02 Abril 2020
“A novidade da situação atual está na mecânica infernal que ela desencadeou. Em 2008, foi a esfera financeira que acendeu o pavio, transmitindo-se à esfera produtiva. Agora, é o contrário: a atividade econômica está parcialmente paralisada e essa frenagem brutal volta, como um bumerangue, a atingir as finanças. E essa implosão das finanças aprofundará a recessão”. A reflexão é de Michel Husson, economista, membro do Conselho Científico da Attac, em artigo publicado por Alternatives Économiques, 30-03-2020. A tradução é de André Langer.
Isso porque, segundo Husson, “o coronavírus não contamina um organismo saudável, mas um organismo que já sofre de doenças crônicas. A epidemia funciona como um revelador: as modalidades de ‘saída’ da crise precedente de fato não remediaram as fraquezas estruturais da economia mundial”.
A novidade da situação atual está na mecânica infernal que ela desencadeou. Em 2008, foi a esfera financeira que acendeu o pavio, transmitindo-se à esfera produtiva. Agora, é o contrário: a atividade econômica está parcialmente paralisada e essa frenagem brutal volta, como um bumerangue, a atingir as finanças. E essa implosão das finanças aprofundará a recessão.
Há, no entanto, uma relação com a crise anterior. Todas as políticas implementadas desde 2008 tiveram como objetivo, de fato, o retorno ao business as usual e, em particular, a preservação de todas as maneiras possíveis o valor dos títulos financeiros, como os direitos de saque do valor criado. Se, pelo contrário, tivéssemos “confinado” as finanças às exclusivas funções úteis que elas podem cumprir, o mecanismo infernal poderia ter sido melhor enquadrado.
Mais fundamentalmente, o esgotamento dos ganhos de produtividade condenou o capitalismo a um funcionamento patológico que consiste em capturar o máximo de valor, compensando pelo aumento das desigualdades o esgotamento dessa fonte essencial de seu dinamismo. Em outras palavras, o coronavírus não contamina um organismo saudável, mas um organismo que já sofre de doenças crônicas. A epidemia funciona como um revelador: as modalidades de “saída” da crise precedente de fato não remediaram as fraquezas estruturais da economia mundial.
Desde a crise de 2008, tudo ou quase tudo foi feito para que nada mudasse. A prática de recompra de ações desenvolveu-se, a distribuição de dividendos explodiu, a securitização retomou seu curso, a dívida privada aumentou consideravelmente... Não faltam estudos sobre esses diversos pontos: o Banco de Compensações Internacionais, por exemplo, multiplicou as advertências.
A explosão da bolha era, portanto, previsível, mesmo sem o coronavírus. Testemunham-no as advertências do último Relatório sobre a Estabilidade Financeira Mundial do FMI (de outubro de 2019). Este relatório concentrou-se nos riscos representados pelas baixas taxas de juros, e dois de seus principais autores, Tobias Adrian e Fabio Natalucci, resumiram as principais mensagens em um post de blog. Eles insistem no superendividamento das empresas: “A dívida das empresas cujos lucros não são capazes de cobrir os juros pode aumentar para (…) cerca 40% da dívida total das empresas nos países estudados, incluindo os Estados Unidos, a China e países europeus”.
A observação dos economistas do FMI pode ser complementada por um estudo muito detalhado, que trata dos Estados Unidos. Os autores descobriram que as pequenas e médias empresas são as mais endividadas e, portanto, espera-se que elas sejam as mais duramente atingidas pela crise do coronavírus. Aqui encontramos um tema amplamente debatido, o da crescente lacuna entre as empresas “superstars”, que capturam o valor criado, e as empresas “zumbis”, que sobrevivem graças às baixas taxas de juros.
Mas os autores deste estudo também apontam que as empresas da “metade inferior” aumentaram sua capacidade de produção nas últimas décadas, enquanto os 10% do topo da escala ficaram para trás. Eles temem a “catástrofe iminente” que ameaça se deixarmos que as pequenas empresas afundem, porque representam, apesar de sua fragilidade, uma das “principais fontes de criação de empregos e de inovação”.
O outro efeito das baixas taxas de juros relatadas pelo FMI é uma tomada excessiva de risco: “O nível muito baixo das taxas de juros incentivou os investidores institucionais, como companhias de seguros, fundos de pensão e gestores de ativos, a aplicarem em títulos mais arriscados e menos líquidos para alcançarem seus objetivos de rendimento. Por exemplo, os fundos de pensão aumentaram sua exposição a outras classes de ativos, como o capital-investimento e o imobiliário”.
A política monetária de acomodação não fluiu para a economia real; ela permitiu, ao contrário, que as finanças retomassem sua trajetória exuberante. Mas também levou a uma situação sem precedentes de baixas taxas de juros, até negativas, e ao esgotamento das munições dos bancos centrais.
Mesmo antes da epidemia, o prognóstico dos especialistas do FMI já era preocupante: “As semelhanças existentes nas carteiras de fundos de investimento poderiam ampliar um movimento de liquidação de ativos nos mercados; os investimentos ilíquidos dos fundos de pensão poderiam limitar seu papel tradicional como estabilizadores de mercado”. É exatamente o que está acontecendo, e a degradação pode ser ainda mais brutal com o vírus.
O dogma de 3% foi abandonado, pelo menos provisoriamente, mas a Europa continua mal preparada. É uma excelente ideia relaxar a restrição orçamentária, mas isso não resolve todos os problemas. Um deles é o spread entre as taxas de juros das dívidas públicas. Em um primeiro momento, Christine Lagarde havia cometido um grande erro ao declarar que “o BCE não está aí para reduzir o spread”, depois lançou a “bazuca”, que acalmou um pouco as preocupações dos mercados financeiros.
Mas chegará um momento em que será necessário passar a uma marcha maior, a saber, à mutualização (“Eurobonds” ou “Coronabonds”), ou mesmo à monetização. Esta é a conclusão a que chega Patrick Artus: “Se todos os países da zona do euro forem afetados (pelo aumento das taxas de juros de longo prazo em resposta a déficits públicos acentuadamente crescentes), a mutualização dos déficits públicos adicionais aliviaria o peso para os países periféricos (onde a alta das taxas de juros é mais forte), mas não resolveria o problema geral do déficit público suplementar. A única solução é, então, a monetização desses déficits públicos suplementares pelo BCE, portanto, uma importante abertura do quantitativo easing das dívidas públicas”.
Contudo, existe um grande risco de que, como na crise anterior, a Europa só reaja tardiamente ao evento, ou fora do tempo, devido às suas divergências internas e à propensão de administrar a crise em nível nacional.
É provável que o vírus se espalhe para os países emergentes ou em desenvolvimento, relativamente poupados até o momento. Eles estão não apenas mal equipados do ponto de vista sanitário, mas já são particularmente afetados pelas consequências da crise. Dependendo em grande parte das vendas de matérias-primas paradas, eles já estão vendo seus recursos diminuírem. Este é particularmente o caso dos países produtores de petróleo.
E aqui também encontramos o legado da saída da crise anterior. A dívida externa dos países emergentes representa, em média, “160% das exportações, contra 100% em 2008. No caso de um aperto considerável das condições financeiras e do aumento dos custos de empréstimos, eles teriam mais dificuldades para pagar suas dívidas”, advertiu o FMI em seu relatório de outubro de 2019 acima citado.
Além disso, a fuga de capitais assumiu proporções consideráveis: 83 bilhões de dólares desde o início da crise. Esse sudden stop [parada repentina nos fluxos de capital] terá sérias consequências, destacadas por um grupo internacional de economistas [A carta, em francês, pode ser acessada clicando aqui.]. Os países emergentes e em desenvolvimento, escrevem, “agora estão enfrentando uma parada repentina, à medida que as condições globais de liquidez se contraem e os investidores fogem do risco, provocando dramáticas depreciações monetárias. Isso obriga a um severo ajuste macroeconômico precisamente quando todas as ferramentas disponíveis deveriam estar disponíveis para combater a crise: a política monetária é mais rígida na tentativa de manter o acesso ao dólar, enquanto a política fiscal é limitada pelo medo de perder o acesso aos mercados mundiais. É pouco provável que as reservas cambiais forneçam um colchão suficiente em todos os países”.
As instituições internacionais preveem medidas de apoio, mas o presidente do Banco Mundial, David Malpass (indicado ao cargo por Donald Trump), insiste na condicionalidade em termos que lembram aqueles da Troika europeia para com a Grécia: “Os países terão que implementar reformas estruturais que possam encurtar o tempo necessário para a retomada e criar confiança em sua solidez. Com relação aos países onde as regulamentações excessivas, os subsídios, os regimes de concessão, a proteção ou a judicialização das trocas comerciais, constituem obstáculos, trabalharemos com eles para dinamizar os mercados e selecionar os projetos que permitam garantir um crescimento mais rápido durante o período de recuperação”.
The Economist, ao contrário, está certo ao emitir esta advertência: “Se deixarmos que a Covid-19 devaste os países emergentes, logo se espalhará novamente nos países ricos”. O mesmo vale para a sua dimensão econômica, se a produção de matérias-primas e bens intermediários sofrer um sudden stop simétrico ao dos fluxos de capital.
Será difícil para o sistema econômico retornar ao seu funcionamento anterior à crise. As cadeias globais de valor estão desorganizadas, empresas terão falido, a gestão dos gastos públicos, principalmente em matéria de saúde, é desqualificada. Podemos ver nisso a possibilidade de uma reorientação fundamental do sistema. Mas isso não será nada espontâneo: com a suspensão de seções inteiras do Código do Trabalho, fica claro que alguns já estão preparando o próximo passo.
Depois virão os discursos sobre a necessária “consolidação financeira”, cuja implementação corre o risco de gerar uma resposta recessiva, como em 2010. E acima de tudo, o retorno à ortodoxia terá o efeito de adiar qualquer projeto de Green New Deal: como, com efeito, imaginar que, depois de despejar bilhões de euros, as instituições europeias vão querer liberar as quantias consideráveis necessárias para a luta contra as mudanças climáticas?
Em uma nota em que se pergunta “que capitalismo queremos?”, Patrick Artus esboça um retrato bastante fiel do capitalismo” inaceitável “(que é o nosso): ele “distorce a participação nos lucros em detrimento dos trabalhadores, não respeita os compromissos climáticos, não associa os trabalhadores às decisões estratégicas da empresa, aumenta o nível de endividamento das empresas, desloca-se massivamente para países com salários baixos, obtém uma baixa contínua da pressão fiscal das empresas, o que força a reduzir a generosidade da proteção social”.
O economista da Natixis considera, na sequência, dois caminhos possíveis para passar a um capitalismo “aceitável”: ou o estabelecimento de um “capitalismo estatal hiper-regulado”, ou uma “evolução espontânea do capitalismo que aceita uma rentabilidade mais baixa do capital para os acionistas”. Há, contudo, apenas uma coisa sobre a qual deveríamos nos convencer: não deveríamos contar com uma evolução espontânea do capitalismo.
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Neoliberalismo contaminado. Artigo de Michel Husson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU