Padres casados: a santidade proibida. Artigo de Guillermo Jesús Kowalski

Foto: aszak | pixabay

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04 Novembro 2025

A santidade dos padres casados é hoje uma profecia silenciada dentro da Igreja, uma voz que o clericalismo tenta ocultar, mas que o Espírito mantém viva. Neles brilha a dupla sacramentalidade da Ordem e do Matrimônio, sinais de serviço e comunhão para uma Igreja mais humana e encarnada.

O artigo é de Guillermo Jesús Kowalski, teólogo e cientista social, mestre em Doutrina Social da Igreja pela Universidade de Salamanca, publicada por Religión Digital, 01-11-2025. 

Eis o artigo.

Para Jesus, a santidade são as bem-aventuranças das vítimas diante daqueles que, como o fariseu do templo ou o rico da parábola, já têm sua recompensa. Ele veio para fazer felizes os que o mundo e a religião consideram perdedores e fracassados — e escolheu ser um deles. Filtra com sarcasmo as disciplinas religiosas, para ficar com o Amor e a Misericórdia pelos pobres e excluídos.

Neste 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, quero recordar uma classe de descartados pelas estruturas eclesiásticas: os sacerdotes casados, testemunhas silenciosas de uma santidade encarnada ainda não reconhecida. Neles brilha a graça santificante da dupla sacramentalidade, onde o amor conjugal e o serviço pastoral se entrelaçam como sinais do Reino. Embora marginalizados pelo clericalismo que lhes virou as costas, são peças indispensáveis de uma Igreja mais humana, reconciliada com a verdade do amor e do seguimento de Cristo na realidade.

Eles, como tantos outros, revelam que apenas as vítimas da Igreja podem emitir uma palavra nova que permita voltar a crer nela como instrumento do Reino de Deus.

Na Igreja Católica persiste uma tensão entre uma estrutura eclesial fechada no clericalismo celibatário e a realidade viva dos sacerdotes casados como outra forma de santidade. Esse conflito é disciplinar, teológico e antropológico: o celibato obrigatório, legislado tardiamente no século XII e regulamentado em Trento, não é dogma, mas uma construção institucional que confundiu fidelidade evangélica com obediência ao poder. Como disse Jesus: “No princípio não era assim” (Mt 19,8).

Nos primórdios cristãos era diferente: Pedro e a maioria dos apóstolos eram homens casados; Paulo exige que os bispos sejam “maridos de uma só mulher” (1Tm 3,2). Mas a identificação progressiva entre perfeição e celibato consolidou uma casta sagrada superior — uma deriva próxima a antigas mutilações religiosas (como as de Orígenes), que confundiam santidade com negação do corpo.

Essa distinção alimentou o clericalismo: a exaltação do clero como grupo separado e superior por não se casar, cujos membros gozam de privilégios e poder inquestionável.

Como advertiu Hans Küng, “a Igreja confundiu santidade com controle”, enquanto Umberto Eco ironiza: “prefere a castidade ao bom senso”. Diante dessa espiritualidade temerosa do desejo, Bruno Forte propõe uma visão trinitária: “o amor conjugal e o amor pastoral encontram sua raiz comum na Trindade, onde a comunhão é dom recíproco”.

O sacerdote casado não é um erro disciplinar a ser “ocultado”, mas um sinal profético do Reino: um testemunho de que o amor humano e o ministério pastoral são expressões inseparáveis da mesma graça divina.

A voz dos teólogos: questionando o fundamento

Numerosos teólogos católicos concluem — junto com estudos sobre a pedofilia em vários países — que o celibato obrigatório, imposição antinatural, é fonte de problemas pastorais, psicológicos e espirituais, além de gerar vidas duplas e abusos, como demonstram os meios de comunicação que hoje rompem o silêncio da omertã clericalista.

Hans Küng destaca sua desconexão com o Evangelho. Em Por que sou cristão?, afirma: “O celibato eclesiástico não é mandamento de Jesus, mas lei da Igreja. E as leis da Igreja podem ser mudadas pela Igreja.” Essa lei não garante maior disponibilidade para Deus; ao contrário, gera moralismo obsessivo com a sexualidade e afasta pessoas capazes do ministério ordenado.

O teólogo australiano Paul Collins, autor de Papal Power, liga o celibato diretamente ao clericalismo e ao abuso de poder: “O celibato obrigatório é o cimento que mantém unida a estrutura clerical. Cria uma mentalidade de ‘nós contra eles’, separando os sacerdotes do povo que devem servir. Essa separação é o terreno ideal para o clericalismo, a arrogância e, nos casos mais trágicos, o abuso.”

De modo semelhante, o teólogo alemão David Berger, que deixou o ministério para se casar, denuncia “a hipocrisia de um sistema que, enquanto prega a castidade, empurra muitos a uma vida clandestina, gerando profundo sofrimento pessoal e crise de integridade”. Milhares de sacerdotes tiveram que escolher dolorosamente entre vocações ao amor conjugal e ao ministério, como se fossem excludentes.

A condenação e a discriminação: o alto preço da escolha

Os que “ousam sair” e viver o matrimônio enfrentam discriminação jurídica e perseguição social. Já não podem exercer publicamente os sacramentos, privando a comunidade de algo essencial. Mas a punição vai além do legal: é um castigo sem prescrição.

Homens que continuam amando a Igreja são estigmatizados, transformados em fantasmas dentro das comunidades que um dia pastorearam. São caluniados como fracassados, doentes ou hereges, e seus matrimônios são vistos como causa de sua “queda”.

A teóloga feminista espanhola Isabel Corpas, autora de A revolução silenciosa das mulheres na Igreja, denuncia essa injustiça: “Ao condenar o sacerdote que se casa, a Igreja está desvalorizando simbolicamente o matrimônio e, sobretudo, a mulher.”

O desafio: rumo a uma Igreja sinodal e não clerical

O movimento a favor do celibato opcional e do reconhecimento da santidade dos sacerdotes casados é anticlericalista, não anti-Igreja. Não busca destruir o sacerdócio, mas reintegrá-lo na comunidade dos batizados, ordenando-o à comunhão, não à segregação.

A Igreja Católica é composta por 24 Igrejas — uma ocidental e 23 orientais. Nessas últimas, há padres casados (como nos ritos maronita, greco-católico melquita, ucraniano e armênio), testemunhando que o celibato não é requisito ontológico para o sacerdócio. A santidade não reside no estado civil, mas na fidelidade ao amor de Deus — seja na entrega celibatária, seja no amor conjugal.

O sacerdote casado é chamado à santidade em seu estado. Longe de ser um problema, ele é ponte entre o clero e os leigos, duas realidades que o clericalismo separou artificialmente. Negar isso é resistir à obra do Espírito.

A santidade do sacerdote casado, negada pelos arquitetos do clericalismo, é uma profecia fundamental do Reino. A dupla sacramentalidade da Ordem e do Matrimônio é sinal de que a santidade não está na mutilação, mas na integração do amor. “O futuro da Igreja passará pela recuperação do comunitário diante do clerical, e nesse caminho, o reconhecimento do sacerdócio casado será um sinal profético de que o Espírito sopra onde quer — e não apenas nos atuais seminários” (Leonardo Boff).

Para Betina, minha esposa e companheira no caminho de santidade da ordem sagrada.

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