19 Setembro 2020
IBGE confirma: desde 2018, 10 milhões de brasileiros vivem insegurança alimentar grave. Quadro será muito pior se acabarem os R$ 600, em ambiente de crise econômica profunda. E mais: as Terras Indígenas devastadas pelo fogo no Pantanal.
A reportagem é de Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 18-09-2020.
O número de brasileiros enfrentando insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Segundo dados do IBGE divulgados ontem, em 2018 havia 10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 mil em 2013. Mais de um terço da população – 84,9 milhões – morava em casas com algum grau de insegurança alimentar em 2018, e esse foi o maior percentual registrado desde 2004, quando o levantamento começou a ser feito. Dos lares onde havia fome, mais da metade eram chefiados por mulheres. E nas zonas rurais, a insegurança alimentar grave é muito mais preponderante do que nas cidades, com quase metade das famílias do campo vivendo com algum grau de insegurança – nessa população, a insegurança alimentar grave atinge 7,1%, contra 4,1% no meio urbano.
Essa é a primeira vez em que houve queda nos níveis de segurança alimentar no Brasil. Em 2004, 65,1% da população dizia ter acesso garantido à alimentação. O número foi crescendo e chegou a 77,4%, em 2013., mas em 2018 caiu para 63,3%. Como a desigualdade regional é a regra, no Norte esse percentual foi de apenas 43% e, no Nordeste, 49,7%. Nas demais regiões é muito diferente: 79,3% no Sul, 68,8% no Sudeste e 64,8% no Centro-Oeste.
Tem mais: os dados são da Pesquisa de Orçamentos Familiares, que não inclui pessoas em situação de rua. Ou seja, o quadro deve ser ainda pior.
Os números gerais são a confirmação de que o Brasil voltou ao Mapa da Fome, segundo Francisco Menezes, pesquisador do Ibase e ex-presidente do Consea (o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). O Mapa inclui países onde mais de 5% das pessoas ingerem menos calorias do que o recomendável. Como a população em 2018 estava estimada em 207,1 milhões, esse é justo o percentual que os 10,3 milhões de brasileiros com fome representam.
E isso antes da pandemia. Nos últimos meses, o auxílio emergencial certamente melhorou a situação de muitas famílias, nota o pesquisador. Só que ele não é eterno. Quando acabar, há grande risco de termos um cenário ainda pior do que o de 2018, até porque garantir acesso a alimentos não é uma preocupação recorrente de Jair Bolsonaro. “Em julho do ano passado o presidente declarou que quem falava de fome no Brasil estava pregando uma mentira. E nós respondemos na ocasião, ‘vamos discutir isso a partir da divulgação dos dados’. E os dados chegaram (…) Isso mostra que não adianta tentar fingir que o problema da fome não existe. O problema existe e tem que ser enfrentado com seriedade”, diz Menezes, no Valor.
Por falar em alimentação, a notícia sobre o ataque do Ministério da Agricultura ao Guia Alimentar para a População Brasileira repercutiu fortemente, e a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável lançou um manifesto opondo-se à revisão proposta. Ele pode ser assinado aqui.
Os incêndios no Pantanal este ano já devastaram pelo menos 83% da Terra Indígena (TI) Baía dos Guató, segundo o Instituto Centro de Vida. Foram 16 mil hectares perdidos. Na reportagem da Folha, moradores contam que precisam lidar praticamente sozinhos com o fogo: bombeiros e militares se concentram nas áreas privadas, como fazendas e pousadas, porque há acesso mais fácil, alojamento, alimentação e ajuda material (o que obviamente não é uma justificativa, mas algo a ser enfrentado). “Vieram aqui pra fazer o aceiro [faixa de terra exposta para isolar o fogo, para proteger algumas casas], mas depois embarcaram porque tinham de acudir Porto Jofre, que estava pegando fogo lá, porque lá tem hotel. E me deixaram sem nada.”, diz diz a liderança Sandra Guató, que teve destruída toda a vegetação ao redor da sua casa. Só sobrou uma pequena horta.
Moradores de outra região da TI tiveram sorte ainda pior: os militares só chegaram depois que os moradores conseguiram salvar as casas sozinhos. A devastação causada pelo fogo – além da mata, foram perdidas roças de mandioca, cana, abacaxi, banana e outros alimentos – ainda é agravada pela falta d’água. O pequeno canal que abastece o território está quase seco, com a água enlameada disputada entre pessoas e animais. “Estamos bebendo urina e bosta dos jacarés e das capivaras. Porque não tem outra água aqui perto. Nunca secou assim. Estou com o estômago ruim, ruim, mas não tem outra água. E com essa seca, você fica o dia inteiro bebendo. Já bateu diarreia, vomitação, dor de barriga, tudo”, diz outra moradora, Antônia Oliveira. No posto de saúde não há luz e a água é armazenada em baldes.
É tudo ainda mais simbólico e triste quando se considera que os Guató são considerados o povo mais antigo da região. Ocupavam quase todo o sudoeste do Mato Grosso até começarem a ser expulsos no século passado pelo gado. Quase foram extintos. Finalmente conseguiram se reorganizar nos anos 1970, e a TI Baía dos Guató só foi homologada em 2018.
O fogo também se espalha rapidamente por outras TIs do Pantanal: quase metade das áreas indígenas regularizadas ali já enfrentam queimadas, segundo um levantamento da Agência Pública a partir de dados de satélite do Inpe. Em vários dos locais incendiados, os focos surgiram e se multiplicaram primeiro em propriedades privadas – e parte deles começou em em áreas de reserva legal e de mata nativa de donos de terra, que, por lei, precisam ser preservadas. Foi exatamente assim que começaram os incêndios nas terras dos Guató. A reportagem também denuncia a falta de apoio dos indígenas para conter o fogo. Segundo as fontes ouvidas, além do Corpo de Bombeiros deveria haver muito mais brigadistas. As brigadas fazem parte do Programa Brigadas Federais do PrevFogo, do Ibama, mas entre 2019 e 2020 o governo federal reduziu em 58% a verba destinada a ele.
O Tribunal Penal Internacional de Haia decidiu arquivar temporariamente o pedido de um conjunto de entidades para julgar o presidente Bolsonaro por crimes contra a humanidade. O documento apontava “falhas graves e mortais” na resposta brasileira à crise sanitária, citando a situação específica de indígenas. Mas o chefe do departamento de Informação e Provas do TPI, Mark P. Dillon, afirmou que conduta descrita pelas entidades “não parece se enquadrar nas definições rigorosas previstas no Estatuto de Roma”. Já havíamos comentado na news (aqui e aqui) que não seria simples conseguir um julgamento, pois é preciso comprovar a intenção do genocídio. Negligência não é suficiente.
As farmacêuticas Moderna e Pfizer – ambas com potenciais vacinas já na fase 3 dos ensaios clínicos – decidiram divulgar seus protocolos de ensaios, com informações mais abrangentes sobre como seus testes estão sendo conduzidos e como as vacinas estão sendo avaliadas (estão disponíveis aqui e aqui). Isso inclui detalhes sobre “como os participantes estão sendo selecionados e monitorados, as condições sob as quais os testes poderiam ser interrompidos precocemente se houvesse problemas e as evidências que os pesquisadores usarão para determinar se as pessoas que tomaram as vacinas estão protegidas contra a covid-19”, explica o New York Times, observando que a prática não é comum: em geral, tais detalhes só são compartilhados após a conclusão dos estudos. A decisão seria uma tentativa de melhorar a confiança do público norte-americano no processo de desenvolvimento e testagem das vacinas, que, como se sabe, ainda maculada pela nada disfarçada pressão política do presidente Donald Trump.
A medida foi celebrada por pesquisadores e, provavelmente, vai pressionar outras empresas. Uma porta-voz da AstraZeneca já disse que a companhia também deve publicar seu protocolo em breve.
Termina hoje o prazo para os países decidirem se entram ou não na Covax Facility, a aliança global criada para facilitar o acesso às futuras vacinas contra a covid-19. A estratégia envolve hoje nove imunizantes em fase de ensaios clínicos e, em caso de aprovação de algum deles, há compromisso com o fornecimento de doses para ao menos 20% da população de cada país vinculado. Mas o Brasil, junto com outras nações, pediu mais tempo.
A justificativa é a necessidade de “obter mais informações sobre as condições para a aprovação regulatória, instrumento jurídico aplicável, vacinas em desenvolvimento, suas características de armazenamento e transporte logístico”, segundo a Secretaria de Comunicação do governo. Mas a Folha apurou que há também uma hesitação devido ao custo da adesão.
Os contágios pelo novo coronavírus continuam crescendo de forma muito acelerada na Europa. A OMS alertou ontem que o nível de transmissão no continente está mais alto do que no começo da pandemia, entre março e abril. Têm sido algo entre 40 e 50 mil novos casos diariamente, sendo que o recorde anterior era de 43 mil no dia 1o de abril – é claro que a maior disponibilidade de testes ajuda a levantar os números. Os casos mais preocupantes continuam sendo o da Espanha e o da França, que vêm batendo recordes de novos registros.
Já no Brasil, houve redução de 30% no número de novas infecções na semana de 6 a 12/9, em relação à anterior. Segundo o Ministério da Saúde, é a maior diminuição já registrada. O número de mortes caiu 13% no mesmo período. Ontem foram 857 novos registros de mortes, levando a média nos últimos sete dias a 779 e o total a 135.031,
Após uma reunião fechada com parlamentares, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que vai “avaliar” sugestões de mudanças na portaria que obriga profissionais de saúde a avisarem à polícia quando atenderem mulheres em busca do aborto legal por razão de estupro. “Há uma certa disposição de rever algumas questões que estão na portaria e deve ter alguma mudança no sentido de não constranger uma pessoa já tão humilhada, tão destruída, como a que foi vítima de violência”, disse Rogério Carvalho, líder do PT no Senado, após o encontro. A ver.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fome: o pós-pandemia pode ser trágico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU