10 Janeiro 2023
Encontrei pela última vez antes de sua morte Paolo Gabriele, o camareiro de Bento XVI, apelidado de Paoletto por Wojtyla, em um terraço romano quando ele já estava doente. Naquela ocasião ele me revelou a guerra nos palácios sagrados entre aqueles que queriam reintegrá-lo após o escândalo Vatileaks e aqueles que o queriam no exílio. Um iluminado embate nos mais altos níveis que testemunha como essa história ainda precisa ser escrita, para além de alguma visão revisionista que tende a retratá-lo não como aquele tornou conhecido o crime, mas como um simples ladrão de documentos.
A entrevista é de Gianluigi Nuzzi, publicada por La Stampa, 07-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você lamenta ter fotocopiado por meses no inverno de 2011 os documentos secretos sobre os escândalos do Vaticano da mesa de Ratzinger e tê-los passado para mim?
Não lamento ter perdido tudo o que perdi: não perdi nada de bom, é uma situação que me deixou doente então como posso ter saudade dela? Quando vejo o Papa Francisco e seus dois ajudantes, certamente penso que poderia estar no lugar deles gratificado por poder viver perto de Francisco e poder conversar com ele, como com Ratzinger, mas se não houvesse toda essa confusão não teria havido no conclave aquela pressão necessária para dar um passo tão importante e levar Bergoglio a ser eleito pontífice. Bento XVI concedeu-me a graça sobretudo de devolver tranquilidade e segurança à minha família, mas nem todos concordaram e de fato fui enviado para trabalhar por mil euros por mês numa cooperativa fora dos muros do Vaticano onde não exercia nenhuma atividade.
Mas eu sabia como ia acabar, nada de reencontrar tranquilidade: durante seis meses eu ia lá e não me deixavam fazer nada. Eles queriam explodir minha cabeça para se vingar...
Quem queria que tivesse um colapso nervoso, quem queria que o reintegrassem ao Vaticano e o que você fez?
O cardeal Paolo Sardi dizia para ter paciência, mas eu não aguentava mais e então escrevi uma carta no inverno de 2013 ao cardeal secretário de Estado Pietro Parolin, que havia conhecido como monsenhor, para pedir-lhe um encontro. Ficamos quase três horas juntos, no final ele disse: "Agora vou ver se encontro uma alternativa para este trabalho. Vou falar sobre isso com o substituto Becciu (Angelo Becciu, o cardeal que mais tarde acabou sendo processado pela venda do prédio de Londres,)". Eu respondi: "Se o senhor falar sobre isso com Becciu, não vai adiantar porque foi justamente ele quem decidiu essa solução". Eu queria pedir demissão, procurar um emprego sozinho, mas Sardi ficou muito bravo: "Se você for embora, não poderei mais te ajudar, vá em frente e deixe uma fresta aberta para o futuro. As coisas poderiam mudar se forem embora certos personagens que estão ainda por lá."
E Parolin?
Parolin me ligou de volta depois de alguns meses e disse "Paolo, infelizmente nada pode ser feito ... Eu sondei o terreno, mas seu retorno não é possível." E aí descubro os bastidores: Parolin e o assessor para assuntos gerais da secretaria de estado, o diplomata Peter Bryan Wells (desde 2016, núncio apostólico na África do Sul) haviam concordado com a minha reintegração, mas Becciu continuava a se opor. A esta altura informo a Ingrid (Ir. Ingrid Stampa, alemã, antiga governanta de Ratzinger e uma das pessoas mais próximas a ele) que muito astuciosamente fala sobre isso com Bento XVI ao telefone: "Fiquei sabendo que o cardeal James Michael Harvey (estadunidense, desde 2012 arcipreste da Basílica de San Paolo fuori le Mura) quer ajudar Paolo e de fato existe a possibilidade de trabalhar lá com ele mas há muita resistência; o substituto se opõe porque acha que trazer Paolo de volta é uma descortesia para com o senhor, Santidade".
E o que Bento respondeu?
Que eu, como todo mundo, tenho direito a uma segunda oportunidade. Ele pediu para dizer ao cardeal Harvey para ter coragem. Ingrid tomou a liberdade de relatar esse desejo e, sempre pelo que ela me disse, o compartilhou com Parolin: "Bento XVI está perfeitamente de acordo’. O secretário de Estado agradeceu e informou Francisco".
E depois?
Quando estava acabando o rosário com as crianças em casa, a campainha tocou... era Ingrid que tinha vindo morar perto de nós... ela estava muito feliz: "Veja, esta noite encontrei Harvey no Vaticano, que me chamou de lado para me confidenciar que Becciu comunicou a ele: tenho a tarefa de parte do Papa Francisco de lhe dizer que você pode chamar Paolo de volta ao trabalho".
Tinham-na atendido...
Não, muito pelo contrário. Harvey perguntou se eu poderia ser reintegrado no quadro e Becciu teria lhe respondido: "Oh, não, isso o papa não disse". Como dizer: se Harvey quiser ajudar Paolo, ele que o faça, mas sem o salário do Vaticano. Como fazer? Assim tudo fica trancado. Fui despedido da cooperativa em março de 2015, mas outros também intervieram para me ajudar a voltar para casa.
E quem?
O cardeal esmoleiro do papa, Konrad Krajewski, vinha nos visitar em casa e sugeriu que eu fosse a Parolin para contar tudo o que estava acontecendo: "Se for o caso, eu posso interfira com o santo padre". Procurei Parolin, que, sabendo da demissão, me perguntou: "Mas agora o que a sua família vai fazer?". E eu: "O que sempre fizemos, esperar na providência divina... Mas depois, segundo Vossa Eminência, ainda posso ter esperança?" E ele: "Estou envergonhado porque Harley gosta muito de você, mas levá-lo de volta à Santa Sé, não agradaria à opinião pública... Não é o caso de se desesperar, mas foi causado muito mal a muitos’. Fico petrificado e digo a ele: "Mas eu paguei e eu estou pagando... o que mais devo fazer, não existe perdão, a verdadeira reconciliação?". E ele: "Eh, mas você sabe que não é fácil, agora vamos ver o que se pode fazer". Depois em junho de 2015 Sardi escreve ao papa, mais orações chegam e a situação se desbloqueia. Encontro Harvey: "Parolin me disse que os dois papas estão de acordo, Dom Giorgio não se opôs, Becciu foi informado". E então estou trabalhando lá desde 1º de julho 2015. Eu cuido do arquivo.
Quando Ganswein o acusou de ter fotocopiado os documentos de Ratzinger, como você reagiu?
Meu confessor foi muito claro: "Se não é o papa que está perguntando, sempre negue". Depois teve a prisão...
Os gendarmes lá em casa encontraram um arquivo das minhas pesquisas sobre os serviços secretos, a Maçonaria, eu tinha toda a coleção da Gnosis, a revista oficial da nossa inteligência.
Não é um pouco estranho que o mordomo do Papa tenha esses interesses?
Estava tentando entender a origem de certos males que encontrava na vida cotidiana da cúria.
Alguém suspeitou que você trabalhava para alguma inteligência...
Sinto-me um infiltrado do Espírito Santo que, se quisermos, é a inteligência da Igreja. Na verdade, se eu tivesse feito parte de qualquer organização, estaria sujeito a reportar aos superiores, portanto não poderia ter feito o que fiz. Em vez disso, sou um homem livre... Além disso, pergunte à minha mulher quando a impressora estragava... Não sendo um criminoso nem tendo sido uma ação científica, o que encontraram em casa é a prova da minha genuinidade.
Depois você foi preso...
Lembro que o chefe da gendarmaria Domenico Giani veio até mim imediatamente, estava preocupado com o dossiê sobre Orlandi.
Ou seja?
“Ele estava com medo de que tivesse sido fotocopiado. De fato, um dia vi na mesa de Dom Giorgio aquele dossiê recém-chegado, feito por Giani em papel comum, com o título Relatório do caso Orlandi. Não toquei nele porque tinha páginas grampeadas... Eu teria que virar as páginas e eles teriam notado que havia sido mexido”.
E o futuro?
Tenho certeza de que as coisas vão mudar de repente no Vaticano... Espero uma reparação pessoal, ninguém pode me negar... desde que quem tenha coragem assuma certos cargos ou atribuições.
OBS: Mas Paoletto morre em novembro de 2020, aos 54 anos.
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Os papéis secretos de Ratzinger. Entrevista com Paolo Gabriele - Instituto Humanitas Unisinos - IHU