18 Outubro 2023
"O Primeiro-Ministro Netanyahu, que teve o cuidado de não aderir, mostrou ao Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, fotografias de três crianças horrivelmente desfiguradas na morte. Pode-se compreender a raiva de Israel pela ferida sofrida, que ultraja a humanidade como tal, mas quando as fotos das crianças mortas são usadas por um político para justificar um massacre que, até agora, causou a morte de 700 crianças em Gaza (um número que está destinado a crescer), fica uma impressão horrível", escreve Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 17-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No desolado campo de crueldades e lutos semeados por um conflito que dura, sem solução, há mais de 75 anos, os massacres indiscriminados perpetrados no sul de Israel pelos milicianos do Hamas só podem encontrar um precedente de igual barbárie no massacre no campo de refugiados de Sabra e Chatila executados em 16 de setembro de 1982 pelas falanges libanesas em que 3.500 pessoas inocentes, incluindo mulheres e crianças, foram massacradas.
Isso para mostrar que o método terrorista elevado à sua potência máxima não é o elemento discriminante para qualificar os sujeitos que o praticam. No Médio Oriente o terrorismo não é prerrogativa exclusiva de bandos que se dedicam ao terror inspirados por fanatismos políticos ou religiosos, mas também é praticado pelos estados. Além disso, é difícil distinguir entre guerra e terrorismo porque na guerra se tende a aterrorizar o adversário usando a morte e a ameaça de morte. Não por acaso os EUA denominaram o ataque ao Iraque em março de 2003 Shock and awe (“atacar e aterrorizar”). Na realidade, a guerra (que segundo Kelsen consiste em um homicídio em massa) é uma forma de terrorismo em grande escala. A única coisa que poderia distinguir a guerra do terrorismo é o direito humanitário (o ius in bello), se fosse respeitado pelos beligerantes. Se o direito internacional não desfruta de boa saúde, especialmente no Médio Oriente - muito menos o direito humanitário -, isso não autoriza a jogá-lo fora porque a alternativa seria resignar-se à propagação da barbárie, como em Kfar Azza, em 7 de outubro de 2023, ou em Sabra e Chatila, em 16 de setembro de 1982.
O direito humanitário ensina-nos que “em qualquer conflito armado o direito de as Partes no conflito escolherem os métodos ou meios de guerra não é ilimitado” (Protocolo de Genebra, art. 35). A regra fundamental é que “as Partes em conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes (…) devendo, portanto, dirigir as suas operações apenas contra objetivos militares” (art. 48). Consequentemente, são proibidos “ataques indiscriminados” e “atos ou ameaças de violência”, cujo objetivo principal seja espalhar o terror entre a população civil” (art. 51). Em particular “é proibido, como método de guerra, fazer com que os civis passem fome. É proibido atacar, destruir, retirar ou pôr fora de uso bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, (...) qualquer que seja o motivo que inspire aqueles atos, seja para provocar a fome das pessoas civis, a sua deslocação ou qualquer outro”.
A comunidade internacional pretendeu tornar o direito humanitário menos evanescente, qualificando como crimes internacionais (crimes de guerra) as violações do direto humanitário e instituindo uma Corte Penal Internacional. O Primeiro-Ministro Netanyahu, que teve o cuidado de não aderir, mostrou ao Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, fotografias de três crianças horrivelmente desfiguradas na morte. Pode-se compreender a raiva de Israel pela ferida sofrida, que ultraja a humanidade como tal, mas quando as fotos das crianças mortas são usadas por um político para justificar um massacre que, até agora, causou a morte de 700 crianças em Gaza (um número que está destinado a crescer), fica uma impressão horrível. A vida das crianças da população “inimiga” não conta nada.
Os países do Sul do mundo acusam o Ocidente de usar dois padrões, dois pesos e duas medidas de forma que os Estados Unidos e Israel podem violar impunemente aquelas regras de que pretendem o respeito pelos outros países. A impunidade que a comunidade internacional tem garantido às políticas israelenses de opressão aos palestinos se voltou contra o próprio Israel. Os ataques criminosos cometidos contra cidadãos israelenses não são determinados pelo fundamentalismo religioso, mas pelo ódio gerado por uma situação sem saída. Precisamente por isso a espada erguida contra Gaza não pode resolver, mas só pode piorar o conflito.
Nesse conflito existem dois povos que convivem no mesmo território e terão que continuar a conviver independentemente do desenvolvimento político que possa haver no futuro (dois estados, um estado federal, um único estado binacional). O recurso à violência resulta numa série de atrocidades que torna impossível a convivência. Israel venceu todas as suas guerras, mas não conseguiu viver um dia em paz, pelo contrário, construiu com as próprias mãos aquele ódio implacável que agora faz com que chore as suas vítimas inocentes. Essa espiral de violência é destrutiva para ambos os povos. Costuma-se dizer que o sono da razão gera monstros. No Médio Oriente, o sono da justiça e do direito só podia gerar monstros.
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O sono da Justiça gera monstros em todo lugar. Artigo de Domenico Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU