12 Setembro 2020
Caiu em todo o mundo, nos últimos quatro anos, a confiança na imunização. Obscurantismo cavalga na percepção sobre práticas escusas da indústria farmacêutica. E mais: as causas mais profundas da disparada dos preços da comida.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 11-09-2020.
Um trabalho publicado ontem no periódico The Lancet avaliou a confiança nas vacinas em geral em 149 países com base em entrevistas com 284 mil pessoas – em alguns casos, os dados permitem ver como isso evoluiu de 2015 até 2019.
O Brasil está no grupo dos países onde mais de metade da população acredita fortemente na segurança, na eficácia e na importância dos imunizantes. Mas isso piorou no período estudado: houve queda de 73% para 63% na parcela que acredita que as vacinas são seguras; de 75% para 56% nos que acreditam em sua eficácia; e de 92,8% para 88% nos que acreditam que elas são importantes para crianças. “A América Latina, e o Brasil inclusive, foi vista por muito tempo como tendo uma blindagem à desconfiança em vacinas. Mas sabemos que a confiança em vacinas é algo muito volátil, e esse perfil vem mudando. Se os responsáveis não prestarem atenção, isso pode se reverter em queda na cobertura vacinal”, diz uma das autoras, Clarissa Simas, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Outros países aparecem com quedas muito mais acentuadas – e de certa forma, mais justificadas também. As Filipinas estavam entre os dez onde havia maior confiança em 2015, e em 2019 aparece em 70º lugar. Acontece que, lá, a farmacêutica Sanofi distribuiu largamente sua vacina contra dengue para, depois, reconhecer que o produto poderia na verdade piorar a doença em crianças que nunca haviam sido infectadas. Dez crianças morreram.
No geral, os autores observaram que extremismo religioso, movimentos antivacina, instabilidade política e multiplicação de notícias falsas impactam a confiança. Eles dizem, por exemplo, que a queda acentuada na Indonésia foi provocada em parte por alguns líderes muçulmanos que começaram a questionar a segurança das vacinas de sarampo, caxumba e rubéola e instituíram um decreto religioso proibindo a vacinação.
O presidente Jair Bolsonaro decidiu fingir ser guiado pelas mãos da ciência em sua transmissão ao vivo ontem à noite. Contracenando mais uma vez com uma youtuber mirim, tentou claramente induzir declarações receosas por parte da menina: “Você gosta de tomar vacina?”, e “Você tomaria qualquer vacina, sem comprovação científica?”, perguntou ele. Como a criança só respondia de maneira afirmativa, ele reforçou que as vacinas contra covid-19 em desenvolvimento “ainda não têm uma comprovação científica“. Como se alguém estivesse dizendo o contrário… E como se ele se importasse com esse tipo de comprovação.
Tudo indica que o Brasil deve entrar no Covax, consórcio co-liderado pela OMS que tem o objetivo de garantir que as vacinas cheguem a todos os países, incluindo aos mais pobres. O colunista do UOL Jamil Chade informou ontem que o Brasil foi incluído como um dos 25 membros do conselho de governança do ACT (aliança da qual o Covax faz parte); ontem, uma reunião do grupo contou com a participação do ministro interino Eduardo Pazuello.
De início, o país relutou em fazer parte do Covaxx. “Dentro do Itamaraty, havia uma resistência em se aproximar a projetos da OMS, criticada duramente pelo presidente Jair Bolsonaro”, escreve Chade. Mas, agora, Pazuello parece inclinado a entrar. “Caso optemos pela adesão, o Brasil poderá ser o maior contribuinte. Gostaria de concluir colocando à disposição de todos a robusta capacidade de produção de vacinas e experiência do Brasil em oferecer acesso universal a serviços de saúde, incluindo vacinação a toda população brasileira”, disse ele, no encontro.
A verdade é que levar o Covaxx adiante não está sendo muito fácil – o que fica claro quando vemos poucos países ricos anunciando acordos para a compra de centenas de milhões de doses de futuras vacinas. Nos últimos quatro meses, as Nações Unidas arrecadaram US$ 3 bilhões para programas de desenvolvimento e distribuição de vacinas, e isso não é nada perto do que ainda falta: US$ 35 bi.
Nenhuma pauta mobilizou tanto a população esta semana como a alta no preço de alimentos. Depois do flagra de pacotes de cinco quilos de arroz custando R$ 40, o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Sanzovo Neto, ofereceu uma solução simples: “Vamos promover o consumo de massa, macarrão, que é o substituto do arroz”, disse, logo após se reunir com Jair Bolsonaro para discutir a questão. O arroz já acumula alta de 19% este ano; segundo o Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), faz um mês que o cereal acumula recordes diários no preço, e a indústria diz que não deve haver quedas.
O presidente Bolsonaro tem tentado enviar mensagens aos eleitores e ao mercado. Depois de pedir ‘patriotismo’ dos supermercados para que reduzam seus lucros, ontem ele confirmou que autorizou a notificação feita pelo Ministério da Justiça pedindo a produtores e supermercados explicações sobre os aumento – o que contrariou o baleado ministro Paulo Guedes. Mas ele nega que vá tabelar preços ou intervir neles. “O que tem que valer é lei da oferta e da procura“, cravou ontem.
Não é como se não houvesse arroz disponível no Brasil, mas, com o dólar alto, o agronegócio prefere exportá-lo. Este ano, entre janeiro e agosto, o país mandou para fora 1,15 milhão de toneladas desse grão, rendendo US$ 407,2 milhões. Desde o começo da pandemia, foi um aumento de 300% nas vendas ao exterior. Mesmo assim, o país poderia produzir mais, é verdade. E produzia: os repórteres d‘O Joio e o Trigo contam que as áreas plantadas de arroz e feijão diminuem a cada ano, ao mesmo tempo em que cai o seu consumo pelas famílias. No caso do arroz, a área cultivada caiu 41% em dez anos.
Embora o arroz tenha se tornado um símbolo, a disparada nos preços vai muito além dele. A inflação oficial do país avançou 2,44% no ano até agora, mas, no grupo da alimentação em domicílio, foram 11,4%. O preço do óleo de soja subiu 18,6%; do leite, 15,3%; do feijão mulatinho, 32,6%. No início do mês, o Dieese verificou aumento da cesta básica em 13 das 17 capitais pesquisadas. A mais cara, em São Paulo, custava R$ 539,95. A mais barata, a de Aracaju, ficou em R$ 398,47. Desnecessário dizer que a inflação nos alimentos pesa mais para quem ganha menos. Com a redução do auxílio-emergencial para R$ 300, mesmo a cesta básica mais em conta vai consumir todo o benefício e mais um pouco.
Voltando à matéria d’O Joio e o Trigo, o texto lembra que o governo tem uma forma simples e barata de forçar os preços para baixo, mesmo sem macular a “oferta e a procura”: mantendo estoques de alimentos, que podem ser liberados estrategicamente (aumentando a oferta… e baixando os preços) em momentos como esse. Acontece que o governo Bolsonaro desestruturou os estoques públicos.
Ontem o Brasil registrou 922 mortes em 24 horas e a média móvel de óbitos, que estava em queda há apenas três dias, voltou a subir: ficou em 692. A tendência ainda é de queda, porém. Desde 12 de agosto ela está abaixo de mil e, desde o dia 28, abaixo de 900. Já a taxa de contágio voltou (mais uma vez) a 1. Na semana passada, estava em 0,94, o que em tese significa uma desaceleração da expansão do novo coronavírus.
Como já observamos aqui, é difícil se basear nesses números para avaliar a situação do país como um todo, já que os estados vivenciam momentos completamente diversos da pandemia. Provavelmente, São Paulo está puxando os números para baixo.
Um relatório publicado pelas autoridades dos Estados Unidos – cujas descobertas podem ser extrapoladas para outros países – mostra o provável papel de bares e restaurantes no espalhamento do coronavírus: o rastreamento de contatos indicou que esses estabelecimentos foram a origem de muitas infecções.
A reportagem d’O Globo salienta que o estudo tem limitações e não consegue confirmar com 100% de certeza onde as infecções aconteceram, mas dá uma boa indicação disso. Foram feitas entrevistas com 300 pessoas (sendo que metade tinha sido recém-diagnosticada), com perguntas sobre seus hábitos nas duas semanas anteriores ao começo dos sintomas. As respostas foram mais ou menos iguais entre os grupos, com uma exceção: os participantes contaminados relataram o dobro de idas a bares e restaurantes. Considerando que não dá para usar máscaras enquanto se come e bebe, o resultado parece mais do que plausível.
Depois do sufoco para conseguir obrigar o governo federal a estabelecer um plano de enfrentamento à covid-19 nas aldeias, agora o STF pode ter que pressionar pelo socorro às comunidades quilombolas. A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) enviou ao Supremo, junto com cinco partidos, uma ação acusando o Estado de omissão e pedindo um plano emergencial. Entre outras medidas, a ação pede a distribuição imediata de água potável e de equipamentos de proteção individual.
Eduardo Pazuello disse ontem que, até fevereiro, o Ministério da Saúde vai decidir sobre a incorporação no SUS do canabidiol. “No que cabe à utilização de medicamento a partir de componentes da maconha, da cannabis, da planta, nós temos um medicamento chamado canabidiol, e alguns outros que são similares, que está em processo de regulamentação para fornecimento para o SUS. E isso não é de hoje, já é um processo antigo, e nós deixamos claro que todos os medicamentos que têm resultado e que mereçam ter esse tipo de ação, o SUS e o Ministério da Saúde não têm nenhuma restrição ao medicamento”, disse ele, afirmando ainda que há “um movimento claro do ministério” no sentido de que, “se é necessário o medicamento”, que seja “fornecido naturalmente pelo SUS”.
Para lembrar: há no Congresso uma discussão sobre a legalização do cultivo da cannabis para uso medicinal. Na Anvisa, isso foi vetado.
Falando em cannabis, o International Drug Policy Consortium (IDPC), que engloba cerca de 200 ONGs, divulgou um conjunto de princípios que deveriam nortear as decisões para garantir que esse mercado legal seja mais ético. “A regulamentação legal tem o potencial de se tornar uma ferramenta poderosa para reparar décadas de criminalização, exclusão econômica e falta de acesso a cuidados de saúde adequados. No entanto, os mercados legais também podem ser capturados por interesses corporativos, deixar de incluir medidas abrangentes para reparar os danos trazidos pela ‘guerra às drogas’ e criminalizar ainda mais as pessoas que permanecem em espaços ilegais, persistindo inevitavelmente fora de qualquer mercado regulamentado”, diz o documento.
Os autores apontam, por exemplo, que nada menos que 70% do mercado de maconha na Colômbia e no Uruguai são controlados por empresas canadenses. Eles elencam 20 princípios que incluem proteger os direitos dos usuários de drogas, ajudar pessoas que foram criminalizadas por comercializar a droga a entrar e se manter na legalidade, e garantir que a indústria de maconha seja um empregador justo e equitativo, envolvendo as comunidades locais.
Já falamos um bocado sobre esse tipo de problema aqui na newsletter, inclusive em relação à cannabis medicinal.
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