09 Novembro 2022
Quem procura o túmulo do Abade vermelho fica desapontado. Não há um pedaço de terra para Giovanni Franzoni, traído pelo coração aos 88 anos, em 2017. Não o solicitou a instituição Igreja, inflexível em negar-lhe plena reconciliação, mais por sua escolha de se casar do que por seu empenho indômito de combinar marxismo e cristianismo; não o quis o próprio ex-abade da Basílica de San Paolo fuori le mura, o mais jovem padre conciliar do Vaticano II que preferiu as cinzas aos ossos para o post mortem. "A única sepultura que importa talvez seja na memória dos amigos – argumentava Franzoni – lá onde sua vida se tornou a vida de outrem".
Yukiko Ueno não era apenas uma amiga. Foi esposa do teólogo mais progressista italiano do final de 1900. Eles se casaram em 1990 em Tóquio, Franzoni há muito havia tido que deixar a batina. Primeiro a consagração com um rito budista, depois a cerimônia civil na embaixada italiana. Hoje, a japonesa de 80 anos, a voz fina que completa uma compostura orgulhosa é a vestal de uma relação extraordinária, ainda capaz de escandalizar quem não aceita uma mulher ao lado de um padre, muito menos de um abade.
A entrevista com Ueno Yukiko é de Giovanni Panettiere, publicada por Qn, 07-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"A morte não nos separou, Giovanni está aqui, mesmo agora – a guia turística aposentada nos recebe sentada no sofá da taverna rústica em sua casa, cercada por um espesso bosque de oliveiras à beira de uma subida íngreme nas colinas pedregosas de Fara Sabina, na zona de Reatino. Todas as manhãs vou ao seu quarto e sobre o armário onde guardo as suas cinzas, deixo-lhe uma xícara de café e algum doce. É um costume japonês, nunca contei a ele sobre isso”.
Ueno e Franzoni se conheceram por acaso em 1987 nos salões da Comunidade Cristã de Base de São Paulo. Ela, ateia e comunista, não sabia quem era "aquele homem alto e bonito". Não sabia que havia sido obrigado pela Santa Sé a renunciar ao cargo de abade por ter simpatizado com as lutas dos trabalhadores, por ter se oposto à concordata entre Igreja-Estado, por ter criticado a guerra do Vietnã. Nem que, depois de ter fundado a comunidade de base na Ostiense, incorresse em suspensão a divinis e teve que abandonar a ordem beneditina: por culpa de sustentar a lei do divórcio.
Em 1976, foi reduzido ao estado laical, com a acusação de estar inscrito no PCI. “Giovanni sempre me disse que não era verdade, que foi uma armadilha – Ueno elimina todas as dúvidas. Depois que ele morreu, encontrei uma carteirinha do PCI entre suas coisas. Joguei fora imediatamente. Solidariedade com os trabalhadores, defesa do divórcio: era a comunidade que lhe dava coragem para dar certos passos, ele sempre me disse. O Vaticano II e a experiência em San Paolo o converteram ao Evangelho dos últimos”.
Uma vida marcada por escolhas radicais pagas no final com a damnatio memoriae. Em 2012, seu nome não apareceu na lista de padres conciliares convidados por Bento XVI para uma audiência especial no 50º aniversário da assembleia. Franzoni tornou-se um católico marginal, como ele mesmo se definiu na autobiografia de mesmo nome. "Sofreu muito por aquela descortesia", lembra a viúva. Ele já era idoso e quase cego. A Igreja o perseguiu, mas ele permaneceu cristão até o fim: a educação das crianças à fé, mesmo que em sentido crítico e não catequético, sempre foi central em sua vida".
Um dos gatinhos da casa nos conduz ao quarto do monge Franzoni. Os livros do Abade vermelho estão em ordem na estante de madeira bruta. Do explosivo La terra é di Dio, no qual denunciava as especulações imobiliárias do Vaticano, La morte condivisa que legitima a eutanásia, em determinadas circunstâncias.
No quarto, tudo permanece como cinco anos atrás: o santinho de Oscar Romero sobre a mesa, o lençol azul que cobre a cama onde o religioso deixou sua vida. "Como ele era em casa?" Desatento, pensava e repensava, sempre - a lembrança arranca um sorriso de Ueno. Muita leitura, pouca TV, adorava cozinhar. Pegava as receitas e ia até o fogão. Era bom".
Em seus últimos anos de vida, os cardeais Matteo Zuppi e Paolo Lojudice, o bispo Domenico Pompili e o padre Roberto Dotta, ex-abade de San Paolo, puderam ficar perto de Franzoni.
"Dotta veio visitá-lo no hospital - confidencia a Ueno -. Ele ficou muito feliz, dava para ler em seus olhos. Imagino que tenha sido Francisco quem o enviou”.
Conta-se que o papa teria tido a intenção de reintegrar Franzoni. "Giovanni me deu a entender que queria que ele voltasse ao mosteiro", comenta sua esposa. "Lamento não ter sido muito compreensiva com ele, de não o ter ouvido o suficiente, mas eu o teria deixado livre para decidir". Faltou tempo.
Fica a profecia do Abade vermelho, hostilizada ou amada mesmo depois de sua morte, dentro e fora do Vaticano.
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O Abade vermelho do escândalo: “Era perseguido e sofreu muito”. Entrevista com Ueno Yukiko - Instituto Humanitas Unisinos - IHU