o decrescimento com o comunismo? O comunismo não quer mais e o decrescentismo menos?
Essa é a tensão que existe na tradição marxista e ambientalista. A corrente política socialista aposta no desenvolvimento tecnológico para conseguir mais para todos: é necessário que haja mais desenvolvimento, mais progresso, mais eficiência. O ambientalismo ressalta que há um consumo excessivo e uma superprodução, por isso defende uma desaceleração para proteger a natureza.
Não obstante, acabei percebendo que Marx estava interessado em ambas as questões: proteger a vida de todas as pessoas e proteger a natureza. Não há necessidade de ter mais em um sentido capitalista. Quando Marx fala em abundância, não se refere a termos jatos particulares ou mansões. Pretende dizer que podemos viver de forma abundante, viver uma boa vida, tendo cuidado médico e transporte universais, com moradia, água, eletricidade e recursos básicos garantidos, sem a mediação do dinheiro.
Esse tipo de abundância pode constituir a nova base para o socialismo e o comunismo porque se baseia na igualdade. Contudo, se quisermos ter mais no sentido atual da palavra, o resultado será uma catástrofe ecológica. O caminho intermediário passa pela redefinição de abundância e, na linha de Hickel, eu a denomino abundância radical. É um tipo de abundância muito diferente, na qual compartilhamos coisas, ajudamos uns aos outros e temos uma sensação de segurança.
Levando em consideração a situação do planeta, o ecossocialismo produtivista é plausível? Ou é necessário assumir que o velho sonho marxista chegou ao seu fim?
Sem o ambientalismo, a política socialista gira em torno de alcançar uma maior igualdade por meio do aumento da produção e do consumo. Contudo, o mundo todo não pode viver como Bill Gates, nem como a classe média alta alemã. Não é sustentável. Os socialistas criticam o capitalismo, mas, ao mesmo tempo, permanecem presos aos valores capitalistas.
Devemos também levar considerar que se continuarmos consumindo mais energia e recursos, continuaremos explorando recursos, energia e mão de obra dos países do sul global. Portanto, se verdadeiramente queremos considerar a igualdade e a sustentabilidade em escala planetária, não basta nos basearmos somente na tecnologia. Também precisamos pensar na forma como vivemos, na maneira como produzimos as coisas.
A política socialista se torna novamente muito importante neste sentido, porque são justamente as pessoas ricas as responsáveis por esta produção e consumo excessivos. É preciso taxar a riqueza e proibir bens como os jatos privados, os cruzeiros e as grandes mansões.
Isto nos permitirá reduzir a produção e o consumo, mas também ter mais tempo livre, aumentar o nosso bem-estar e garantir certo espaço para o desenvolvimento do sul global. Feito isto, devemos pensar em maneiras de reduzir o nosso consumo material, sobretudo nos países do norte global. O excesso de confiança na tecnologia nos impede de ver que o nosso modo de vida não é sustentável.
Há quem diga: “Eu quero um ambiente saudável e um clima estável, mas não esta agenda ideológica”. De fato, é necessário que o ambientalismo seja anticapitalista?
Sim, é. Os ambientalistas devem estar conscientes de que é necessário questionar o capitalismo. Hoje, acreditar que um imposto sobre o carbono pode resolver o problema é ser otimista. Precisamos de medidas mais agressivas, como proibir as indústrias poluentes e reduzir a publicidade. Estas medidas são contrárias à lógica do capitalismo.
Não resta dúvida de que precisamos de grandes investimentos em novas tecnologias, como as energias renováveis. Agora, no capitalismo, mesmo que desenvolvamos tecnologias, continuaremos trabalhando jornadas muito longas e consumindo cada vez mais.
No capitalismo, embora a tecnologia nos permita aumentar a eficiência, é utilizada com um único fim: produzir cada vez mais. E é precisamente por esta mesma razão que também temos que trabalhar cada vez mais para ganhar dinheiro e recomeçar.
Quanto maior a eficiência, maior a produção e, portanto, maior o consumo de recursos e energia. Deste modo, não poderemos resolver a crise climática. A única forma de alcançar uma nova forma de entender a sociedade é juntando estes dois conceitos: ambientalismo ou decrescimento e socialismo ou comunismo.
Por que o seu livro ‘O Capital no Antropoceno’ se tornou tão popular no Japão?
Foi uma grande surpresa. Marx e o decrescimento não costumam ser temas muito populares no Japão, mas foram vendidos cerca de meio milhão de exemplares. A tradução alemã já esteve entre os 10 livros mais vendidos na Der Spiegel. Então, algo está acontecendo.
O livro foi colocado à venda no Japão em plena pandemia. Naquele momento, tivemos que desacelerar o nosso estilo de vida. Os restaurantes estavam fechados, as pessoas trabalhavam de casa e não saíam. Dedicavam mais tempo à família e cozinhavam em casa.
Reduzimos o nosso ritmo de vida e, graças a isso, tivemos tempo para refletir sobre o nosso estilo de vida anterior. Por que passávamos mais de uma hora por dia indo para o trabalho? Por que compramos tantas roupas? Percebemos que esse estilo de vida não nos trazia nenhum tipo de felicidade, simplesmente estávamos acostumados a ele. Contudo, podíamos mudar.
Paralelamente, durante a pandemia, houve pessoas que passaram a ser chamadas de “trabalhadores essenciais”, pessoas que estavam expostas aos riscos da Covid 19, mas que tinham salários muito baixos e jornadas exaustivas. Enquanto isso, as pessoas que ganham um bom salário trabalhavam de casa, com muito mais segurança. E durante a pandemia ganhavam ainda mais dinheiro.
Essa desigualdade econômica significou um escândalo social no Japão. Eu fiz uma crítica à questão de uma posição de esquerda e a população aceitou que o capitalismo é um problema.
Parece que a economia japonesa está voltando aos níveis anteriores à pandemia, mas há décadas se sabe que o país enfrenta um crescimento lento e uma estagnação do crescimento populacional. Isso também é um fator de atração pelo seu trabalho?
A recessão e o decrescimento são duas coisas muito diferentes. O que o Japão viveu nas últimas décadas não é o decrescimento, e a falta de crescimento sustentado em uma sociedade capitalista gera enormes problemas. Precisamos de uma transição consciente para uma sociedade pós-crescimento.
Os millenials e a geração Z não se lembram dos dias de glória dos anos 1980 e não são tão otimistas em relação ao progresso futuro do Japão. Portanto, reivindicamos uma nova sociedade que não assuma o crescimento. Isto é o que proponho com o comunismo decrescentista.
Como podemos avançar em direção a esse objetivo? É necessário que haja uma revolução para alcançar o comunismo de decrescimento, como ocorre com o comunismo clássico?
Eu não faço um chamado a uma revolução como a russa. Não acredito que possamos acabar com este sistema por meio da tomada do poder. Mesmo que tomássemos o poder no parlamento nacional, isso não mudaria o sistema econômico. O mais realista é a ideia de Rosa Luxemburgo de uma realpolitik revolucionária por meio de reformas; taxando a riqueza para introduzir uma renda máxima, por exemplo.
As reformas e as medidas políticas podem gerar muitas mudanças em nossa forma de perceber as coisas e de agir em nosso dia a dia, mesmo que não consigam acabar com o capitalismo de modo imediato. Contudo, uma transformação de nossa consciência e de nossos comportamentos cotidianos nos permite ampliar o espaço para exigir mudanças mais radicais.
Em minha opinião, é assim que avançaremos gradualmente para uma sociedade baseada no decrescimento. Há pessoas (sobretudo jovens) na Alemanha, na França e até nos Estados Unidos que estão exigindo esse tipo de transformação. É um processo progressivo, mas penso que nos anos 2030 veremos esse tipo de mudança transformadora que provocará uma mudança sistêmica em todo o mundo.
Os países capitalistas avançados, como Japão e Alemanha, estão mais preparados para o comunismo de decrescimento?
Algumas cidades como Amsterdã, Barcelona, Paris e Nova York têm um potencial extraordinário. Em nível local, estão sendo introduzidas novas ideias, como a economia da rosquinha. Não espero que ocorra uma mudança de cima para baixo, como na Revolução Russa, mas de baixo para cima; e as cidades oferecem mais oportunidades para intervir na esfera política e fomentar a mudança. As cidades são alguns dos lugares onde devemos lutar mais e tomara que isso se estenda à esfera nacional.
“Comunismo decrescentista” não é um termo desnecessariamente assustador? Para algumas pessoas, o decrescimento já é algo alarmante e você acrescenta a ele o comunismo e toda a bagagem que carrega.
Pela mesma razão, não esperava que O Capital no Antropoceno fosse um best-seller. O Japão tem tradição marxista, mas fora das universidades não é um termo muito positivo. O Japão é bastante capitalista e a população não acredita no marxismo, nem no socialismo. No entanto, as pessoas estão cansadas do capitalismo e, há muitos anos, a economia japonesa está em crise.
Há muito interesse em ideias mais radicais, mas o livro recebeu muitas críticas e admito que o conceito de comunismo decrescentista é muito incisivo. Não obstante, utilizo estes termos como uma espécie de provocação.
O que pretendo dizer é que o capitalismo não funciona e que não basta consertá-lo. Precisamos de ideias como o decrescimento e o comunismo para, pelo menos, explorar novas possibilidades. Se as pessoas começarem a falar sobre novas ideias fora do capitalismo, então, acredito que o meu livro já teve sucesso.
Os Estados comunistas eram conhecidos pelo seu planejamento central. É necessário recuperar a ideia de planejamento econômico, ou seja, de que o Estado tenha mais peso nas decisões econômicas, como a respeito do volume de produção de bens, por exemplo?
Sim, é necessário. Por isso, o decrescimento deve aprender do comunismo ou, ao menos, do socialismo. A corrente socialista tem uma longa tradição de planejamento econômico. Existem planejamentos muito ruins, como o planejamento burocrático extremamente centralizado da União Soviética, mas não é o único. Poderíamos explorar formas de planejamento diferentes e mais democráticas.
Os que defendem o decrescimento não costumam gostar de falar sobre isso porque associam qualquer tipo de planejamento ao stalinismo e propõem a introdução de pequenas mudanças e reformas pontuais. Parece-me que isto não é o suficiente: também é preciso falar e planejar quais tipos de indústrias precisamos e quais não.
O capitalismo não investirá na proteção da natureza, nem na construção de grandes projetos de infraestruturas. Simplesmente, não é rentável. Se quisermos proteger o planeta, precisamos de um planejamento cuidadoso e da intervenção do Estado.
Talvez a inteligência artificial desempenhe um papel neste processo, ou talvez recorramos à democracia local. Ainda não temos a solução, mas temos de resolver a questão sobre como planejaremos a transição para a sociedade que desejamos.
Descreva um dia normal para um cidadão normal, em uma sociedade comunista decrescentista.
Já agora, podemos reduzir a jornada de trabalho para quatro dias e acredito que, com a ajuda da tecnologia, no futuro poderíamos reduzi-la para três. Ou seja, trabalhar 25 horas por semana. O que faremos com todo esse tempo livre? Passaremos mais tempo com a família. Vamos nos dedicar à jardinagem, talvez praticar esportes.
Faremos algum voluntariado e participaremos, a nível político, do planejamento de nossa produção e na atuação de nosso governo local. Não iremos para o trabalho de carro, mas, sim, de ônibus e metrô, e a organização de nosso local de trabalho será mais horizontal.
Deveríamos ter maior rotatividade no trabalho. As novas tecnologias nos permitem compartilhar mais e um maior rodízio nas tarefas. Eu, por exemplo, que sou professor universitário, também poderia lecionar em comunidades locais ou na prisão. Além disso, podemos usar as nossas habilidades, capacidades e tempo não só para ganhar dinheiro, mas também para formar comunidades e educar as novas gerações.
No mais, as coisas básicas são muito parecidas com as de agora. Quando você chega em casa, pode tomar uma cerveja ou talvez ir à sauna. Não passaremos muito tempo em centros comerciais, nem visitaremos a Coreia ou Taiwan, no fim de semana.
Passaremos mais tempo na natureza e em lugares onde possamos relaxar, mas não voltaremos ao estilo de vida de 120 anos atrás. Continuaremos utilizando a tecnologia e desfrutando boas refeições com amigos e familiares.
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“Foi assim que cheguei à tese do comunismo de decrescimento”. Entrevista com Kohei Saito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU