25 Março 2020
“Esse longo momento de reclusão já opera como um gigantesco amplificador das desigualdades espaciais e sociais. É um eufemismo dizer que as semanas que se anunciam constituirão de fato uma provação para aqueles que pertencem à categoria dos “pobres”, definidos também a partir do seu capital econômico e cultural”, escreve Stéphane Beaud, professor de Sociologia na Universidade de Poitiers e pesquisador do Gresco (Groupe de Recherches Sociologiques sur les sociétés contemporaines), em artigo publicado por Alternatives Économiques, 24-03-2020. A tradução é de André Langer.
Esse período de reclusão relacionado à epidemia de Covid-19 constitui uma provação social sem precedentes, que pode ser comparada a um experimento de laboratório in vivo. O grande historiador medievalista Marc Bloch, que combateu na “Grande Guerra” e ficou muito marcado por ela, escreveu pouco depois, em 1921, na Revue de Synthèse Historique, um famoso artigo, “Reflexões de um historiador sobre as falsas notícias da guerra” (publicado por Editions Allia em 1999).
Neste artigo, Bloch descreveu a guerra de 1914 a 1918 “como uma espécie de vasta experiência natural. De fato, temos o direito de considerar a guerra europeia como tal: uma imensa experiência de psicologia social, de incrível riqueza. As novas condições de existência, de caráter tão estranho, com peculiaridades tão acentuadas, nas quais tantos homens de repente se viram lançados – a força singular dos sentimentos que agitavam os povos e os exércitos –, toda essa perturbação da vida social e, se ousarmos falar assim, essa ampliação de seus traços, como através de uma lente potente, deve, ao que parece, permitir ao observador apreender sem muita dificuldade entre os diferentes fenômenos as ligações essenciais”.
Independentemente da declaração do presidente Macron (“nós estamos em guerra...”), pode ser interessante traçar essa linha entre a situação de guerra militar e a situação de reclusão. Esta última impõe privações e restrições muito severas a indivíduos que, nas sociedades ocidentais, não estão acostumados a isso. As primeiras perguntas que vêm à mente sobre esse assunto são as seguintes: a reclusão é respeitada na França? “Pouco, muito, de jeito nenhum”? Por quem? Como? Mais no campo do que na cidade? Mais no centro da cidade do que nos “bairros”? Etc. Na ausência de dados estatísticos confiáveis, o primeiro reflexo que devemos ter nessa área é a prudência interpretativa.
Antes de abordar a maneira como podemos proceder pela mobilização de uma série de pistas, capazes de nos guiar em direção a hipóteses de trabalho, comecemos com um espanto. Que é o seguinte. Como um fiel espectador do noticiário televisivo da France 2 (a defesa do serviço público obriga...), observa-se que a questão da experiência de reclusão nos bairros populares tem sido muito pouco abordada, se é que foi. A fuga de parisienses para suas segundas residências foi um assunto, mas a maneira como jovens e famílias, às vezes numerosas, experimentam sua reclusão em seus apartamentos HLM (habitations à loyer modéré, ou seja, alojamentos de baixos custos) parece ter sido esquecida. É um esquecimento intencional? Ou simples vestígio midiático da menor importância dada às condições sociais de existência das classes populares no mundo dos profissionais da informação?
A suposição de respeito à “união nacional” exigida durante esse período de reclusão não pode ser negligenciada. Isso supõe uma mobilização do aparato de informação e a operação de uma triagem na pilha de “notícias da frente de combate”. No JT da televisão pública, é dada prioridade ao monitoramento das operações nos hospitais, à apresentação do trabalho de todos os profissionais da área da saúde e toda a sua dedicação, à escuta dos conselhos de grandes professores de medicina (“infectologistas”). Em suma, uma apresentação televisiva do “esforço nacional”, o que por si só não é criticável.
Do lado dos efeitos sociais dessa pandemia, as reportagens sobre as famílias que enfrentam a reclusão (escola em casa, teletrabalho dos pais, arranjos diversos para essa nova vida, etc.) parecem reservadas especialmente às famílias privilegiadas. Provavelmente porque elas permitem que as câmeras entrem em suas casas com mais facilidade. Não se trata de gritar imediatamente com o Estado e/ou denunciar um canal de televisão “às ordem do governo”. Sem dúvida, podemos pensar que o serviço público televisivo contribui, à sua maneira, para a unidade nacional, deixando prudentemente nas sombras o que poderia manchá-la.
Uma vez examinada a maneira como a questão da reclusão é tratada na televisão (pública), vamos dar uma pequena atenção à maneira como é operado na prática. A realização de uma pequena revista da imprensa em jornais regionais (L'Est Républicain, Le Parisien, Le Progrès) nos permite reunir pistas sugestivas, se não convincentes, sobre a reclusão de geometria variável durante esta primeira semana. Sem surpresa, a reclusão demorou um pouco para ser configurada e parece ser respeitada de maneira desigual.
De acordo com os depoimentos dos diretores da segurança pública ou dos policiais, diferentes perfis de “desviantes” da norma aparecem, como aqui na região do Grand-Est, particularmente afetada. O tenente da polícia francesa que coordena o efetivo no sul do Território de Belfort, faz o seguinte diagnóstico: “Uma grande maioria as respeita... Mas uma parte não entendeu o espírito da reclusão e a outra não está pronta para entendê-la”. O prefeito (e enfermeiro) da cidade operária de Valentigney (próxima da fábrica de Sochaux-Peugeot e com uma grande área urbana sensível, Les Buis), observa “no bairro, mas também no centro da cidade, comportamentos perigosos e irresponsáveis”. A jornalista do L´Est, portanto, foi à cidade dos Buis para ver a situação mais de perto e lá encontrou uma dúzia de jovens perto de uma praça, bastante afáveis.
Vamos relatar a cena e a maneira como esses jovens infringindo a lei de reunião tentam se justificar: “Em casa, não temos o que fazer”, observa um deles que, como seus amigos, se sente a salvo do vírus. “Nós lavamos as mãos e mantemos distância um do outro”, disse um segundo. Um terceiro, da comuna de Doub, mostra sua prova: “Temos o direito de sair para fumar um cigarro. Especialmente porque alguns não podem fumar em casa... E então, lá ficamos entediados, não temos nada a fazer! Ficar um mês preso, isso é inimaginável”. Na quinta-feira à noite, eles até organizaram um churrasco: “Quando vimos a polícia, corremos para fugir deles. E você sabe o que eles fizeram, senhora, eles incineraram a nossa carne. Isso é um desperdício” (L’Est Républicain, 21-03-2020).
Em um artigo do mesmo dia, o diretor-geral da empresa de ônibus de Pays de Montbéliard fornece informações congruentes: “Nesse período de grave crise sanitária, alguns dão uma de espertinho. Tivemos que encurtar uma linha, que estamos subcontratando, porque os jovens pegavam o ônibus todos os dias, ao mesmo tempo, para não pagar a passagem!” Finalmente, em Bourg-en-Bresse, segundo o comissário de polícia, “são os mais jovens e os mais idosos que desafiam a proibição. Infelizmente, alguns jovens foram multados inúmeras vezes em alguns bairros. Os jovens dizem que não se importam e que o coronavírus é uma invenção para quebrar a economia” (Le Progrès, 22-03-2020).
Esses testemunhos não são suficientes para delimitar todo o terreno da pesquisa. Longe disso. Seu principal interesse é vislumbrar melhor as razões que podem levar certas frações da população a não querer – e principalmente a não poder – respeitar a estrita reclusão agora imposta na França. O grupo dos mais resistentes à reclusão provavelmente se encontrará em uma população jovem e masculina, seja em uma situação de abandono escolar ou pertencente à população “flutuante” dos bairros.
Ao ler nas entrelinhas esses artigos da imprensa, sentimos alguns fatores-chave de sua propensão a transgredir a regra da reclusão: é claro, em primeiro lugar, o “tédio” e a necessidade quase vital de se encontrar “entre amigos”, mas também a dificuldade de viver em harmonia com os pais e respeitar as proibições no domicílio familiar (o exemplo de “fumar”). Os diversos tipos de resistência que vemos surgir nos bairros menos favorecidos da República merecem ser examinados e não devem ser facilmente tomados pelo prisma da falta moral.
Mesmo sendo indiscutível que o descumprimento das regras de reclusão represente riscos à saúde coletiva, diz muito sobre o sentimento de marginalidade (outcast) que esses indivíduos têm de si mesmos. A este respeito, poderíamos nos aventurar a fazer a analogia com o movimento dos coletes amarelos e o significado social das formas de violência (incomum) empregadas para se fazer ouvir pelos “poderosos”.
A partir dessas primeiras incursões na reclusão, deveríamos deplorar como nosso historiador nacional (autoproclamado) Stéphane Bern fez no Le Figaro (22-03-2020) “a perda do senso cívico” em nossa velha França? Não seria conveniente recordar que esta reclusão constitui uma restrição muito séria que é – e será – vivida de maneira muito diferente, dependendo das condições sociais de nossos concidadãos? Primeiro, as condições materiais: sabemos que quem tem uma casa grande, um jardim, quem pode levar as crianças para o campo, etc., sofre menos com a reclusão. Depois, as condições culturais: o presidente Macron conclamou os seus concidadãos: “Leiam!” Mas a prática da leitura é distribuída de maneira muito desigual entre os grupos sociais.
Esse longo momento de reclusão já opera como um gigantesco amplificador das desigualdades espaciais e sociais. É um eufemismo dizer que as semanas que se anunciam constituirão uma provação para aqueles que pertencem à categoria dos “pobres”, definidos também a partir do seu capital econômico e cultural.
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Breves considerações sociológicas sobre a reclusão. Artigo de Stéphane Beaud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU