14 Setembro 2020
"Investigação sobre o lado oculto da crise. Ao se renderem à lógica do agronegócio, Bolsonaro e Temer estimularam exportações predatórias, fecharam armazéns reguladores e golpearam agricultura familiar. Só poderia dar errado", escrevem Guilherme Zocchio, João Peres e Victor Matioli, jornalistas, em artigo publicado por O Joio e o Trigo e reproduzido por OutrasPalavras, 12-09-2020.
Os dados sobre a inflação divulgados pelo IBGE nesta quarta-feira (9) confirmam uma tendência que os brasileiros já sentem no bolso. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula alta de apenas 0,70% no ano, mas com um aumento substantivo de dois produtos essenciais. No período, o preço do arroz já avançou 19,28% e o feijão preto cresceu em torno de 30%. Há uma questão estrutural por trás.
Até aqui, o governo federal considera que a alta no preço de itens da cesta básica é um problema passageiro. “Estamos vivendo uma situação de transição, é uma questão pontual e que vai passar”, declarou a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, na terça-feira (8).
O argumento oficial encontra ecos em analistas econômicos que consideram dois acontecimentos para a alta nos preços. 1. A desvalorização do real em relação ao dólar, que está levando ao aumento da exportação de grãos, principalmente para a China, país em recomposição de estoques, após controlar a pandemia do coronavírus. E 2. O aumento do poder de compra da população com menos renda, com o auxílio emergencial.
As explicações fazem sentido, afinal estão ancoradas em fatos do momento. Mas é justamente na abordagem sob uma ótica reduzida que reside um problema nessas leituras. A elevação de preços de itens tão básicos afeta a segurança alimentar e nutricional de milhões de brasileiros. O país tinha 54,8 milhões de pobres em 2018, segundo o IBGE; isso é, um quarto da população, pelo menos, vive em uma linha tênue com a fome.
Isso posto, qualquer análise razoável sobre uma alta de preços de alimentos deve levar em conta, sobretudo, as condições sistêmicas que elevam os preços, ora de um item, ora de outro, de forma cada vez mais constante. Hoje, é o arroz. No início do ano, eram as carnes. Dois ou três anos atrás, houve uma alta considerável no preço do feijão. Em um 2013 já longínquo, sobrou até para o tomate.
Em um momento de crise como a atual, o país comemora que as exportações, de grãos, principalmente, permaneçam em alta. “Fazem a economia girar”, dizem, com alguma razão, é verdade. Mas o setor primário que integram mal dialoga com outros ramos da economia. O ouro dourado do centro-oeste, da soja, ou o ouro branco dos pampas, do arroz, saem daqui com pouco valor agregado e sob baixa empregabilidade.
Além disso, enquanto as exportações crescem, os estoques públicos de grãos minguam no país. Porque a produção prioriza um ganho imediato com o câmbio flutuante —ressalte-se que, com frequência, às custas de um imenso passivo social e ambiental— e porque os presidentes Jair Bolsonaro (sem partido) e Michel Temer (MDB) praticamente zeraram os estoques públicos de alimentos no país.
Já mostramos aqui no Joio os impactos da desestruturação dos estoques estratégicos. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) tenta desde o ano passado se desfazer de seus armazéns sob a justificativa de que não geram lucro, mesmo que essa jamais tenha sido sua finalidade. Argumenta-se que o Estado não pode arcar com custos de R$ 10 milhões ao ano. Os armazéns estocam alimentos que servem como lastro para a Política de Garantia de Preços Mínimos, que protege produtores rurais das flutuações de preços como a que se desenrola agora.
Os alimentos armazenados também podem ser vendidos com valores reduzidos para controlar o avanço da inflação e, assim, assegurar que os cidadãos não se deparem com preços abusivos. Com estoques despencando, entretanto, não há muito que a Conab possa fazer. Na década de 1980, havia mais de cinco milhões de toneladas de arroz nos armazéns da Companhia. Os estoques oscilaram muito com o tempo, mas sumiram de 2012 para cá: hoje restam cerca de 21 mil toneladas — menos de 0,2% da demanda anual interna brasileira, de 10,8 milhões de toneladas.
Sem poder de influência sobre os preços, restou ao governo federal implorar pela misericórdia do setor supermercadista. O presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer que vai pedir patriotismo às redes de supermercados para que diminuam as margens de lucro sobre produtos básicos. Ele disse ainda que a questão não pode ser resolvida numa canetada, em mais uma demonstração de que não compreende o papel que ocupa. Com um estoque decente em mãos, Bolsonaro poderia fazer com o preço do arroz o que gostaria de fazer com o Supremo Tribunal Federal: intervir.
Não termina aí, culturas alimentares tradicionais recrudescem pelo país. Já falamos sobre o assunto, mas o arroz e o feijão, a base da nossa dieta, são os dois casos mais emblemáticos. Discretamente, as áreas plantadas dos dois grãos diminuem ano a ano no Brasil, lado a lado com a queda no consumo nos lares. Em dez anos, a área cultivada com arroz caiu 40,9%, segundo a Conab. No mais imediato, este ano a exportação do arroz processado avançou 60% frente a 2019. Já o arroz bruto triplicou as remessas ao exterior.
Uma visão mais abrangente, portanto, mostra que a alta de itens da cesta básica não é tão esporádica quanto parece. Dizer que se trata de uma questão temporária, na verdade, exime o governo de agir estrategicamente. “O governo não vai fazer nenhuma intervenção em preços de mercado, o que estamos fazendo é monitoramento constante”, acrescentou Tereza Cristina na mesma entrevista.
Outra das faces da omissão federal é o trato do governo com os produtores da agricultura familiar, que respondem a pelo menos 42% da colheita de feijão no país, segundo as informações do último Censo Agropecuário do IBGE. No contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil, eles estão longe de receber o apoio que deveriam.
Dos R$ 500 milhões autorizados por medida provisória publicada no final de abril para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), apenas R$ 36,4 milhões foram executados até o momento, de acordo com o monitoramento da Conab. O PAA é uma política fundamental para que os agricultores familiares desempenhem a suas atividades com regularidade e segurança.
A fragilidade dos pequenos produtores rurais também vem do sucateamento de outras políticas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, nos últimos anos, e circunstancialmente, da pandemia do coronavírus. Enfraquecê-los não só desaquece o mercado, como dificulta o abastecimento e a aquisição de alimentos em algumas regiões.
Para não deixar de colocar os pingos nos is, após o Congresso Nacional aprovar, Bolsonaro vetou o trecho de um projeto de lei que oferecia R$ 600 de um auxílio-emergencial específico para produtores da agricultura familiar. No Brasil dele, patriotismo bom é aquele que se pede aos outros, mas que não faz a lição de casa.
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O drama do arroz expõe as misérias do Agro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU