11 Abril 2019
Paolo Dall’Oglio estava com medo na manhã de 29 de julho de 2013, o último dia em que foi visto. Testemunhas relatam o que aconteceu nas horas anteriores ao rapto do jesuíta na Síria e no último encontro. “Ele nos disse: se eu não voltar, disparem o alarme.” Talvez ele tenha sido morto imediatamente.
A reportagem é de Lorenzo Cremonesi, publicada por Corriere della Sera, 09-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na manhã daquele 29 de julho de 2013, o padre Paolo Dall’Oglio estava com medo. O encontro com Abu Lukhman estava marcado para as 9 horas. Ele havia sido marcado na tarde anterior pelos responsáveis do ISIS, nos seus grandes e luminosos escritórios do governatorado de Raqqa, depois de adiá-lo uma primeira vez no dia 27 de julho. Mas Paolo agora demorava, hesitava nervosamente. Tanto que só chegará depois das 11h30.
“Se eu não sair depois de três horas, saibam que eu fui sequestrado. Se, depois de três dias, não souberem nada, façam um comunicado público”, disse eles aos seus contatos locais. Ainda se percebe pouco do ISIS na Síria naqueles dias.
Estamos quase um ano antes dos horrores cometidos pelos fanáticos jihadistas com a captura de Mosul no Iraque. Paolo sabe que o líder deles é um iraquiano, um certo Abu Bakr al Baghdadi. Ele gostaria de falar com ele, afinal, é compreensível para alguém como ele que tenta se coordenar com o front dos inimigos de Bashar Assad. Em perspectiva, seria como ir ver Osama bin Laden anos antes do 11 de setembro de 2001: sabia-se que ele era um extremista, mas apenas um entre muitos na galáxia dos radicais islâmicos.
Os membros do ISIS lhe dizem que Abu Lukhman é o homem certo, ele cuida dos assuntos políticos na nova capital do autoproclamado Califado.
“Mas Paolo entende logo que, para ele, tudo poderia dar muito mal. No escritório, eles são violentos, ameaçam-no. Dizem-lhe que ele é um kafir, um descrente, a sua vida não vale o preço da bala pronta para ele. Então, ele hesita. Não sabe o que fazer, caminha nervosamente na frente da casa do meu pai, a poucos passos do centro, onde, durante três noites, demos-lhe um quarto. Ele fala em cascata no seu perfeito árabe clássico, pede conselhos, mas depois não nos ouve. Bebe chá com pouco açúcar continuamente”, conta-nos Abdel Sattar Ramadan, professor de música de 37 anos, com quem o religioso estava então em contato direto via Facebook.
E, quase com as mesmas palavras, isso é confirmado, de Istambul, por telefone, por Eyas Daes, o jornalista local que acompanhou o Pe. Dall’Oglio pelas zonas curdas do nordeste da Síria, até Raqqa.
“No ano anterior, Paolo havia sido expulso do governo de Damasco, que o acusava de atividades subversivas junto com os terroristas islâmicos. Lembro-me do seu desprazer por ter que abandonar Mar Musa, o mosteiro dedicado ao diálogo inter-religioso no meio do deserto, que ele havia reconstruído com as próprias mãos 20 anos antes. Ele havia retornado à Síria a partir do Iraque. O visto das autoridades de Assad não tem serventia na fronteira. Tentamos dissuadi-lo. ‘Não volte para os membros do ISIS, eles vão te matar, talvez depois de torturar você’, dizíamos a ele. Mas ele foi inflexível. Então, nós o acompanhamos também ao segundo encontro. Ele não voltou mais e nós não esperamos três dias para denunciar isso ao mundo. Até onde sabemos, ele certamente está morto, provavelmente morto muito rapidamente, nas primeiras semanas, senão até nas primeiras horas do seu sequestro”, diz ele, confirmando quase todas as fontes razoavelmente confiáveis que consultamos ao longo dos anos.
Não há traço credível dele. Enquanto isso, abundam os relatos da sua execução. Nenhum refém ocidental reapareceu, vivo ou morto, nem mesmo dos escombros de Baghouz, a última fortaleza territorial do Califado no vale do Eufrates, que caiu há duas semanas.
Assim, voltamos a visitar Raqqa nos passos do Pe. Paolo Dall’Oglio. E fizemos isso lendo também as páginas do seu último livro, “Collera e Rivoluzione” [Cólera e revolução]. O diário apaixonado, militante no pleno sentido da palavra, desse jesuíta de 65 anos que não esconde a sua plena adesão às razões daqueles que se rebelam contra a ditadura, denuncia as terríveis torturas dos seus agressores contra os civis, até apoiar a violência e o uso da força pelas brigadas revolucionárias, também as islâmicas.
“Não preciso repetir aqui os motivos que me fazem ficar do lado da revolução, a ponto de justificar a autodefesa armada daquele povo traído e abandonado pela opinião pública mundial”, escreve.
Mesmo durante as suas últimas conferências na Itália, ele nos dissera para compartilhar plenamente os sentimentos daqueles que “estão prontos para morrer pela liberdade”. E, não por acaso, todos os principais líderes das Igrejas sírias locais, tradicionalmente ligadas duplamente ao regime, sempre o consideraram um inimigo, um “agente estrangeiro”.
Ainda há poucos dias, o Pe. Fathi Salibah Abdallah, figura central da basílica siríaca ortodoxa de Qamishli, mesmo tendo participado no passado de alguns seminários com Paolo Dall’Oglio em Mar Musa, acusava-o de “não ter entendido o perigo de estar com os extremistas muçulmanos”.
O ponto de partida em Raqqa é o edifício reconstruído há dois meses do Café Negative. Ao redor, os sinais da batalha que terminou com a derrota do ISIS há mais de um ano e meio são dominantes. Não há eletricidade, os geradores com a poluição do diesel e o ruído contínuo estão a todo o vapor. A água chega aos solavancos no sistema hídrico perfurado pelas bombas em várias partes.
“A cidade tinha 600 mil habitantes, agora são menos de 250 mil. Cerca de 90% das casas estão danificadas”, explica o responsável pela comissão de reconstrução, o advogado de 55 anos Abdullah al Arian, nos escritórios não muito distantes do café.
Enquanto o entrevistamos, ele fala espontaneamente sobre o Pe. Paolo. “O jesuíta era um personagem bem conhecido por nós. Muitos grupos sunitas o consideravam um líder a ser respeitado e um embaixador da revolução no mundo. Como homem da Igreja com um profundo conhecimento do nosso país, ele podia denunciar à comunidade internacional as atrocidades cometidas por Assad junto com os seus aliados russos e iranianos. Eu tenho certeza da morte dele. O primeiro que me falou dela, em uma noite no verão de 2015, foi um vizinho meu, Abu Sham Jarabulsi, de 46 anos, que era um líder do ISIS, que depois foi morto nos combates de Meyidaine. Ele era professor de matemática, estávamos jantando juntos, e ele me disse que tinha visto o cadáver, e eu não tenho nenhum motivo para não acreditar nele. A mesma versão me foi contada por Abu Ali al Sharei, juiz supremo da corte islâmica do ISIS aqui em Raqqa. Eles não fizeram um vídeo dele simplesmente porque o ISIS ainda não estava organizado. Se tivesse acontecido alguns meses mais tarde, a imagem da morte de Paolo Dall’Oglio teria sido usada na propaganda contra os ‘Cruzados’. Ambos me disseram que Paolo foi preso nos escritórios do governatorado por dois militantes: Samer al Muteiran, que agora poderia se encontrar nas prisões curdas, e Adnan Subhi al Arsan, que poderia ter escapado para a Suécia”.
E como ele foi morto? “Ele era um infiel. Foi logo espancado duramente. Uma versão fala de um prisioneiro que o teria esfaqueado na sua cela pouco depois, gritando que, assim, ele iria para o paraíso por ter eliminado um descrente. Outra relata uma execução propriamente dita por arma de fogo dentro daquele mês de agosto.”
No Café Negative, Paolo Dall’Oglio tinha organizado os primeiros encontros, já que os responsáveis locais de Al Nusra e Ahrar Al Shams, duas organizações islâmicas que, naquele momento, contrastavam o extremismo do ISIS.
No segundo dia, ele se mudou para o Apple, um café mais no centro, bem na frente de uma igreja destruída com dinamite pelos jihadistas. Ele tinha medo de ser preso. Com o seu computador, ele se movia, a cada poucas horas, entre os dois cafés, onde podia usar o wifi.
“Paolo tinha três objetivos. Gostaria de exercer uma ação moderadora entre os grupos islâmicos para criar uma frente comum. Continuava repetindo que, sem unidade interna, a revolução estava fadada ao fracasso. Em segundo lugar, ele trabalhava para facilitar o diálogo entre a população cristã e os muçulmanos em revolta. Ele sabia que as hierarquias eclesiásticas locais o odiavam. Eles gostariam que ele fosse expulso ou morto. Mas ele esperava que os fiéis cristãos pudessem ficar do seu lado. O terceiro objetivo era a libertação de alguns ativistas islâmicos moderados que o ISIS mantinha na cadeia. Infelizmente, ele não obteve nenhum resultado”, continua Abdel Sattar.
As ruas percorridas por Paolo na cidade estavam salpicadas de ruínas e entulho. Até mesmo as celas subterrâneas, onde ele provavelmente foi trancado, não existem mais.
A sua possível sepultura é contada por Yasser Khamis, 40 anos, responsável pela busca das valas comuns da prefeitura. “De 9 de janeiro de 2018 até hoje, escavamos três grandes valas comuns do ISIS. Estima- se que as vítimas na região sejam mais de 7 mil. Até agora, encontramos 4.030 cadáveres, dos quais 570 foram identificados.”
E Paolo? “Ele está entre os reféns estrangeiros que estamos procurando. Ele poderia se encontrar na vala comum de Fheha. Os chefes do ISIS que nós capturamos nos disseram que os restos mortais daqueles que morreram na prisão eram jogados lá. Mas isso deve ser verificado.”
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As últimas horas do Pe. Dall’Oglio: ''Ele foi morto imediatamente'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU