“O STF e a pacificação colonial”. Destaques da semana

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Cristina Guerini | 31 Agosto 2024

Na tentativa de negociar o inegociável, o STF negou sua função de guardião da Constituição. A Apib abandonou a mesa de negociações, mas o marco temporal e ineficiência do Estado têm massacrado os indígenas, que estão sob ataques permanentes. O Brasil segue queimando e São Paulo teve seu “dia do fogo”. Os problemas ambientais se espalham, enquanto das eleições municipais emergem figuras dantescas. Seguimos de olho nas guerras e nos pobres entre os mais pobres. Esses e outros assuntos nos Destaques da Semana do IHU.

Confira os destaques na versão em áudio.

Direitos inegociáveis

Direitos são inegociáveis. A afirmação dos indígenas, que saíram da mesa de negociações da “conciliação forçada” promovida pelo ministro Gilmar Mendes, está correta: as terras indígenas são direitos constitucionais inalienáveis e imprescritíveis. Aliás, o próprio STF já reafirmou isso ao julgar o Marco Temporal no ano passado. A Apib foi certeira em seu comunicado: “os povos indígenas estão sob guarda de cláusulas pétreas da Constituição, cuja defesa e guarda é função do Supremo Tribunal Federal!”. Com o fracasso da mesa de conciliação, o Cimi já conclamou ao STF para decidir sobre a Lei 14.701, sem retrocessos.    

 

Efeitos colaterais

A conciliação no STF tem gerado efeitos colaterais, em especial na violência contra os indígenas. No dia da segunda audiência de conciliação do STF, pelo menos quatro indígenas Avá-Guarani, da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, em Guaíra, no Paraná, foram feridos em novo ataque. O garimpo ilegal continua avançando, assim como as facções criminosas. Uma troca na chefia da Polícia Federal no Amazonas pode ainda agravar a situação. E, nas “cidades do ouro”, os garimpeiros estão a frente de muitas candidaturas nas eleições municipais.

Dever de proteger

Função do Estado, a proteção dos povos originários está estagnada. Apesar as ações na Terra Yanomami, os indígenas vivem situação dramática. Caso também dos Laklãnõ/Xokleng, de Santa Catarina, que protagonizaram a vitória histórica no STF em 2023 contra o Marco Temporal, mas que agora aguardam a mesa de conciliação no judiciário sob cerco de violência, assim como todas as outras comunidades indígenas espalhadas pelo país. No Mato Grosso do Sul, a guerra já foi declarada aos indígenas, que foram perseguidos e atropelados. Lá, os indígenas, única força de resistência organizada, estão formando os jovens sob a pedagogia da insurgência. Um movimento dos “povos abrem os caminhos nas encruzilhadas para a inevitável primavera anticolonial que já começa a desabrochar em seus primeiros botões de libertação”.  

Crime organizado

O Estado continua a ser conivente, quando não tem ligação direta, com o crime organizado. Os ataques à retomada indígena em Douradina (MS) têm infraestrutura na Fazenda Irmãos Spessatto, sobreposta à Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica. A filha de Cleto Spessatto, dono da fazenda, foi denunciada em 2019 por associação com o PCC. Mas eles não atuam somente usurpando terras indígenas. Ações ilegais de despejo se tornaram comuns no sul e sudeste do Pará é mais um dos métodos usados por latifundiários para atacar a reforma agrária.

“Golpismo incendiário”

O Brasil literalmente queimou esse ano. De janeiro para cá, conseguimos bater todos os recordes com as queimadas: houve um aumento de 75% nos focos de calor. Nos últimos dias, o epicentro do fogo foi o estado de São Paulo, com incêndios criminosos, promovidos pelo “golpismo incendiário”: 81% dos focos de calor foram em áreas de plantação e pastagem e “foi detectado um ‘enxame’ de fogo simultâneo, com mais de 3 mil focos. Somente o homem é capaz de organizar algo assim, de forma muito bem articulada e com interesse em algo específico”, destacou Bruno Brezenski em entrevista ao IHU.   

Dia do fogo

Os ataques orquestrados em São Paulo lembram os ataques coordenados na Amazônia, em 2019. O IPAM divulgou pesquisa que corrobora com a tese  e a própria Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, declarou que tudo indica se tratar de ação criminosa.  À época, a gestão federal chegou a acusar as ONGs de colocar fogo na Amazônia. Usando a mesma metodologia de disseminar notícias falsas, os parlamentares da bancada ruralista passaram a utilizar suas redes sociais acusando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e o governo federal de estar por trás dos incêndios.

“Desmatamento é caro, fogo é mais barato”

“Não preciso desmatar. Porque o desmatamento é caro. O fogo é muito mais barato, só comprar gasolina e sair espalhando”, declarou Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama. Enfático, disse que “as mudanças climáticas chegaram”. Inescapável também são as previsões assustadoras: em função da seca antecipada, o órgão prevê mais dois meses de queimadas críticas. Isso tudo dentro um cenário já desastroso, com uma mancha de fogo com mais de 500 km de extensão em cima da Amazônia, que só em agosto teve 2,5 milhões de hectares consumidos pelo fogo. Pará e Rondônia já estão em emergência, em Porto Velho foi registrada a pior qualidade do ar do país. O STF já interveio no combate às chamas e Marina Silva defendeu penas mais severas para os incendiários. Já temos o Dom do fogo e não há possibilidade política de deter a autodestruição.

Pior estiagem

A seca também atinge novo recorde histórico: 16 estados e o Distrito Federal passam pela pior estiagem dos últimos 44 anos. No Amazonas, as comunidades isoladas estão sem água para beber. O rio Acre encontra-se a poucos centímetros da menor cota já registrada, mostrando o descaso que temos com nossos rios. A seca fez com que os 22 municípios do estado entrassem em situação de emergência. O problema também atinge São Paulo, que tem 60% dos municípios comprometidos.  

Perplexidade

“O que está ocorrendo na área de meio ambiente do governo brasileiro?”, questionou Cesar Benjamin ao falar da sua perplexidade diante dos concomitantes problemas ambientais que se espalham pelo país. Para melhorar a situação e fazer frente a tantos desastres ecológicos, mitigação e adaptação estão na pauta, além da proposta do Observatório do Clima, com uma nova e ousada meta climática: Brasil deverá cortar suas emissões de gases de efeito estufa em pelo menos 92% até 2035 em relação a 2005, quando o país emitiu 2.440 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente. Será que o Brasil vai assumir a liderança climática

Jesus, a lei e o desejo

“Sem esse testemunho de cuidado por aqueles que estão no sofrimento e na tristeza, na pobreza e no abandono, na tribulação e no desespero, mas também por aqueles que estão mergulhados na hipocrisia e na ganância, na preservação obtusa de suas posses e na rejeição do amor, o destino que ele carrega em seu nome não se teria realizado. É por isso que seu primeiro e decisivo passo é ressignificar a relação entre a Lei e a vida. Se, de fato, a Lei tende a extirpar o desejo da vida, ela se torna murcha, se esvazia, endurece, fica sem coração, torna-se uma norma repressiva que não age mais a serviço da vida, mas a serviço da morte. Ao estabelecer uma nova aliança entre a vida do desejo e a Lei, Jesus não renega a Lei de Moisés, mas a herda plenamente”, explica o psicanalista italiano Massimo Recalcati

Cultura da indiferença e do descarte

Assim como Jesus, papa Francisco nos lembra que “o Senhor está com os migrantes e não com aqueles que os rejeitam”. A publicação do Decreto Piantedosi, na Itália, fez com que o pontífice mudasse a agenda, deixando de realizar a habitual catequese, para proferir uma mensagem a favor dos mais pobres entre os pobres: “estes homens e mulheres corajosos são sinal de uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura negativa da indiferença e do descarte: o que mata os migrantes é a nossa indiferença, a atitude de descarte”. Isso tudo na mesma semana em que cinco barcos foram disponibilizados para resgatar dos mortos do Bayesian.

Raniero La Valle definiu a situação: “o nostro mare, contra sua vontade, tornou-se cúmplice de uma violência sem precedentes. Para aqueles que, ao vê-la, gritavam 'Terra, terra!', fechou os portos, viu o resgate de náufragos no mar sendo transformados de obrigação em crime, os navios de resgate impedidos de zarpar, os barcos de patrulha à caça de ilegais financiados, aos 'carregados de resíduos' dos salvados ser imposto navegar mais ainda para portos distantes, os desembarcados serem trancados em campos de migrantes, deportados ou trocados por dinheiro e enviados de volta para suas terras de origem, e os pobres, os fugitivos, os perseguidos riscados da informação”.    

Luz ou escuridão?

“Pessoas, quando encurraladas, são capazes de entregar seus destinos a monstros, desde que esses monstros falem a língua que elas querem ouvir. Personagens funestos que aparecem de tempo em tempo são apenas o começo, porque o fim, esse, já estará escrito nas paredes sujas das ignorâncias e dos medos. Pode também haver um raio de sol a iluminar corações e mentes, produzindo uma vitória coletiva a evitar que as pessoas sigam reféns das sombras e das cinzas. O tempo está turvo, mas o sol há de brilhar mais uma vez”, pontuou Célio Turino ao falar da extrema-direita. Na América Latina, o fenômeno está ligado a ameaças subjetivas. 

Antipolítica

Está todo mundo tentando compreender a vertiginosa ascensão de Pablo Marçal na corrida eleitoral paulista. A captura de eleitores nas redes é movida pelo sentimento antipolítica, o ódio e o ressentimento, explicou Luís Fernando Vitagliano. Já Lênio Streck aposta que “vivemos na era da busca de uma modalidade de psicotrópicos epistemológicos que nos livrem da angústia de pensar. No fundo, instituímos uma ‘fábrica de próteses para o pensamento’”. Ao que aparece, ainda não foi possível entender os efeitos da montagem de redes sobre a política? Falando em poder das redes sociais, o embate entre o STF e Elon Musk continua. Alexandre de Moraes tenta fazer cumprir a lei brasileira, mas o dono do X ignora.

Catástrofe humanitária

Com 500 dias de guerra no Sudão, o país está à beira do colapso total, com uma situação de saúde desesperadora e maior crise de deslocados do mundo, alertaram os Médicos Sem Fronteiras. Em Gaza, a desumanização do outro segue impiedosa. O relato do soldado israelense é, para dizer o mínimo, chocante: a solução era, em resumo, matar todos os palestinos. Enquanto parte do mundo clama pela paz, Israel agora ataca também a Cisjordânia, recrudescendo o conflito na região.    

Guerra de gênero

No Rio Grande do Sul, 9 feminicídios em 53 dias. No Afeganistão, as mulheres estão proibidas de falar, cantar e recitar em público, pois suas vozes são muito sedutoras.  

Em tempo

Essa semana ainda falamos sobre o marketing dos ultraprocessados promovido pela indústria alimentícia, corredores ecológicos para salvar a Mata Atlântica, o aniversário do Frei Betto, decrescimento, Diplomação da Resistência, Paulo Freire, Getúlio Vargas e recordamos o aniversário da Campanha da Legalidade. Mas é claro, tem muitos outros assuntos que não colocamos aqui. Vale a pena conferir.

Igreja servidora

Fizemos memória a três bispos brasileiros, símbolos de igreja servidora de outrora e de uma opção radical pelo evangelho. Dom Hélder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires, falecidos no dia 27 de agosto, há 25, 18 e sete anos, respectivamente. Em lembrança aos bispos, o IHU promoveu nessa segunda-feira, 26 de agosto, a videoconferência Hélder, Luciano e Zumbi: bispos e profetas de uma Igreja em saída, que contou com a participação de Eduardo Hoornaert, Fernando Altemeyer e Manoel Godoy.

Uma boa semana a todos e todas!