08 Setembro 2020
Nessa entrevista o pesquisador do Instituto Gonçalo Moniz/Fiocruz Bahia Manoel Barral apresenta por que a vacina não deve ser vista como solução única de retorno das aulas presenciais. Além do acesso aos insumos, a forma de distribuição de vacina de maneira global ainda é um dos desafios a serem enfrentados. Barral explica ainda que todas as ações relacionadas ao enfrentamento do COVID-19 devem ser de forma coletiva. Não há solução única nem ações individuais que possam dar conta de tamanha complexidade.
A entrevista é de Viviane Tavares, publicada por EPSJV/Fiocruz, 04-09-2020.
De maneira geral, para que serve uma vacina?
A vacina é um mecanismo seguro de induzir uma resposta protetora contra, normalmente, um agente infeccioso. Hoje em dia existe a possibilidade de combate a doenças não infecciosas. Mas o grande alvo delas ainda são as doenças infecciosas.
A gente pode atrelar a volta às aulas com a vacina? Ela é determinante?
Eu acredito que não. Primeiro porque a gente não basta só descobrir, é preciso que essa vacina seja segura e protetora e não cause mais problemas do que a doença. E isso pode acontecer, a vacina agravar a doença. E depois, quando tudo isso se produzir, mesmo que rapidamente, como nós esperamos, ainda vai demorar um tempo bastante razoável para que a gente consiga vacinar uma grande parte da população. Não é um processo rápido proteger a população com uma vacina que é necessária para bilhões de pessoas. A gente não está falando de uma doença que é localizada, em que rapidamente se pode produzir a quantidade de doses necessárias. A gente está falando em vacinar em escala global, só aqui no Brasil são mais de 200 milhões de pessoas. Então ninguém sabe quando teremos uma vacina efetiva e segura e quando, após isso resolvido, conseguiremos vacinar uma grande parte da nossa população. Então pode ser um prazo que pode correr o risco de ser muito longo para o retorno às aulas.
Quais seriam os elementos que, apesar de não existir a vacina, podemos estabelecer para que com eles sob controle podemos pensar nesse retorno às aulas?
O que a gente precisa basicamente é manter todas as medidas que já têm hoje do ponto de vista de proteção, como distanciamento, uso de máscara, mas começar dois aspectos fundamentais: o primeiro que é extremamente crítico que é a redução da transmissão através da identificação dos contatos e seu isolamento dos casos e quarentena dos contatos. Porque essa é a forma, na ausência de uma vacina, de reduzir o número de casos na comunidade. Isso tornaria o risco muito menor. Evidentemente, enquanto não houver uma vacinação em massa vai haver risco. Mas aí você tem que começar a ponderar o risco de infecções com o risco de atraso tão grande das atividades escolares, principalmente as presenciais, porque as atividades à distância cobrem uma parte, mas não cobrem tudo. Então, esse retardo de volta às aulas também tem impacto e a gente não pode desconsiderar o risco que representa. É preciso saber ponderá-lo. É claro que a vacina tem um elemento importante nisso. A minha cautela é a de que se a gente não tiver uma vacina muito rápido, que a gente comece a ter alternativas. Uma delas é ter baixa transmissão. E a gente no Brasil ainda está com uma taxa de transmissão ainda muito elevada na maioria dos locais, o que inviabiliza a volta às aulas. Não seria uma volta responsável. A gente precisaria reduzir a transmissão.
Muitas escolas estão se modificando e algumas privadas já anunciaram que estão aptas ao retorno. As condições escolares isoladas trariam segurança para o retorno dos estudantes?
Lógico que por mais cuidados que as escolas ofereçam, se você não tiver uma redução comunitária vai ter reflexos importantes. Então, mesmo na escola privada você tem os trabalhadores que não tem a mesma condição de transporte dos estudantes e usam transporte público. E essas pessoas podem estar disseminando infecção. As escolas não existem como uma bolha totalmente separada da comunidade. É preciso que haja condições compatíveis para que se possa fazer uma proteção adequada não somente dos alunos, mas também de toda comunidade escolar. É importante agir coletivamente e não de forma individual nesse processo.
A vacinação em massa significa o fim do risco de contaminação?
A rigor não. O que acontece é uma diminuição grande do risco. O que a gente sempre pondera é quanto do risco está disposto a correr. É preciso sempre colocar nessa perspectiva. O grande problema é que além de ter essas características intrínsecas, que tenha uma vacina segura, que não agrave a doença. A gente não tem ainda essa vacina, temos bons candidatos, mas não tem ainda. Mas mesmo quando a gente tiver essa vacina a gente não deve esquecer que é uma solução que o mundo deseja. Nunca teve uma campanha de vacinação como a gente está prevendo para essa demanda contra a Covid-19. E, além disso, vamos pensar numa hipótese de que a vacina não será em dose única. Você terá que ter uma campanha de vacinação que vai atingir a pessoa para que ela seja vacinada duas vezes. Claramente estamos falando de um esforço enorme, em que podem faltar coisas básicas como seringa, agulha ou coisas desse tipo. Então, a produção para manter a cadeia funcionando em grande volume é algo que a gente não tem, e já deveria estar trabalhando nessa logística e estimar tudo que a gente deveria precisar. Isso já deveria estar sendo feito. De alguma maneira preparar essa logística para uma campanha desse porte. A gente viu que faltaram elementos básicos para atendimento nas UTI’s não só no Brasil como em outros países também. E entra também a questão de custo. Quanto vai custar essa vacina, como ela vai ser disponibilizada para uma demanda tão grande de todo mundo vacinar de uma vez só. No sarampo, por exemplo, a cada ano você vacina uma faixa etária específica de crianças. Diferentemente dessa que será para todos. E mesmo no caso de sarampo, que não precisamos fazer uma mega operação de vacina, 140 mil crianças morrem no mundo por falta de proteção, por não receberam a vacina. O acesso à vacina é tão crítico quanto a existência dela. É um processo mais global. Não basta ter a vacina e começar a produzi-la. É preciso que a vacina chegue nas pessoas na época adequada. E todos nós não podemos pensar em proteger só uma parcela da população e achar que o problema está resolvido. É preciso que a gente atinja realmente toda a população.
A participação da Fiocruz traz algum tipo de prioridade para os brasileiros no acesso à vacina?
É claro que há uma vantagem nesse caso porque a própria Fiocruz está se preparando para produzir localmente. Então isso faz com que a gente tenha uma garantia de acesso. É importante lembrar que houve até interceptação de aviões para pegar carga de respiradores… Uma situação semelhante a essa pode acontecer com a vacina. Os países poderosos vão querer garantir as doses de vacina. Isso mostra mais do que nunca como é importante para um país ter ciência e tecnologia produzidas localmente. A gente vai ter uma certa vantagem na vacina porque temos capacidade de produção. Se o material fosse produzido nos Estados Unidos, na China ou na Inglaterra, evidentemente, que iríamos receber muito pouco até que eles conseguissem vacinar quase toda a sua população. Esse é um elemento que a OMS [Organização Mundial da Saúde] tenta adequar, discutindo e colocando em questão o acesso universal, mas se a gente não tiver uma produção em massa e viável, evidentemente que os países vão acabar saindo desses esquemas cooperativos e defender o seu quinhão primeiro. É necessário pensar nessa crise e no futuro. Se a gente não investir em ciência e tecnologia nacional, se a gente não tiver alternativas nossas com capacidade de desenvolvimento de uma vacina do zero e de produção local, a gente tem uma dependência muito grande no contexto internacional. Vários países da Europa e o próprio Estados Unidos têm tomado medidas de produzir novamente insumos que a China passou a centralizar a produção, por conta do preço como máscara de proteção, entre outros itens. Tudo isso faltou no mundo porque só quem produz hoje é a China, e em alguns casos, a Índia. Mas como isso começou na China, eles fecharam essa remessa para ter disponibilidade local, além de todo impacto que teve em suas próprias fábricas etc. Se a gente não tiver essa visão de que a produção local continua sendo importante para essas situações de emergência internacional isso também é um elemento de fragilidade. Não precisa ser nada muito sofisticado. Não é para fazer grandes drogas. Ou drogas novas, ou vacinas novas, mas a produção local é importante até por essa questão de pane no sistema de logística internacional por uma razão como uma emergência sanitária como essa. Claramente a gente tem que repensar nosso sistema de produção no complexo industrial da saúde. Tanto o desenvolvimento científico e tecnológico quanto a produção local são estratégias que vimos com essa experiência que são importantes e devem ser fortalecidos.
Estamos com três vacinas, digamos, mais midiáticas que são a de produção em parceria com a China, a da Rússia e essa da Fiocruz. Queria que o senhor pudesse esclarecer algumas questões relacionadas a elas que circularam nas redes sociais. Existe vacina sendo realizada com feto humano? Qual é a questão de segurança da vacina russa? Podemos dizer que uma é mais segura que a outra?
Essa questão de que temos vacinas de produção de vacinas com substâncias mais estranhas não têm nenhuma base. Todo esse processo de produção de vacina hoje é muito conhecido. E seria muito mais caro esse processo se pensássemos em produzi-las com feto ou coisa assim. Tudo isso é uma produção que depende muito de química e bioquímica que já está muito estabelecido, barato e seguro se produzir da forma que já se conhece do que começar uma produção. A gente tem vacinas, como a da febre amarela, que usa ovo de galinha porque são vacinas desenvolvidas há muitos anos, quando não se tinha o desenvolvimento que tem hoje e ainda nos dias atuais não existe investimento para modernizar essa vacina. Mas hoje não tem a menor lógica pensar que uma vacina será desenvolvida por uma metodologia igual a de muitos anos e não vai utilizar toda tecnologia disponível. Seria completamente ilógico uma vacina dessa. Não interessaria a ninguém. Nem ao produtor. Sobre a segurança da vacina, hoje não podemos afirmar que uma é mais segura que a outra porque nenhuma vacina chegou ainda na conclusão da fase 3. O processo de produção de uma vacina envolve as fases que têm sido muito faladas: a fase 1 que você testa em poucas pessoas e atesta se a vacina não causa muitas lesões, se ela não causa uma febre absurda. É um produto que está sendo inventado. Não é uma vacina ainda. Na segunda etapa, a fase 2, você expande isso para um maior número de indivíduos e passa a avaliar também o efeito no homem, no sistema imune humano. Já na fase 3, que é a fase que deve ser testada em dezenas de milhares de pessoas, você se certifica que a vacina é uma substância que não dá reações adversas importantes e é capaz de induzir uma resposta imune boa, correta, protetora. E é nessa fase que tem uma variedade de pessoas que você pode ver outras reações mais raras, que não dá para ver nas fases anteriores. O grande problema que a comunidade científica está enfrentando agora é a pressão da sociedade quanto dos políticos para reduzir a fase 3. Já na avaliação da vacina russa não há nenhuma evidência que ela seja melhor ou pior do que as outras. O que a comunidade científica tem criticado é o fato dos resultados das primeiras fases não terem sido divulgados como todas as outras candidatas. E isso é um pacto internacional. Mas não podemos dizer que ela não protege ou é danosa, a comunidade científica só não sabe quais foram eles, portanto, gera especulação.
Existem dois conceitos que é o de bloqueio de infecção e de doença. Há alguma diferença entre eles para o retorno às aulas?
Quando a gente consegue bloquear a infecção significa que as pessoas não vão conseguir transmitir. Se a vacina só proteger da doença a pessoa pode estar infectada e transmitir. Isso, portanto, não é tão eficiente para ter uma proteção comunitária do vírus. A vacina que bloqueia a infecção vai ter uma eficiência muito maior no sentido de diminuir a transmissão e proteger os indivíduos que ainda não foram vacinados.
Podemos dizer que estamos vivendo a imunidade comunitária? Isso pode ser considerada uma estratégia sem vacina?
Quando um vírus chega numa comunidade em que nunca ninguém havia tido contato com o vírus antes, todos ficam suscetíveis a pegar a doença. Então, se alguém se infectar, ele tem condições de transmitir para uma, duas, dez pessoas. Isso que se chama taxa de transmissão do vírus. Uma coisa que se demonstrou e que foi bastante verificada é que ele tem uma taxa de transmissão muito elevada. Então, se você chega numa comunidade onde ninguém está protegido, a chance de transmitir é muito alta e rápida. Quando você tem uma parte da população que está protegida, e isso também se faz com a exposição ao vírus, e o corpo faz sua resposta imune isso vai diminuindo a possibilidade de infecção do vírus. Imunidade comunitária é quando muitas pessoas forem resistentes menor a chance do vírus se espalhar. Você tem duas maneiras de atingir isso. Uma delas é muita gente ficar infectada. O problema é que você terá muita gente sofrendo, muita gente morrendo para chegar num nível necessário para a proteção. A forma mais segura de chegar à imunidade comunitária é ter isso através da vacina porque as pessoas se protegem sem o risco. A imunidade desenvolvida naturalmente é um risco muito elevado. E, portanto, não pode ser vista como solução de chegar à imunidade comunitária com a exposição natural. Ainda mais com uma doença grave como essa que mata. Se fosse uma doença que não tivesse mortalidade, que casos graves fossem raros, ainda seria questionado, mas numa situação como essa não é razoável falar de imunidade comunitária atingida por infecção.
A vacina deve ser encarada como um pacto social?
A vacinação obrigatória teria justificativa para alguns casos sanitários, mas isso realmente é uma outra esfera. Sempre temos que fazer o equilíbrio entre riscos. E no caso da vacina teria que ter condições sociais e políticas para torná-la obrigatória. Do ponto de vista científico sanitário faz todo sentido que a gente tivesse uma forma mais efetiva de vacinação. Para ilustrar, um jovem infectado com o grau de doença mais leve poderia pensar em não tomar vacina, mas ele estará prejudicando outras pessoas que teriam a possibilidade de se proteger, caso ele não tivesse a infecção. É uma responsabilidade social. Não é uma doença que fica só para você. Então, claramente, você tem que proteger os outros também. Mas, ainda que não haja compulsoriedade da vacina, o esforço governamental deve ser feito de forma a vacinar em grande quantidade e convencer a população desse benefício. Os mitos em relação a vacina deveriam estar sendo desconstruídos e os benefícios, que são fáceis de comprovar, sendo divulgados. A vacinação é, talvez, a medida mais importante do século 20 e que permitiu a sobrevivência de pessoas, aumento da expectativa de vida e tem um impacto na qualidade e sobrevida das pessoas extremamente importante. Você deixar de convencer as pessoas de tomar a vacina não é uma boa medida no âmbito da educação em saúde. Deveria ter um esforço oposto a isso, de convencimento da importância e segurança que a vacina confere, mesmo que não obrigatório, por meio de vários meios educacionais.
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“O acesso à vacina é tão crítico quanto a existência dela”. Entrevista com Manoel Barral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU