26 Outubro 2023
Assíduo divulgador nas redes sociais e programas de televisão, Fernando Valladares entra agora no mundo editorial com La recivilización: Desafíos, zancadillas y motivaciones para arreglar el mundo (Destino, 2023). O ser humano constrói a sua própria ruína, paradoxalmente, destruindo a natureza em que está inserido. Por isso, este doutor em biologia e pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas [Espanha] propõe um caminho no qual possamos renascer, de alguma forma, como espécie.
O especialista detalha os principais desafios que enfrentamos, os problemas que a sociedade encontrará para alcançar a mudança desejada, as razões que farão do decrescimento econômico algo inevitável e o porquê do debate entre colapsistas e possibilistas dentro do ecologismo.
A entrevista é de Guillermo Martínez, publicada por Ethic, 24-10-2023. A tradução é do Cepat.
Na primeira parte do livro, você explica que podemos escolher apenas entre três cenários: extinção, governança autoritária ou transformação. Em que se baseia cada um deles?
São simplificações de um leque mais amplo de cenários. O primeiro está ligado a não fazer nada, que é praticamente o que estamos fazendo agora. Não fazer nada já é uma decisão em si, e a ciência diz o que acontecerá se não agirmos. Não é necessário insistir muito para percebermos para onde caminhamos se continuarmos assim.
Outra possibilidade é que sejam os governantes e os responsáveis políticos que se encarreguem da questão. Isto poderia dar origem a um modelo de governança autocrático com a tomada de decisões mais ou menos ditatoriais. Significaria um profundo retrocesso nos direitos humanos e na saúde física e mental das pessoas. Os problemas logísticos mais urgentes poderiam ser resolvidos, mas a um custo muito alto.
Eu aposto no último, no cenário da transformação. É preciso virar tudo de cabeça para baixo para que o mundo possa melhorar. Cometeremos erros, não será fácil, mas temos muito a ganhar, sobretudo porque só temos a perder se continuarmos como até agora, em um sistema completamente insustentável.
De qual cenário considera que estamos mais próximos como sociedade mundial? E na Espanha?
O cenário global indica que estamos em um grau leve de colapso, embora em algumas regiões esse grau esteja em estágio avançado. Observa-se o colapso com a perda de recursos essenciais como a água, a alimentação e o acesso à educação e saúde. Estão ameaçados no Norte global e sua ausência ou perda é comum no Sul global, ainda que tenhamos normalizado. Temos que tomar decisões rápidas porque o cenário muda a cada dia.
Na Espanha, parece que as pessoas estão muito preocupadas com o meio ambiente, mas a sociedade não encontrou uma forma de canalizar o fato para a resolução do problema. A maioria das pessoas mal sinaliza a urgência para algumas coisas, além de reinar a falta de coordenação entre as ações individuais e coletivas e do setor público e privado. Também somos mais vulneráveis devido à nossa posição geográfica, à seca que poderemos sofrer e às nossas características climáticas.
Também aborda oito desafios que exigem falar abertamente, como você diz. O primeiro que você trabalha é o desafio natural. Você considera que este é o mais importante? Parece que todos os outros desafios estão subordinados a este.
Sim, mas não estou dizendo isso com o meu possível viés de cientista e ecólogo. Quando se escuta os grandes economistas do Fórum Econômico Mundial, eles próprios aceitam que as crises que enfrentamos não são econômicas em sua raiz. O mesmo acontece quando se escuta os médicos falarem das crises sanitárias. Todas as crises que sofremos, sejam elas geopolítica, social, sanitária ou energética, são apenas manifestações de crises ambientais. Se formos para os sintomas, a única coisa que faremos é adiar um pouco o colapso.
Na parte que trata do desafio econômico, você afirma que o sistema atual não funciona, ao menos como deveria funcionar para a sobrevivência e o conforto humano. Qual é o seu plano B?
Meu plano B é o de muitas outras pessoas que, há décadas, estão falando sobre o decrescimento econômico, que é inevitável. Não é um cenário que se possa escolher, é algo que vai acontecer. Até os próprios bilionários assinam manifestos para que aumentem seus impostos porque percebem que a sua bonança econômica está em risco no sistema atual.
O Plano B é planejar ao contrário do que fazemos há um século e meio. Em vez do objetivo ser que o PIB aumente, precisará diminuir. Como fazer isto? Com políticos corajosos, porque neste momento não ousam. São medidas difíceis de explicar. Imagine um candidato a presidente dizendo que sua proposta é decrescer 17%, por exemplo. As pessoas também precisam estar preparadas para entender bem o que significa e por que este deve ser o caminho futuro.
A democracia, a ideologia e a religiosidade surgem como o último desafio quando, a priori, poderiam ser consideradas categorias distantes do respeito e da preservação do meio ambiente, mas não é o caso. Por quê?
O problema de algumas ideologias e religiosidades muito marcadas é que possuem uma visão que confere uma grande primazia ao ser humano. É entendido como se estivesse isolado, sem qualquer suporte na natureza, como um conjunto de indivíduos e não como uma sociedade integrada. Trata-se de uma série de simplificações que servem para manter o modelo econômico, então, aquelas pessoas que as professam são obstáculos na hora de explicar o desafio civilizatório.
Contudo, há razão para o otimismo. No último sínodo, realizado neste mesmo ano, houve uma grande convergência nos objetivos, entre os quais estava que o ser humano convivesse em maior harmonia com a natureza. Outro exemplo é o Papa Francisco com a sua nova encíclica. Depois da Trindade, é um dos maiores mistérios que ele continue vivo, porque é algo que os crentes mais fechados têm de engolir como um sapo. É um grande avanço que pessoas tão influentes como ele digam coisas baseadas na ciência e no sentido comum.
Algumas pessoas confiam que a tecnologia poderá nos salvar do destino que você aborda. Isto é conhecido como “tecno-otimismo”. O que você responderia a essas pessoas?
Eu diria que não sejam tão ingênuas, que possuem uma atitude muito infantil. Suas ideias não se ajustam à dura realidade. Possuem uma espécie de confiança em que o ser humano será capaz de se sobrepor às leis da termodinâmica e fazer de um planeta finito algo infinito. É preciso trabalhar com o que temos hoje, e aí, sim, temos tecnologia de sobra para encarar uma mudança de civilização.
Outro conceito que começa a ser utilizado é o de “ecomodernismo”, que você também aborda no livro. Considera que se trata de um falso ecologismo? Quem pode estar interessado em promovê-lo?
A partir do momento em que o ecomodernismo almeja construir alternativas se fixando apenas nas bondades alcançadas no último século, passa a ser um falso ecologismo. Ocorrem alguns avanços indiscutíveis como a vacinação, a alfabetização e a melhora na expectativa de vida, que são sem dúvidas conquistas da humanidade. O ecomodernismo se fixa nessas questões para neutralizar o que há de pejorativo no conceito “antropogênico”.
Em vez de atenuar as coisas, como dizem os cientistas, seus defensores apontam cada vez mais para o alto. São coisas lunáticas, até divertidas se não estivéssemos falando da vida de milhões de pessoas e de nosso futuro como espécie a médio e longo prazo. Pensam, por exemplo, que se as coisas caminharem mal, poderemos viver em Marte.
Já comentou que o decrescimento é algo inevitável. Existem pessoas dentro do ecologismo contra o decrescimento?
O decrescimento desperta dúvidas e receios em muitas pessoas, e dentro do ecologismo há muitas orientações. Há certas pessoas que continuam se agarrando no milagre dos pães e os peixes, que procuram reconciliar o planeta com o modelo econômico preponderante. Talvez ajam assim por medo, desconhecimento ou como uma posição ideológica.
Outras pessoas defendem que se trata de uma posição muito utópica e que seria melhor aproveitar o que já existe sob a forma de energia renovável e tecnologias mais brandas e verdes para fazer melhor. Estão bem-intencionadas, mas, sim, é utópico adiar o momento de tomar as decisões mais duras.
Eu penso que nunca haverá um período de transição. Vemos que nada é gradual, que o clima não muda gradativamente e que as pandemias também não atacam de forma planejada. Temos que nos preparar para um futuro próximo muito turbulento, cheio de adversidades inesperadas, e tentar enfrentá-lo sem o decrescimento complicará as coisas.
Recentemente, iniciou um debate muito acirrado, em um setor do ecologismo, entre aqueles que poderíamos chamar de colapsistas e outros acadêmicos e ativistas mais possibilistas. Você se enquadra em algum desses rótulos?
Eu considero que o colapso é um dos cenários, mas isso é algo que, há muitos anos, está presente nos relatórios do IPCC. Na realidade, a partir de 3 ou 4 graus de aquecimento da atmosfera já entraríamos em colapso. Eu não quero imaginar um cenário catastrofista, mas dou exemplos de como avançamos nessa direção.
Por outro lado, apoio suavizar o conceito de colapso. Para quem não está muito envolvido com o mundo do ecologismo e das crises ambientais, isso pode criar uma certa aversão, seja por medo ou porque enxerga a perspectiva como muito catastrofista. É isso que busco com o livro, que as pessoas que não ouviram falar da crise da biodiversidade se interessem pelo que acontece e decidam fazer parte da solução.
Sem ir muito longe, no livro de Emilio Santiago, para além de seu título [Contra el mito del colapso ecológico], vê-se que há muitas nuances que vão nessa direção, de empoderar as pessoas para outras alternativas mais sociais e econômicas por meios das quais se possa superar o colapso.
Na realidade, você quase serve de ponte entre os colapsistas e os possibilistas.
Estou consciente disso e fico com as pernas tremendo, porque as pontes são os pontos mais vulneráveis. Eu tento estender pontes de forma ativa, é algo que faz parte de meu caráter: assumir essa responsabilidade e encontrar pontos de interesse e lógica nas diferentes posições, mas isso me estressa um pouco e me coloca em situações complicadas.
Por último, voltemos ao início. Sua obra se intitula ‘La recivilización’, ou seja, voltar a civilizar. Para isso, precisaremos reverter certos processos assimilados e internalizados. Quais são os principais?
Eu falaria de um, o maior de todos: o individualismo. É o que nos torna uma sociedade tão vulnerável. De fato, estamos no limite do que é uma sociedade porque mal estabelecemos uma rede para compartilhar valores. Fortalecer essa dimensão não só tornará o caminho possível para nós, como também fará nos sentirmos mais saudáveis e felizes. Se revertermos alguns efeitos secundários do capitalismo, como o afã produtivista, voltaremos a nos humanizar. Assim entraremos no abandono do antropocentrismo e caminharemos para o ecocentrismo.
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“O decrescimento não é algo que se possa escolher, é algo que vai acontecer”. Entrevista com Fernando Valladares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU