25 Agosto 2022
"A sobreposição dos dois magistérios certamente não anula as profundas diferenças entre a Igreja Católica polonesa e a Igreja Ortodoxa Russa, mas deveria sugerir à primeira maior cautela na denúncia das supostas fraquezas das outras Igrejas e uma reflexão mais acentuada da relação entre o Evangelho, a condição histórico-civil das comunidades cristãs e as orientações pastorais", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 23-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A agressão militar russa à Ucrânia deu uma nova centralidade à Polônia. Da polêmica anti-Bruxelas à tradicional oposição à Rússia até o isolacionismo antiucraniano, o país de repente se viu no centro do fluxo de refugiados ucranianos (mais de dois milhões) e no limite incandescente das fronteiras da aliança ocidental (Otan) para o Leste.
O pleno apoio - suprimentos militares e assistência - à Ucrânia, o consenso aos países que pedem para aderir à aliança (Finlândia e Suécia) e a convicção antecipada do ataque de Putin em relação às elites mudaram o quadro precedente e fortaleceram o governo conservador e o iliberal de Mateusz Morawiecki, dando fôlego ao neomessianismo da Igreja Católica.
Sua polêmica contra as Igrejas da Europa Ocidental se fortaleceu, assim como a distância (não exibida) em relação ao Papa Francisco.
Falando no congresso do movimento Europa-Christi - Mundus Christi (mosteiro Wigry, 29 de julho), o presidente da Conferência Episcopal Polonesa, D. Stanislaw Gadecki, confirmou o sistema de valores tradicionais e a defesa de “princípios não negociáveis” como horizonte da missão de sua Igreja no país e no Ocidente.
Se não se quer chegar ao relativismo individualista, é preciso reconhecer que "a existência de uma natureza humana imutável é condição necessária para uma busca ética racional".
Existem valores humanos universais gravados na lei natural que são imperativos para os indivíduos, bem como para o bom funcionamento da sociedade. Sobre eles se inserem harmoniosamente valores especificamente cristãos, como o amor ao inimigo. Se esse caminho não for escolhido, o resultado é o relativismo e, do ponto de vista histórico-civil, o totalitarismo. O Iluminismo secularizado do Ocidente vai nessa direção.
Não podem ser objeto de negociação política “o valor da vida humana desde a concepção até a morte natural, o valor do casamento como união inseparável de um homem e uma mulher, o valor de uma família construída sobre o fundamento do casamento, juntamente com a liberdade dos pais de criar seus filhos de acordo com suas convicções religiosas e morais, o valor da liberdade de consciência, o valor da liberdade religiosa e da paz”.
Entre eles, três estão particularmente em perigo: a vida, o casamento e a liberdade religiosa.
Segundo Gadecki, apesar da decisão positiva da Suprema Corte estadunidense (24 de junho de 2022) que negou o aborto como direito constitucionalmente garantido e da decisão "profética" do tribunal constitucional polonês (22 de outubro de 2020), que definiu inconstitucional o aborto eugênico, as civilizações ocidentais vão na direção oposta.
O Parlamento Europeu condenou ambas as sentenças e pediu a introdução do direito ao aborto na constituição europeia, revelando uma preocupante poluição ideológica.
A família é ameaçada pela ideologia de gênero que nega a diferença e a complementaridade natural do homem e da mulher, considerando irrelevantes as diferenças biológicas. É o chamado “pós-humanismo” que garante a poucos iniciados o processo de “regeneração da humanidade”, parte integrante das ideologias totalitárias.
A penalização e o não reconhecimento da Igreja como auctoritas em relação à potestas do Estado condena ao "monismo" político. “A política torna-se uma tentativa de realizar a utopia do reino humano. Sabemos como duas dessas tentativas de construir um estado perfeito sem Deus terminaram”. A alusão é ao nazismo e ao comunismo.
Na cultura liberal não faltam - na opinião do bispo - elementos positivos que remetem às suas raízes cristãs, como a dignidade do indivíduo, a liberdade, a neutralidade ideológica do Estado, a subsidiariedade, a democracia, o estado de direito, a propriedade privada, o mercado, o estado de bem-estar, etc. Seu limite está no quadro axiológico de referência. Todos são explicitados como "liberdade de" e não, como sugere o cristianismo, como "liberdade para".
Duas citações são indicativas dos alvos polêmicos, além da União Europeia. A primeira, antirrussa, é de Lênin: "Não existe para nós um sistema moral que deriva da sociedade humana". A segunda, antialemã, é de Heinrich Heine (1797-1856) em que se afirma que só a cruz segura a fúria selvagem dos guerreiros teutônicos. Se ela desaparecer, elevar-se-á "um rugido que nunca foi ouvido na história do mundo". "Sabemos - conclui Gadecki - o que aconteceu cem anos depois e não queremos que volte a acontecer na Europa".
A estrutura argumentativa não é nova. Sofre de algumas limitações, reticências e amnésia.
Sem negar a prosopopeia de parte da cultura ocidental que transforma o aborto em um direito positivo, impõe direitos a sociedades que não os reconhecem como tais e transforma a laicidade em ídolo, continuam surpreendentes os silêncios dos bispos poloneses sobre a democracia (regras, equilíbrio dos poderes, autonomia do judiciário), sobre a urgência da paz (a ser proposta não depois, mas durante a guerra), sobre o peso dos "valores não negociáveis" de orientação social, sobre a falta de denúncia do uso instrumental das referências cristãs.
A identificação, amplamente percebida na sociedade polonesa, entre a Igreja e a atual maioria de direita já mostra sinais preocupantes. Que exista a necessidade de uma lei, proposta pelo Ministro da Justiça, Z. Ziebro, para conter a agressividade contra a Igreja significa que o anticlericalismo está em níveis de alerta.
As polêmicas contra a Igreja pela comissão estadual de abusos indicam que o caminho de reforma eclesial nesse sentido está longe de convencer a opinião pública. A falta de crítica às posições do governo que denuncia a "ditadura franco-alemã" em Bruxelas e demanda o bloqueio da União sobre o princípio da unanimidade em cada decisão, expõe o episcopado e a Igreja a identificar-se com as forças que querem afundar a UE.
A politização do magistério social não está se tornando um obstáculo significativo para a comunicação do Evangelho?
Dois episódios destacam o questionável e pretensioso neomessianismo da presidência episcopal: as críticas exageradas ao "pacifismo" do papa e a intervenção crítica não ritual contra o sínodo alemão.
Voltando de uma visita à Ucrânia (24 de maio), S. Gadecki se expressou da seguinte forma:
"A Santa Sé deveria entender que, em suas relações com a Rússia - para usar um eufemismo - deveria estar mais atenta, porque, segundo a experiência dos países da Europa Central e Oriental, mentir é uma segunda natureza da diplomacia russa.
Por outro lado, parece que os países da Europa Central e Oriental são subestimados pela diplomacia vaticana. Já vimos isso no passado. Por décadas foram tratados com desdém. O Card. Stefan Wyszynski tentou mudar a perspectiva, mas não creio que tenha conseguido... Somente com o pontificado de João Paulo II ocorreu uma mudança radical, mas agora parece que estamos retornando sobre os velhos passos... o mais importante é que a Santa Sé apoie a Ucrânia em todos os níveis e não se deixe guiar por pensamentos utópicos, derivados da teologia da libertação”.
Sem tirar nada da brilhante resistência polonesa ao regime comunista, deve-se lembrar que, graças à incompreendida Ostpolitik do Vaticano, o Processo de Helsinque permitiu que as revoluções, na época do colapso dos regimes do Leste, fossem "de veludo", e não sangrentas.
A intervenção direta contra o sínodo alemão aconteceu em uma carta datada de 22 de fevereiro em que o processo sinodal é acusado de diluir o ensinamento da Igreja, de subordinação à cultura ocidental, de pouca atenção à espiritualidade e à teologia. Temas que o grupo especial de contato entre os dois episcopados não havia desenvolvido.
Ao texto da carta seguiu-se então uma intervenção semelhante de alguns bispos do Norte e dos EUA. Na carta de resposta, D. Georg Bätzing, presidente dos bispos alemães, abordou as críticas individualmente, também acenando ao peso que os abusos tiveram no início do sínodo alemão: "Gostaria de aprender com vocês como enfrentar as causas sistêmicas dos milhares de abusos que registramos aqui na Alemanha como na Polônia e no mundo inteiro”.
A estrutura pastoral e histórico-civil dos princípios tradicionais encontra uma sintonia singular com o magistério de Kirill e a Igreja russa. O patriarca de Moscou adornou seus discursos a favor da guerra na Ucrânia com a denúncia da decadência moral do Ocidente, da teoria do gênero, da coabitação homossexual, das paradas de orgulho gay etc.
Em um documento datado de 17 de agosto de 2012, os líderes das duas Igrejas (Kirill e J. Michalik), em plena sintonia, assim definiram os desafios comuns:
“Hoje nossas nações estão diante de novos desafios. Sob o pretexto de salvar o princípio da laicidade ou defender a liberdade, negam-se as normas morais fundamentais baseadas no Decálogo.
São promovidos o aborto, a eutanásia, as uniões de pessoas do mesmo sexo (que se pretende apresentar como um dos modelos de casamento); se promove o estilo de vida consumista, se rejeitam os valores tradicionais e se removem os símbolos religiosos das instalações públicas. Não raro, também nos deparamos com sintomas de hostilidade a Cristo, ao seu Evangelho e à cruz, bem como tentativas de excluir a Igreja da vida pública. A laicidade mal compreendida torna-se uma forma de fundamentalismo, se não, na prática, uma face diferente do ateísmo”.
A sobreposição dos dois magistérios certamente não anula as profundas diferenças entre a Igreja Católica polonesa e a Igreja Ortodoxa Russa, mas deveria sugerir à primeira maior cautela na denúncia das supostas fraquezas das outras Igrejas e uma reflexão mais acentuada da relação entre o Evangelho, a condição histórico-civil das comunidades cristãs e as orientações pastorais.
Os ‘rigidismos’ naturalistas e a suposta evidência de valores ameaçam obscurecer ao invés de favorecer o discernimento eclesial.
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Igreja polonesa: o neomessianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU