23 Julho 2024
Véronique Margron, teóloga e presidente da Conferência dos Religiosos e das Religiosas da França (CORREF), recebeu a primeira testemunha que levou à investigação sobre Abbé Pierre, publicado na quarta-feira, 17 de julho. Elogiando o trabalho realizado pelo movimento Emaús, ela espera novas revelações e pede mais vigilância na Igreja.
A entrevista é de Gonzague de Pontac, publicada por La Croix, 18-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como reagiu às acusações de violência sexual contra Abbé Pierre?
Como eu já conhecia os fatos, em primeiro lugar achei positivo que a investigação - independente, encomendada pelo próprio movimento Emaús - tenha sido concluída e publicada. É muito importante para as vítimas que seu testemunho seja tornado público, tornando-o de certa forma indiscutível. Entendo e compartilho o choque, a emoção e a raiva sentidas pelas pessoas próximas ao movimento Emaús, mas também pelos católicos e muitos outros.
Como sacerdote, Abbé Pierre era um homem de Deus. Ele também era um ícone para muitos franceses. Uma mulher citada no relatório disse: "Eu estava acostumada a me defender. Mas, nesse caso, era Deus. O que você faz quando Deus faz isso com você?" O que essa declaração desperta em você?
Uma tristeza infinita. É esse fenômeno que nos impede de ver o que precisa ser visto, não pelas vítimas, mas pelas pessoas próximas a elas, e que permitiu que Abbé Pierre agisse impunemente sem que ninguém interviesse. Essa tendência de transformar certas pessoas em "estrelas" é verdadeira na sociedade em geral. Mas na Igreja somos mais culpados porque essas personalidades são referidas a Deus, há uma espécie de idolatria ao quadrado.
Nos últimos anos, os "ídolos" da Igreja parecem estar caindo de seus pedestais, um após o outro. Será o início de uma mudança de mentalidade entre os cristãos?
Espero que sim. Se não aprendermos com todas essas tragédias, isso seria totalmente desesperador. Diante das "estrelas" do cristianismo de hoje e de amanhã, espero que haja mais vigilância. Não suspeita, mas vigilância. É um trabalho longo. Não faz muito tempo, as pessoas ainda pediam "santo já" para Jean Vanier, Marie-Dominique Philippe... É legítimo cultivar uma certa admiração, mas da admiração à veneração o passo é curto.
Por que voltar a esses eventos dezessete anos após a morte de Abbé Pierre?
Para que as vítimas falem. Não há outro motivo. Isso poderia ter acontecido quando ele estava vivo, um ano ou 30 anos após sua morte.... O que importa é que as vítimas falem, que elas finalmente consigam falar.
A primeira vítima se confidenciou com você. Por quê?
Foi há mais de um ano. Após o relatório Ciase e graças ao trabalho dos jornalistas, novas vítimas puderam se manifestar. Como eu intervi com frequência durante aquele período, a pessoa deve ter visto meu nome. E pensou: 'Talvez acredite em mim e faça alguma coisa'. É uma verdadeira corrida de obstáculos para as vítimas. Gostaria de prestar homenagem à imensa coragem dessa mulher. Ela escalou o Everest - o Everest da figura do Abbé Pierre e o Everest da culpa e da vergonha que recaem sobre a vítima e não sobre o culpado - por ousar testemunhar.
O que você pensa da reação do Emaús?
A reação deles foi exemplar. É claro que seria preferível que não houvesse vítimas, mas, sendo a realidade o que é, acho que reagiram muito bem. Primeiro, encomendando uma investigação independente, depois a tornando pública e criando um sistema de proteção e apoio às vítimas, além de fazerem um apelo para que eventuais testemunhas se apresentassem. Os responsáveis do Emaús colocaram bem a questão quando disseram: “O verdadeiro escândalo seria não tentar chegar à verdade”. O que realmente se quer é que todos, na Igreja e na sociedade, reagissem da mesma forma.
Isso mostra uma mudança na cultura eclesial?
A L'Arche também encomendou recentemente uma investigação independente, que foi um trabalho enorme. De qualquer forma, espero que tenhamos aprendido que não podemos mais - nunca mais! - ser juiz e parte envolvida. Se quisermos ser justos, precisamos de competência e independência.
Devemos recorrer àqueles que têm o direito de fazê-lo, em especial à justiça civil, sempre que possível, e parar de tentar resolver tudo à nossa maneira, mesmo com a melhor vontade do mundo.
Devemos esperar novas revelações?
Infelizmente, podemos pensar que sim. Por experiência própria, quando já se conhecem dez vítimas, sabe-se que haverá mais, sem contar aquelas que não falarão ou que já morreram. É por isso que é tão importante lançar um apelo para convidar as pessoas a testemunhar, com o máximo de confidencialidade em um ambiente protegido, onde as potenciais vítimas serão acolhidas e apoiadas de forma adequada.
O que o Abbé Pierre representava para os cristãos?
O Abbé Pierre é um monumento à caridade. A vida cristã se expressa, antes de tudo, no cuidar de nossos irmãos, irmãs, dos mais pobres, e o Abbé Pierre era exatamente isso, de uma forma que poderia ser descrita como total. Ver esse homem que, por um lado, fez de tudo pelos mais vulneráveis, que demonstrou tamanha solidariedade durante o inverno de 1954 e também depois - há até uma lei com seu nome - e que, por outro lado, também tinha um lado tão sombrio e tenebroso, é um choque.
O que restará de seu legado?
O que restará do movimento de Emaús, espero que "tudo"! O Emaús hoje é formado por milhares de companheiros extremamente competentes e comprometidos que desempenham um trabalho extraordinário e salvam muitas vidas. Acho que as pessoas serão capazes de distinguir.
Abbé Pierre não é um fundador de uma comunidade religiosa, e ele não estava na direção há muito tempo. A obra será abalada, isso é certo, mas acredito que perdurará e ouso esperar que conserve a mesma autoridade moral.
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O escândalo do Abbé Pierre: "o que importa é que as vítimas falem". Entrevista com Véronique Margron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU