Negacionismo parlamentar põe no lixo 44 anos da política ambiental brasileira e PL da Devastação abre brecha à criação de "vales da morte" de Norte a Sul. Entrevista especial com Suely Araújo

Ao mudar a redação do PL do Licenciamento Ambiental, deputados e senadores criaram o texto mais perigoso da Nova República, segundo a ambientalista e ex-presidente do Ibama

Em 2023, mar de espuma tóxica cobriu o leito do Rio Tietê em trecho entre Itu e Salto | Foto: Junior Camargo/Arquivo pessoal

Por: Edição: Cristina Guerini | 20 Agosto 2025

Lula vetou 63 trechos dos 400 pontos do então PL da Devastação, agora Lei Geral de Licenciamento Ambiental nº 15.190/2025. Essa decisão, que entra em vigor em 180 dias, evitou retrocessos imediatos, mas não a protegeu totalmente de futuras pressões políticas ou de fragilidades estruturais. Entre os pontos vetados, destaca-se a Licença Ambiental Especial (LAE), uma emenda proposta pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre. O governo federal justificou o veto alegando que a licença promovia uma "excessiva simplificação" do processo ambiental. No entanto, o presidente publicou a Medida Provisória (MP) 1.308/2025, que, com algumas mudanças, mantém a essência da proposta original de Alcolumbre. Na prática, essa MP facilita a aprovação de projetos "de interesses do governo", como a exploração de petróleo e gás na foz do rio Amazonas e a pavimentação da BR-319.

Por outro lado, o relator do PL do Licenciamento na Câmara, deputado federal Zé Vítor (PL-MG), já defende a derrubada de alguns vetos, incluindo os que barraram pontos polêmicos. Uma disputa que está longe de acabar, pois este é, segundo Suely Araújo, "o pior texto que o Congresso Nacional já fez em 44 anos". Para a entrevistada, "a lista de problemas e inconstitucionalidades é tão absurda que nem sabemos por onde começar para tentar resolver". 

Com o novo regramento do licenciamento ambiental, a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima acredita que retornaremos ao passado, possibilitando que as empresas lancem toneladas de resíduos tóxicos no ar e nos rios, colocando em risco o meio ambiente, a biodiversidade e a vida humana. "A licença ambiental, quando foi criada em 1981, deu outra luz para o controle ambiental no Brasil. Antes disso, tínhamos situações, como o Polo Industrial de Cubatão, na Baixada Santista, que era conhecido como 'vale da morte', porque havia contaminação industrial. Entre outros problemas, havia um alto índice de anencefalia dos bebês que nasciam, porque as mães estavam contaminadas. Foi a Licença Ambiental Corretiva que mudou a realidade de Cubatão. É uma mudança da tragédia para a vida normal dentro de uma cidade industrial. Essa é a diferença que a Licença Ambiental faz", acentua. 

A ex-presidente do Ibama destaca também outros aspectos negativos da nova lei. Entre eles, a redação subjetiva de alguns trechos, como o "'melhoramento de estruturas pré-existentes', o que pode significar o asfaltamento da BR-319 ou a construção de um bueiro na mesma rodovia", e também a "desconsideração de direitos tradicionais", já que o novo modelo vai considerar apenas Terras Indígenas "as que já estão homologadas. Então, a mineração, como em Autazes, onde a área ainda não é homologada, a TI não seria, neste entendimento, considerada".

Em meio à crise climática generalizada pelos eventos extremos cada vez mais frequentes, intensos e acontecendo simultaneamente, Suely alerta que o "texto apagou qualquer menção ao termo clima e seus derivados". E adverte: "essa mudança [climática] no mundo deveria estar influenciando diretamente, tanto as políticas públicas nacionais, quanto as discussões sobre novas legislações, como o projeto de lei do PL da Devastação". 

A seguir, publicamos no formato de entrevista a videoconferência com Suely Araújo, intitulada  “A COP30 no contexto do PL da Devastação e da geopolítica global. Possibilidades e limites”, transmitida em junho na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Suely Araújo (Foto: Daisy Serena/Observatório do Clima)

Suely Araújo é urbanista e advogada, mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB. Foi consultora Legislativa da Câmara dos Deputados por 29 anos, nas áreas de meio ambiente e urbanismo. É professora voluntária e pesquisadora colaboradora plena no Instituto de Ciência Política da UnB e também leciona no mestrado em Administração Pública do Instituto Brasiliense de Direito Público. Presidiu o Ibama de 2016 a 2018. No Observatório do Clima, é coordenadora de políticas públicas.

Confira a entrevista.

IHU – Qual o atual contexto da crise climática?

Suely Araújo – Em primeiro lugar, chamo a atenção para a realidade de crise climática, que já chegou. Para quem trabalha nessa área, sempre falávamos em crise e emergência climática no futuro, mostrávamos os problemas, o aquecimento global num crescente e gerando eventos extremos, mas nunca foi tão forte a percepção técnica da ciência de que a crise climática já está posta. O mundo mudou.

Essa mudança no mundo deveria estar influenciando diretamente, tanto as políticas públicas nacionais, quanto as discussões sobre novas legislações, como o projeto de lei do PL da Devastação. E deveriam estar influenciando as ambições dos diferentes países em termos de cortes de emissões de gases de efeito estufa, além dos temas que vão ser debatidos na COP30.

Por isso, chamo a atenção para a gravidade da crise climática. Nós passamos, em 2024, o limite preconizado pelo Acordo de Paris de não aumentar a temperatura em mais de 1,5º C, considerando os níveis pré-industriais. O Acordo de Paris fala em não aumentar de forma alguma até 2ºC, mas fazer todos os esforços possíveis para não ultrapassar 1,5ºC. Mas, recentemente, a meta de 1,5ºC tem sido colocada como limite.

Em 2024, segundo os cientistas, tivemos uma temperatura média de 1,55ºC acima dos níveis pré-industriais. Então, pela primeira vez, ultrapassamos o limite que não deveríamos. No Brasil sentimos isso bem de perto, gerando um aumento dos eventos extremos – eles estão cada vez mais extremos e frequentes e ocorrem ao mesmo tempo.

No caso brasileiro, houve em maio de 2024 a grande enchente no Rio Grande do Sul, com dimensões de tragédia verdadeira. O estado do Rio Grande do Sul levará anos para se recuperar e não há nada que garanta que não teremos situações parecidas nos próximos anos. O RS é apontado, nos mapeamentos de área de risco, como região sujeita a eventos ligados ao aumento de pluviosidade e, ao mesmo tempo, a períodos de estiagem. O estado tem uma condição mista, mas tem uma tendência marcada de possibilidade de eventos relacionados à alta pluviosidade.

Eventos extremos simultâneos

Paralelamente à enchente que ocorria no RS em áreas urbanas e rurais em maio de 2024, há mapas que mostram enchentes no Afeganistão, onda de calor no México (que estava matando a população), temperaturas acima do normal em vários países, ciclones tropicais e tufões. Os mapas são impressionantes, inclusive mostrando o aumento da temperatura nos oceanos, que estiveram muito aquecidos em 2024. São dados que mostram a mudança no padrão.

Os cientistas têm alertado para o fato de que o aumento da temperatura está levando uma nova condição para a humanidade. Temos que ser muito firmes nas medidas de políticas públicas, tanto para mitigação, quanto para um componente em geral mais esquecido, que é a adaptação para as mudanças do clima.

No Brasil, além do RS em 2024, nós tivemos a segunda grande seca na região amazônica. Foram duas secas consecutivas históricas – 2023 e 2024 –, o que está gerando dificuldade até para o controle do desmatamento. Há a opção, em determinadas partes da Amazônia, de queimar primeiro e desmatar depois, mudando inclusive o tipo de monitoramento e controle que o governo tem que fazer.

IHU – Quais as alternativas diante desse cenário?

Suely Araújo – Precisamos frear com urgência o aquecimento global no plano mundial, parando com a queima dos combustíveis fósseis.

No caso do Brasil, 46% das emissões estão associadas a desmatamento, mudança no uso da terra. A energia equivale a 18% das emissões brasileiras: temos um padrão diferente [dos demais países], que não nos coloca em vantagem, porque o Brasil fica entre 5º e 6º de maior emissor de gases de efeito estufa no mundo, se considerarmos o desmatamento. Isso nos coloca ao lado de países como Indonésia e Congo, que não “estão bem na fita”, mas em uma situação ruim e têm padrões de emissões de energia melhores do que os grandes países emissores. Entre os grandes emissores, o primeiro é a China, seguido dos Estados Unidos, Rússia, Índia, Indonésia e Brasil. Se a Europa é colocada como “país único”, entra nesse ranking.

Desmatamento: vilão das emissões no Brasil

O Brasil não tem emissões altíssimas, mas estamos entre os grandes emissores porque desmatamos demais. É importante compreendermos por que isso vai fazer diferença nas negociações internacionais, nas legislações internas que podem impulsionar o desmatamento. Estamos nesse quadro porque desmatamos muito mais do que poderíamos. No mundo, em geral, o grande vilão é a queima de combustíveis fósseis.

O Brasil tem vantagem em relação aos Estados Unidos, China e Rússia porque não depende do carvão mineral, temos uma boa matriz elétrica – mais de 90% da nossa eletricidade vem de renováveis. Mas nossa matriz energética depende muito de diesel, principalmente para transporte de carga. Essa matriz que privilegia rodovias nos leva a depender dos caminhões e usamos muito combustível fóssil.

De forma geral, no mundo, temos que reduzir a queima de combustíveis fósseis. Além disso, precisamos reduzir os subsídios para esse setor, que são muitos.

O Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc tem um estudo, no caso brasileiro, que mostra que a soma de subsídios diretos e indiretos para a indústria petroleira, principalmente com relação ao imposto de importação que é liberado para a compra de equipamentos, foi da ordem dos R$ 80 bilhões no ano de 2022. É muito dinheiro. Seria possível fazer muito em termos de transição energética com essa cifra.

O Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança do Clima – IPCC, na sigla em inglês, criado em 1988, antes da Convenção Quadro sobre Mudanças do Clima em 1992, se reúne periodicamente. São cientistas do mundo inteiro que fazem relatórios e já foram publicadas seis séries – a sexta série começou em agosto de 2021 e foi até março de 2023 (AR-6 do IPCC). São vários documentos bastante técnicos por série, mas vale a pena a leitura do Summary for Politicymakers, que é em inglês, mas tem uma linguagem muito acessível.

O IPCC coloca, por exemplo, que os fluxos financeiros para os combustíveis fósseis são muito maiores do que os fluxos para a adaptação e mitigação do clima, inclusive no caso brasileiro. Há injustiças que estão nas relações entre os países e na relação interna de cada país.

Então, a crise climática é profundamente injusta, porque os países que pouco contribuíram para as mudanças climáticas – não é o caso brasileiro, porque o desmatamento historicamente contribuiu bastante –, muitas vezes são os que mais sofrem as consequências. O exemplo que mais costumamos usar são os países insulares que podem realmente desaparecer. Existe essa disparidade: um país, que na cota do que contribuiu [com emissões] nem aparece nos índices, está em risco de desaparecer pelo aumento do nível do mar. O IPCC destaca muito a questão da crise climática, que deve estar presente em todas as políticas públicas relacionadas ao clima e nas discussões da COP.

IHU – Quais são os temas que precisam estar presentes nos debates da COP30?

Suely Araújo – Ainda estão sendo definidos os temas da COP30, mas com certeza um dos assuntos será a adaptação do clima, que tem ganhado força nas conferências nos dos últimos anos, exatamente por causa da crise climática, da emergência climática e dos eventos extremos. Sempre será preciso mitigar os efeitos das emissões dos gases do efeito estufa, mas a adaptação será sempre um tema presente. O assunto já era tratado na Convenção de 1992, no Protocolo de Kyoto, no Acordo de Paris, mas adaptação mesmo, fizemos pouca. Essas lacunas de adaptação vão crescer em termos de tema a serem debatido nas COPs e nas políticas públicas de cada país.

A adaptação em geral envolve os territórios, o que abrange cuidar de pessoas que estão em áreas de risco, trabalhar com infraestruturas resilientes aos eventos extremos, refazer muitas infraestruturas e que precisa de muitas verbas que não vêm sendo aplicadas. Não é só uma omissão do governo brasileiro, mas das três esferas da federação, porque todo mundo tem que estar investindo, mas não internalizamos a adaptação nas diferentes políticas públicas.

O governo Lula III está elaborando um novo Plano Clima, que está dividido em Plano Clima-Adaptação e Plano Clima-Mitigação. No Plano de Adaptação tem 16 planos setoriais/temáticos. Todas as áreas de políticas públicas deveriam estar com as iniciativas sendo planejadas e implementadas, não só considerando a mitigação e a redução de gases do efeito estufa, mas a adaptação também.

A adaptação foi o primeiro grande tema já anunciado para a COP30. Na última COP o tema foi financiamento e se conseguiu muito pouco, os países em desenvolvimento estavam pedindo trilhões e conseguiram aumentar um pouco os milhões que já estavam prometidos, mas não estavam cumpridos. As lacunas do dinheiro devem se repetir como tema para a COP30.

O governo brasileiro está estudando como propor a entrada do afastamento dos combustíveis fosseis. Até mesmo porque o Brasil tem contradições na área de energia por causa da proposta de expansão da produção de petróleo.

IHU – Os compromissos assumidos pelos países, por meio da atualização das Contribuições Nacionalmente Determinadas – NDCs, indicam que o mundo vai ficar dentro da meta estipulada pelo Acordo de Paris?

Suely Araújo – Por conta da emergência climática, deveríamos estar falando muito mais em redução de emissões. Os países estão entregando suas novas Contribuições Nacionalmente Determinadas – NDCs, o coração do Acordo de Paris. Cada um dos 190 países tem que fazer um documento onde se compromete com medidas ambiciosas de redução das emissões. Não tem modelo ou número obrigatório, a não ser olhar para que o aumento da temperatura não ultrapasse 1,5ºC.

O Brasil atualizou sua NDC no fim de 2024, foi o segundo país a rever sua meta, mas os demais países estão atualizando suas metas, mas tem um problema: se todos os países cumprissem seus compromissos nacionais, ultrapassaríamos muito o limite de 1,5ºC. Uma meta que até já ultrapassamos, mas ficaríamos totalmente inviabilizados de retornar um pouco nesse valor [se as NDCs não forem mais ambiciosas]. Se somarmos todas as NDCs, ultrapassamos bastante o que está previsto no Acordo de Paris. Tem algumas previsões bastante assustadoras. Agora, todas essas instabilidades políticas e as guerras que estamos vivendo em diferentes locais, têm levado a pioras nesse quadro.

Além disso, houve a saída dos EUA [do Acordo de Paris], que é um grande player, porque é o segundo maior emissor de gases do efeito estufa do mundo. Eles ainda têm que ficar o ano inteiro, porque segundo as regras do Acordo, quando anunciada a saída, o país precisa ficar por mais um ano. Mas eles não vão se comprometer com nada em termos de controle de emissões. Muito pelo contrário, têm adotado uma postura negacionista da política climática, como se fosse inevitável tudo o que está acontecendo e “apertaram um botão” que visa garantir a economia interna e que desconsidera o resto do mundo.

A situação atual é bastante complexa e afeta as discussões internacionais em termos de COP30, porque vai faltar um ator poderoso. Os Estados Unidos, historicamente, nos acordos climáticos, nunca ajudaram muito, mesmo em governo democratas, quando ficam dentro dos acordos, o grau de compromisso é bem aquém do necessário.

Hoje há uma expectativa em relação ao papel da China, que já é o maior emissor há alguns anos, mas tem adotado políticas de redução de emissões e tem introduzido mudanças na sua economia, não são medidas que as torne verde, porque os chineses têm uma dependência enorme de carvão mineral, mas pelo menos tem melhorado o quadro do país nesse sentido. A expectativa, portanto, na política internacional, é o que a China vai assumir de liderança, porque fará toda a diferença. Medidas que às vezes parecem pequenas na China, são um diferencial em termos de controle de emissões. Esperamos que a China possa assumir uma liderança e dar um equilibrada em relação aos Estados Unidos, que não resolve ter a presença desse player sem que haja um compromisso firmado por eles.

Esse é o quadro internacional: crise climática, dificuldade para os países se comprometerem significativamente com reduções de emissões e uma instabilidade política que vai afetar – e já está afetando – as negociações do clima.

IHU – O que esperar da COP30 diante do “quadro internacional” que a senhora aponta?

Suely Araújo – Do ponto de vista internacional, a COP30 não deve ter nenhum tratado relevante, o que deve ser gerado são documentos políticos. Não é uma COP em que há a expectativa de que será assinado um “novo Acordo de Paris” ou “novo Protocolo de Kyoto”, esqueçam isso. Diante do grau da emergência climática – temos eventos extremos no mundo inteiro aumentando a frequência e a intensidade – as autoridades deveriam estar debatendo com muito mais força e urgência a questão da redução das emissões de gás de efeito estufa.

Também precisam discutir ao menos um padrão de medidas de adaptação, cujo o mundo se comprometa [a adotar] como “caminho correto”. Em termos de adaptação, não será assinado um acordo internacional, mas devem ser trabalhados indicadores nesse sentido, que podem significar avanços.

Devem ainda acontecer discussões de financiamento, porque na última COP, em Baku, [não houve acordo robusto]. E há uma demanda, principalmente dos países em desenvolvimento, para que isso ocorra.

O Brasil também está pedindo negociação em relação a um novo fundo de financiamento de florestas tropicais. É logico que o país peça isso. Estão com um desenho de uma nova forma de financiamento que poderia ser pactuada na COP30, não envolvendo os 190 países, mas um grupo menor provavelmente.

IHU – Qual o significado da realização de uma conferência do clima no meio da floresta Amazônica?

Suely Araújo – É importante entender que se criou uma expectativa enorme com relação à COP30, que é a COP da Floresta, em Belém, da Amazônia, que também representa a Pan-Amazônia, mas esse não é o debate principal da COP enquanto diplomacia. As COPs têm uma lógica. Uma conferência não decidiu, passou para outra e as edições foram se complementando – essa lógica não muda. A COP como processo pode ser bastante benéfica à Amazônia, à cidade de Belém e à Pan-Amazônia para chamar a atenção para os problemas e para conseguirem investimentos internacionais, mas tudo isso fora do debate mais institucionalizado da COP.

Agora, provavelmente, estamos investindo menos do que poderíamos para alcançar esses resultados para a cidade ou a região. É algo que não faz parte da COP, mas ter um grande investimento, por exemplo, em recuperação nativa no estado do Pará, é benéfico. Essa movimentação política da COP pode trazer isso. Também há a possibilidade de investimentos importantes para as comunidades indígenas e outras populações tradicionais da região. A COP como movimento político é bastante relevante. Tem a parte da COP “conferência internacional” e a parte que é a “movimentação política”.

COP30 e os preços abusivos

Tem ocorrido problemas na organização, eu particularmente acho que a COP em Belém acabou. Não faz sentido algum mudar, mas há um problema sério de infraestrutura, não só em termos de vagas, mas também de preços. O mercado dos hotéis e acomodações está trabalhando com preços que estão afastando muita gente dos movimentos sociais, porque os valores são impraticáveis. Sempre foi cara a parte de infraestrutura nas COPs, mas os preços dolarizados estão passando de todos os limites. Eu conheço organizações internacionais que já desistiram da participação. A escolha de Belém é justificável, mas há lacunas de capacidade de realização da COP que vão aparecer na conferência.

Estão contratando barcos e transatlânticos [para servir de hospedagem], mas a conta não fecha. Vamos ver se conseguem agilizar esse processo e abaixar os preços. A COP será realizada em Belém e espero que os governos consigam dar conta de organizar tudo isso, porque é um evento importante e simbólico para o país.

O Brasil tem todas as condições de ser um líder climático e ambiental de forma mais ampla, mas usa menos do que deveria. Há pessoas preparadas para tudo isso, como a Ana Toni, o embaixador André Corrêa do Lago e a ministra Marina Silva, pessoas acostumadas com as discussões nas Conferências de Clima, que conhecem e sabem como deve ser feito. Mas o Brasil provavelmente tem que corrigir alguns conflitos internos, para que possa se colocar realmente como um líder mundial no plano climático.

IHU – Como o Brasil pode se colocar como líder climático?

Suely Araújo – O Brasil está entre as dez grandes economias do mundo e, entre estes, provavelmente, é o único país que tem condição de chegar ao status de país carbono negativo até 2045, se fizer essa opção. Isso é melhor do que carbono zero, porque carbono zero é quando sequestra tanto quanto emite – os países têm até 2050 para atingir esse equilíbrio chamado Net Zero [emissões líquidas zero de carbono].

O Brasil tem esse potencial – e deveria usar para liderar pelo exemplo – porque tem uma série de vantagens no padrão de suas emissões: 46% das emissões de gases de efeito estufa são mudanças de uso da terra, isto é, desmatamento; 28% são oriundas da agropecuária, descontando desmatamento, basicamente o metano do boi; 18% energia; 4% resíduos e 4% da indústria. Essa é a nossa matriz, sem sequestro, sem o que geramos.

Desmatamento nós sabemos como baixar. O governo Lula III apresentou redução do desmatamento, houve um aumento em alguns meses por influência dos incêndios florestais, mas a atual gestão tem reduzido o desmatamento na Amazônia. No Cerrado enfrenta um pouco mais de dificuldade. Essa mesma equipe, incluindo a Ministra Marina Silva, fez esse mesmo trabalho em 2003. Foi reduzido, entre 2004 e 2012, 83% do desmatamento na Amazônia, algo histórico que mudou os patamares [anteriores do Brasil]. Tínhamos mais de 20 mil km² por ano de desmatamento na Amazônia. Mesmo no governo Bolsonaro, com o aumento, o índice ficou em 13 mil Km². A diminuição aconteceu, principalmente, por conta do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm. Esse plano ficou paralisado entre 2019 e 2022 e foi retomado no primeiro dia de governo do Lula III.

Quando falamos que 46% das nossas emissões são provenientes de desmatamento, sabemos o caminho para reduzir esse número. Se controlarmos o desmatamento, já mudaremos o patamar de emissões.

Agricultura de baixo carbono

Com 28% das emissões oriundas do agro, a maior contribuição vem do metano da pecuária. Como não dá para boi não emitir metano porque é um ruminante que arrota, é possível baixar as emissões, por exemplo, por meio do Plano ABC, que é um Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono. O plano mostra como fazer uma pecuária com emissões mais controladas. E ele deveria ser estendido para todo o setor do agro. Sabemos fazer agricultura de baixo carbono.

Além disso, há processos que vêm do Brasil Colônia, como a rotação de pastagem. No caso da pecuária, aposta-se muito em processos produtivos que levam ao abate precoce do gado. Por meio da seleção genética e com o uso de alguns produtos é possível abater o gado antes, o que diminui as emissões.

Emissões no Brasil

Se somarmos controle de desmatamento e agropecuária de baixo carbono, estamos falando em mais de 70% das emissões brasileiras. Nós temos muito mais condições de chegar à situação de carbono zero ou carbono negativo, porque não dependemos, por exemplo, do carvão mineral.

O carvão mineral, em termos de geração de energia, é 1,2% da matriz elétrica. Em termos de geração de eletricidade, poderíamos desligar todas as nossas térmicas a carvão hoje e não faria falta no sistema interligado. O problema do carvão do Sul do país é discutir a economia da região, não é um problema técnico e não há necessidade do uso de carvão.

Vantagem levaria o Brasil a líder climático

Portanto, há vantagens que dão ao Brasil a possibilidade de se tornar um líder climático. Há condições para atingir um quadro adequado de emissões antes dos outros países que têm economias grandes. Isso deveria ser assumido como uma vantagem: o Brasil liderar pelo exemplo e conseguir financiamento para recuperação florestal e controle do desmatamento.

IHU – Quais são os rumos do governo Lula III nas políticas climáticas e ambientais?

Suely Araújo – O governo atual reconstruiu a governança da política climática e de meio ambiente, estão tentando controlar o desmatamento com resultados que são positivos. Na Amazônia, maior parte do desmatamento é ilegal, no Cerrado, os estados dão autorizações. Assim, a fiscalização chega em uma grande fazenda de soja no Matopiba e vai encontrar tudo autorizado – são milhares de hectares de supressão de vegetação nativa autorizada. Nesse sentido, a solução para o governo federal é mais complexa, mas estão tentando formular pactos políticos com os governadores.

Tem muita coisa indo bem, mas tem outras que vão mal, principalmente na área de energia e na decisão governamental de aumentar muito a produção de petróleo no país. É a grande contradição ambiental do governo Lula.

Contradições nas políticas ambientais

O Brasil, hoje, é o 8º maior produtor de petróleo do mundo, com 3 milhões e 400 mil barris por dia. Nós produzimos mais petróleo que o Kwait e a Noruega, países petroleiros históricos. Pouco mais da metade desse petróleo vai para a exportação. O petróleo foi o principal produto da nossa pauta de exportação em 2024, gerou mais dinheiro do que a soja.

O país assumiu uma decisão de intensificar – e muito – a produção de petróleo no país, em plena crise climática. O petróleo exportado não entra na contabilidade da nossa NDC, mas ele vai queimar em algum lugar e aumentar o aquecimento global. Cerca de 80% das emissões, no caso dos combustíveis fósseis, são oriundas da queima. Não importa a Petrobras ou outras petroleiras diminuírem as emissões no transporte ou na produção, isso vai significar pouco.

IHU – Existe um negacionismo por trás da decisão do governo de aumentar a exploração de combustíveis fósseis?

Suely Araújo – Quando o Brasil opta por aumentar muito a produção de petróleo, está na verdade explicitando um negacionismo, não das mudanças climáticas, mas da relevância e da intensidade [do aquecimento global]. Isso porque está ignorando que nós estamos em emergência climática. Essa decisão não é só da Petrobras, é também da área de energia e da Presidência da República.

No leilão de 17 de junho de 2025, da Agência Nacional de Petróleo, foram ofertados 47 novos blocos na bacia sedimentar na Foz do Amazonas. Além de blocos relativamente próximos de Fernando de Noronha, na cadeia de Montes Submarinos, que fica logo depois do arquipélago e próximo ao Atol das Rocas. Ainda temos um número considerável de novos blocos ofertados em áreas sensíveis. Será que precisamos disso?

Petróleo offshore e a justiça social

Petróleo dá dinheiro, mas não traz justiça social. Temos áreas no país que produzem petróleo há muito tempo e que têm indicadores sociais problemáticos. Se olharmos o índice de coleta de esgoto em Maricá, que recebe milhões por ano em royalties, é abaixo de 20%. Petróleo offshore não é distribuidor de renda, mas concentrador de renda. O próprio Tribunal de Conta das União – TCU tem relatórios recentes que a destinação dos cursos do petróleo tem enfrentado muitos problemas e que em grande parte vai para pagamento da dívida pública. Essa é a maior contradição do governo Lula III.

IHU – Como chegamos ao PL da Devastação, que levou à nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental?

Suely Araújo – A primeira proposta da Lei de Licenciamento Ambiental é do ex-deputado Fábio Feldmann, que é o redator do capítulo do meio ambiente da Assembleia Constituinte. Esse projeto foi apresentado em 1988, foi aprovado nas comissões e foi arquivado. Em 2004, ex-deputado Luciano Zica, que é um especialista em qualidade ambiental e foi secretário na pasta do meio ambiente, apresentou um projeto tentando organizar o licenciamento ambiental. Até então, o licenciamento só tinha um artigo na Lei da Política Nacional de Meio Ambiente de 1981 falando sobre licença no país. O resto é um decreto e outras resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama. E há legislações estaduais nos 27 estados que muitas vezes conflitam com as resoluções do Conama.

PL da Devastação: redações subjetivas

Os ambientalistas, vendo essa situação, 20 anos atrás, resolveram propor uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental e, no curso do processo, ao invés de criar uma lei que regulamentava o licenciamento, tentando estabelecer padrões básicos no país como um todo, foi ficando como uma lei da não licença, com listas grandes de isenções de licenças e redações, muitas vezes, subjetivas. Como, por exemplo, “melhoramento de estruturas pré-existentes”, o que pode significar o asfaltamento da BR-319, que as modelagens mostram que vai multiplicar por quatro o desmatamento no estado do Amazonas e pode significar a construção de um bueiro na mesma rodovia. Portanto, tem redações que podem ser aplicadas para isentar até megaempreendimentos, como o asfaltamento da BR-319 no meio do estado do Amazonas, que tem uma área com vegetação nativa, com muito mais floresta do que o Pará. Essa estrada já está aberta, já existe, mas esse asfaltamento vai facilitar – já está facilitando – a instalação de “espinhas de peixes”, ramais irregulares ao longo da estrada que são usados para desmatar.

PL da Devastação: autolicenciamento é a regra

Além disso, o texto prioriza o autolicenciamento, cujo nome oficial é Licença por Adesão e Compromisso. É o único tipo de licenciamento em que não há um estudo entregue pelo empreendedor. O empreendedor se limita a preencher uma ficha de caracterização do empreendimento, sem análises de alternativas técnicas ou locacionais – o estudo ambiental vai para o ar – e ao “apertar um botão” a licença sai impressa. Ninguém sabe ao certo no que isso vai dar.

Há um entendimento do Supremo Tribunal Federal de que esse tipo de licença só pode ser aplicada para empreendimentos de baixo risco ambiental e pequeno potencial poluidor. Mas o texto que está sendo consolidado não leva em conta a decisão do STF e, da forma como está escrito, estimamos que 90% dos processos vão virar um “apertar de botão”. Isso significa que vamos voltar a uma era de descontrole ambiental. No texto tem escrito, inclusive, de que não há necessidade de leitura da caracterização dos empreendimentos, que essa leitura é por amostragem.

Falta de licenciamento cria “vales da morte”

A licença ambiental, quando foi criada em 1981, deu outra luz para o controle ambiental no Brasil. Antes disso, tínhamos situações, como o Polo Industrial de Cubatão, na Baixada Santista, que era conhecido como “vale da morte”, porque havia contaminação industrial. Entre outros problemas, havia um alto índice de anencefalia dos bebês que nasciam, porque as mães estavam contaminadas. Foi a Licença Ambiental Corretiva que mudou a realidade de Cubatão. É uma mudança da tragédia para a vida normal dentro de uma cidade industrial. Essa é a diferença que a Licença Ambiental faz. Portanto, ela não pode virar um “apertar de botão”, não pode tudo ficar sob a responsabilidade de uma Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, que se acontecer algo não tem um tostão para pagar nada, porque vai estar na responsabilidade de quem assinou algum papel para a empresa.

PL da Devastação e os direitos dos povos tradicionais

Outro ponto crítico do texto é a desconsideração de direitos tradicionais, de tal modo que só vão considerar Terras Indígenas – TI as que já estão homologadas. Então, a mineração, como em Autazes, onde a área ainda não é homologada, a TI não seria, neste entendimento, considerada. Territórios quilombolas só os titulados serão considerados, sendo que mais de 80% desses territórios ainda não são titulados.

Em 44 anos, o pior texto já produzido pelo Congresso Nacional

A lista de problemas e inconstitucionalidades é tão absurda que nem sabemos por onde começar para tentar resolver. A Câmara aprovou um texto em 2021 que foi para o Senado e foi alterado recentemente e na terceira fase a Câmara só aceita ou não as alterações propostas. Esse é o pior texto que o Congresso Nacional já fez em 44 anos.

A situação é desesperadora porque a Licença Ambiental é a principal ferramenta da Política Nacional de Prevenção de Danos, aqui e no mundo inteiro. Nós fizemos um movimento grande contra o PL da Devastação, mas boa parte do governo da área de infraestrutura apoia esse texto.

Eu trabalhei 29 anos na Câmara dos Deputados redigindo legislação e eu nunca vi algo tão ruim, tão perigoso. Eu considero a implosão de parte da Política Nacional de Meio Ambiente. Além do mais, haverá a desregulamentação de todas as atividades agropecuárias que não precisam de licença, com exceção da pecuária intensiva de médio e grande porte. Há uma série de pontos nessa lei que afetam diretamente a questão climática.

Congresso negacionista da crise climática

Mais do que isso, em 2025, na condição da emergência climática, o texto apagou qualquer menção ao termo clima e seus derivados. O termo desapareceu do texto da Câmara em 2021 e nunca mais voltou. A lei está ignorando completamente a questão climática no ano de 2025. É isso que os parlamentares estão consolidando.

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