27 Agosto 2024
Se quiser liderar pelo exemplo o combate à crise do clima, como prometeu o presidente Lula, o Brasil deverá cortar suas emissões de gases de efeito estufa em pelo menos 92% até 2035 em relação a 2005, quando o país emitiu 2.440 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente. Isso significa limitar a emissão a 200 milhões de toneladas líquidas. Esta é a principal conclusão da proposta de nova meta climática para o país apresentada pelo Observatório do Clima na segunda-feira, 26-08.
A reportagem é de Solange A. Barreira, publicada pelo Observatório do Clima, 26-08-2024.
Construído por dezenas de organizações e baseado na melhor ciência disponível, o documento mostra o que o país precisa entregar em termos de corte de emissões se quiser dar sua contribuição justa para limitar o aquecimento da Terra a 1,5oC acima do período pré-industrial, como determina o Acordo de Paris. Hoje, as metas agregadas de todos os países nos levariam a um mundo quase 3oC mais quente, mesmo se fossem cumpridas integralmente.
O Brasil, como sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e presidente da COP30, no ano que vem, precisa entregar à ONU até fevereiro do próximo ano um plano climático nacional (NDC, sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) ambicioso, que inspire outros países do G20 a aumentar suas metas.
Até agora, porém, não há nenhuma indicação de que a NDC oficial do Brasil, ou de outros grandes poluidores climáticos, vá ser compatível com o que a atmosfera necessita para evitar os piores impactos da crise climática. “Colocamos essa proposta na mesa para estabelecer a barra de ambição e dizer ao governo não apenas o que o país precisa fazer, mas principalmente o que tem condições de entregar”, afirma David Tsai, coordenador do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima).
Esta é a terceira proposta de NDC da rede. Em 2015, o OC foi a primeira organização da sociedade civil no mundo a elaborar uma meta, que considerava a contribuição justa do Brasil – uma definição que fatora a responsabilidade histórica e a capacidade de agir, dada pela renda per capita – para o esforço global de corte de emissões. Naquele ano, o OC propôs uma meta absoluta para toda a economia de limitar as emissões a 1 bilhão de toneladas de CO2 equivalente até 2030.
Em 2020, enquanto o país “pedalava” na meta e apresentava uma atualização da NDC que na prática significava menos ambição, o OC elaborou sua primeira NDC compatível com 1,5oC, propondo uma redução de 83% (para 400 milhões de toneladas) em relação a 2005.
A NDC do OC de 2024 segue as orientações do Balanço Global do Acordo de Paris, finalizado na COP28, em Dubai. Ela traz uma meta para 2035 compatível com 1,5oC, aumenta a ambição da meta de 2030 e inicia a eliminação gradual dos combustíveis fósseis no Brasil, propondo a redução do uso deles em 42% (80% do carvão mineral, 38% dos derivados de petróleo e 42% do gás fóssil). “Com essa redução na demanda, estimamos que o país não precise licenciar novos projetos de óleo e gás, cumprindo a recomendação da Agência Internacional de Energia de barrar a expansão de novos empreendimentos fósseis para cumprir o objetivo do 1,5oC”, diz Tsai.
A trajetória de emissões líquidas proposta para o país é resumida no gráfico abaixo:
(Gráfico: Observatório do Clima)
O cumprimento da meta se apoia em cinco pilares principais: a redução do desmatamento a quase zero em todo o país (limitado a um máximo de 100 mil hectares por ano a partir de 2030), a recuperação do passivo do Código Florestal, de 21 milhões de hectares de cobertura vegetal, o sequestro maciço de carbono no solo pela forte expansão de práticas agropecuárias de baixa emissão, a transição energética para fora dos combustíveis fósseis e a melhoria da gestão de resíduos.
No setor de energia, as ações incluem uma forte expansão do transporte público, com a construção de 4.000 km de vias de BRT, a substituição total da gasolina por biocombustíveis e eletricidade em carros de passeio e a instalação de 70 gigawatts de energia eólica e 95 gigawatts de solar. No setor de resíduos, as reduções de emissão viriam da universalização do saneamento e da erradicação dos lixões – medidas já inscritas em lei no país.
O OC também propõe uma série de medidas de adaptação, entre elas o desenvolvimento de novos cenários de avaliação de risco climático e a inclusão da análise de impacto e risco climático em todo o orçamento público. Além disso, a NDC traz a proposta da realização, em dois anos, de um grande diagnóstico sobre perdas e danos no país, algo crucial num momento em que recifes de coral, o Pantanal e grande parte da Amazônia sofrem com uma sequência de eventos climáticos extremos.
“O que propomos aqui não é nada menos que uma transformação da economia brasileira. Parece radical, mas o mundo está num momento de radicalização da emergência climática. Como resultado de décadas de inação, todos os países terão de investir ao mesmo tempo em cortes agudos de emissão e em medidas amplas de adaptação ao clima”, diz Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do OC. “A alternativa a isso é vermos todos os anos daqui para a frente a repetição de tragédias como as enchentes do Rio Grande do Sul e termos de arcar com os custos humanos e econômicos disso. Não há país que dê conta”. Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, destaca o contexto internacional: “Na agenda climática, ambição e exemplo são fatores decisivos. É o que apresentamos nesta proposta de NDC. Realizá-la é possível e faria o Brasil ocupar de forma contundente a posição de liderança de que o mundo tanto necessita.”
“Nessa NDC, o setor de mudanças de uso da terra focou em dois processos essenciais: zerar o desmatamento – meta que está reiteradamente presente nos discursos dos nossos governantes – e fazer cumprir o Código Florestal, com a recuperação de todos os 21 milhões de hectares de passivo ambiental. É a medida justa para que o Brasil consiga solucionar a dívida que assumiu com o planeta, relacionada principalmente ao setor de mudanças de uso da terra.” - Bárbara Zimbres, pesquisadora do Ipam.
“As estratégias de mitigação e transição na agricultura e pecuária passam por um aumento da eficiência produtiva ao mesmo tempo em que se promove a expansão de práticas de baixo carbono para se chegar a um solo recuperado, conservado e bem manejado. É essencial também reduzir o tempo de abate dos animais bovinos, principais responsáveis pelas emissões de metano hoje no Brasil. A implementação e o monitoramento dessas ações, em conjunto com sistemas financeiros de incentivos que incluam os pequenos agricultores, são peças-chave para acelerar a transição justa dos sistemas agroalimentares.” - Renata Potenza, especialista em políticas climáticas do Imaflora.
“A NDC do OC se preocupa fortemente em considerar um cenário de contínuo crescimento econômico para o Brasil. E o país poderá continuar a crescer nos setores de energia e indústria, sem causar explosão de gases de efeito estufa. Pelo contrário, projeta-se que as emissões desses setores possam cair mais de 30% entre 2022 e 2035. Isso tudo a partir de uma transição energética que priorize a utilização de eletricidade limpa e combustíveis renováveis, além de medidas de eficiência no transporte e no uso de energia.” - Felipe Barcellos e Silva, pesquisador do Iema.
“A redução de cerca de 27% das emissões de resíduos até 2035 incorpora aspectos cruciais do setor, como a universalização da cobertura da coleta de efluentes domésticos e a erradicação de lixões. Incluímos ainda a valorização dos resíduos por meio de compostagem e reciclagem; aumento do aproveitamento energético do biogás gerado em aterros; e melhorias de processos no tratamento de esgotos. O maior desafio do setor é conseguir cumprir as metas das políticas setoriais de saneamento, o que garantirá melhor qualidade de vida para a população.” - Íris Coluna, assessora de monitoramento, reporte e verificação do Iclei.
“A adaptação na NDC do OC tem múltipla abordagem e transversalidade de temas essenciais à ciência do clima e à construção das políticas públicas. São exemplos: a garantia do direito à cidade e da salvaguarda de direitos das populações tradicionais e dos grupos vulnerabilizados. Destaca-se a proposta do OC de criação de um Fundo Nacional de Adaptação, nos moldes do Fundo Amazônia, incluindo captação nacional e internacional, para destinação de recursos não reembolsáveis aos territórios prioritários que sejam reconhecidos tecnicamente como de maior risco aos eventos extremos.” - Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
“Incluir um eixo de análise na NDC voltado para a justiça climática significa garantir que a agenda de mitigação tenha os resultados esperados e ajude a corrigir as desigualdades estruturais que aprofundam a emergência climática para as pessoas negras e indígenas, para as mulheres, crianças, pessoas com deficiência e pessoas idosas. Reconhecer que há diferença entre as populações impactadas é fugir do discurso raso e das políticas superficiais, para construir um conjunto global de respostas que garanta mais vidas enquanto buscamos o equilíbrio do planeta.” - Thaynah Gutierrez, secretária executiva da Rede por Adaptação Antirracista.
“A NDC pontua a necessidade de reconhecer e demarcar os territórios tradicionais costeiros e marinhos. Essa medida não só é fundamental no enfrentamento às mudanças climáticas, mas também uma grande estratégia de adaptação, uma vez que o uso e ocupação desses espaços contribui para a conservação da linha de costa, das praias e dos manguezais. Já o reconhecimento da pesca artesanal como uma atividade de baixo impacto e produtora de alimento de qualidade também é fator de inovação e coloca a centralidade das comunidades tradicionais pesqueiras na conservação socioambiental.” - Henrique Callori Kefalás, coordenador executivo do Instituto Linha D’Água.
FAQ – entenda a proposta de NDC do OC
Apresentação em slides – proposta de NDC do OC
Nota Técnica – Bases para proposta de 2a NDC para o Brasil
Brazil’s Fair Share of global 1.5°C-consistent mitigation through 2035
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Brasil precisa cortar emissões em 92% até 2035, afirma o Observatório do Clima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU