23 Julho 2024
"Abbé, sei que alguns lerão nas minhas afirmações uma indulgência culpada para com você. Pois eu era e continuo sendo seu amigo. Não! Não tenho nenhuma indulgência. Conheço o peso do mal, do qual nenhum de nós está isento, e sei que é pecado - no sentido etimológico de errar o alvo - deixar-se fascinar exageradamente por ele".
O texto é de René Poujol, jornalista francês, publicado em seu portal, 18-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Um dia lhe decepcionarei. Nesse dia, precisarei de você".
(Robert Desnos)
Aqui estou! Aqui, Abbé, a bomba explodiu. Eu já estava ciente da notícia no dia anterior. Conhecendo nossas relações de amizade, os responsáveis do Emaús tiveram a delicadeza de me avisar. Imediatamente pensei que não comentaria a informação que se espalharia nas redes sociais nem responderia aos pedidos da mídia. Não tenho coragem de fazer isso! Abri meu computador e digitei o título desta publicação: Carta aberta ao meu amigo Henri, conhecido como Abbé Pierre.
Não tive coragem de continuar, não sabia por onde começar. Eu sabia que teria que pesar cada palavra, cada expressão, cada silêncio: por respeito às pessoas que afirmam ter sido vítimas de seus atos e a quem devemos ouvir e apoiar; por respeito a você que não está mais aqui para se explicar; por respeito a todos nós que o amávamos. Veja bem, eu renunciei a escolher o verbo no presente para não criar constrangimento a ninguém... Então eu li La Vie e La Croix! Sei. Então posso escrever para você.
Você vai se surpreender que de repente eu use o tratamento informal, com você que o costumava usar tanto comigo, como fazia com frequência, e mesmo com pessoas que não lhe eram próximas. Até o dia em que você morreu, eu sempre optei por "vous", por respeito. Não pense que o respeito desapareceu. Não! Simplesmente essas revelações o fazem cair do seu pedestal e talvez nos tornem ainda mais próximos. Estou muito furioso, Abbé. Furioso com você. Sinto-me mais traído do que enganado por nunca ter lhe feito perguntas sobre essas questões. Como eu poderia ter me atrevido a fazer isso? Lembre-se: em 11 de abril de 2006, fui vê-lo em Alfortville. Um homem ameaçava na época revelar à mídia que era seu filho biológico. A meu pedido, você concordou em me contar "a sua verdade". Eu me comprometi a manter essa entrevista em segredo até que o homem falasse. Meu desejo era um dia poder lhe dar palavra se aquelas revelações viessem à tona após a sua morte. O que acabou acontecendo. No Pèlerin de 24 de maio de 2007, quatro meses após a sua morte, quando estava sendo lançado o livro L'abbé Père, de Jean-Christophe d'Escaut (1), publiquei o seu testemunho: "Digo e repito: nunca tive uma união com a sua mãe" (2).
Esta noite eu me pergunto: você estava dizendo a verdade?
Lembre-se: no final de junho/início de julho de 1989, passei alguns dias com você em Saint-Wandrille, onde você achava que tinha se recolhido definitivamente. No final de uma longa conversa que eu iria publicar no outono para o 40º aniversário do Emaús, perguntei-lhe sobre a "reputação de santidade" que lhe era atribuída. Você respondeu: "Isso me humilha. Conheço demais as minhas fraquezas e as minhas insuficiências". Então, depois de um longo silêncio: “Vou lhe dizer sobre minha suposta santidade o que Joana D'Arc costumava responder a seus juízes que lhe perguntavam se ela estava na graça de Deus: 'Se eu estiver, que Deus me mantenha, se eu não estiver, que Deus queira me manter na sua graça'".
No início deste mês, Abbé, o Festival da Correspondência de Grival colocou você, ao lado de Charles de Gaulle, Nelson Mandela, Marie Bonaparte, Louise Michel e alguns outros, na lista de "heróis" a serem homenageados. Cumpri a missão que havia sido confiada a mim. À noite, no pátio do castelo, 500 espectadores aplaudiram de pé o ator Bruno Puzulu, que os levou às lágrimas ao ler, por mais de uma hora, uma seleção de suas cartas, nas quais você aparecia na verdade de sua força e fragilidade. À tarde, na minha intervenção, tinha citado um cartão postal, recebido entre mil outros, por ocasião do lançamento do álbum dedicado a você no outono de 1989: "Agradeço a Deus por terem me permitido conhecer um santo enquanto ainda estava vivo".
Então, é verdade, estou furioso com você, Abbé. Estou furioso por aquelas mulheres que você humilhou com gestos inapropriados que não eram dignos de você. Não serei eu, aqui, o juiz do seu sofrimento! Estou furioso com você porque jogou fora, por inconsciência, uma vida de luta contra a miséria e as injustiças. Não era você quem dizia: “Quem dirá ao príncipe o que está errado se o profeta se torna como ele?” O profeta morto ainda estava falando.... Estou furioso com você por todos aqueles que viam em você aquele herói de Kipling que sabe "ser povo aconselhando os reis". Lembra-se das primeiras linhas de seu poema: "Se perder tudo quanto ganhou em toda a vida e, ao perder, sem nunca dizer nada, resignado, tornar ao ponto de partida...". Tarde demais!
Você não está mais aqui, Abbé! E eu me sinto cansado. Em três anos, fiquei sabendo do suicídio de um amigo padre, que havia iluminado minha adolescência e abençoado meu casamento. Ele havia sido preso por abusar sexualmente de jovens mulheres e depois viveu como um clochard, vagando pelas margens do Garonne, em Toulouse, antes de terminar seus dias. Quem lhe deu suporte?
Descobri as acusações feitas contra meu amigo frei Ancré Gouzes, já imerso num profundo Alzheimer, e depois me disseram que os responsáveis pela Ordem Dominicana diziam que o dossiê "estava vazio", sem nunca se manifestar publicamente sobre o assunto, preferindo se refugiar atrás do silêncio do Ministério Público de Rodez. Descobri as antigas práticas sacramentais sacrílegas do meu bispo Michel Santier, em quem eu confiava, e tremo pelos boatos das possíveis conclusões de um novo julgamento canônico!
E agora, você!
No dia em que copiei em minhas anotações de leitura a frase de Robert Desnos, não imaginei que teria de fazer tal uso dela. Abbé, ouça, estas palavras podem ser as suas palavras: "Um dia lhe desapontarei, e nesse dia precisarei de você". Eu estou tentando estar ali! No artigo que o La Vie lhe dedica esta semana, leio: "No período atual, prevalece a liberação da palavra, tanto na sociedade quanto na Igreja Católica. As pessoas não morrem mais carregando seus segredos consigo: a época mudou". Sem dúvida, isso é verdade, mas essa frase me assusta! Lembro-me de Malraux: "Essencialmente, o homem é o que ele esconde: uma miserável pilha de segredos". Uma sociedade de liberdade pode sobreviver à vertigem coletiva da transparência? Quem de nós pode se sentir protegido?
Em 6 de julho, no Festival de Correspondência de Grignan, Boris Cyrulnik observava que, nas nossas sociedades modernas, os novos "heróis" (tema dos encontros do festival) agora eram as vítimas.
Como Cristo, diriam alguns! Então eu me pergunto: como respeitar o sofrimento das vítimas e seus direitos legítimos sem destruir a obra de seus agressores, que não podem ser reduzidos a seus atos culpados, às vezes criminosos, que talvez tenham cometido? Nada pode fazer com que o que aconteceu de belo, de bom e, às vezes, de grandioso, nunca tenha existido. O que nos tornaremos se, por demolir os ídolos, todos os ídolos, chegamos a negar aqueles que nos fizeram crescer?
Mas, assim como eu, você conhece a terrível profecia de Ezequiel (18,24) que está na Bíblia: "Mas, desviando-se o justo da sua justiça, e cometendo a iniquidade, fazendo conforme todas as abominações que faz o ímpio, porventura viveria? De todas as suas obras de justiça que tiver feito não se fará memória; na sua transgressão com que transgrediu, e no seu pecado com que pecou, neles morrerá".
Entretanto, não posso esquecer o que devo a Adrien Terris, que iluminou com confiança a minha adolescência. Pierre Soulage dizia sobre o escritor Joseph Delteil, em circunstâncias similares: "Ele acreditou tanto em mim, que eu mesmo acabei acreditando em mim mesmo".
Não posso esquecer de ter vivido na Abadia de Sylvanès, graças à Liturgia coral do povo de Deus do frei André Gouzes, dos tríduos de Páscoa nos quais me senti penetrado pelo mistério de Deus fazendo uma verdadeira experiência da comunhão dos santos. Ainda hoje sinto a emoção daqueles momentos.
Não posso esquecer que Michel Santier também foi o homem por trás da reforma da nossa catedral de Créteil, de nosso sínodo diocesano, do diálogo com nossos irmãos protestantes, judeus e muçulmanos.
De você, Abbé, não posso esquecer aqueles momentos em que, no fim do dia, você me propunha "ficar" porque celebraria a Eucaristia em um canto da mesa. Não posso esquecer aquela convicção que lhe fez viver, que em cada homem - mesmo o último dos miseráveis - é um tesouro, aquela convicção encontrada quase palavra por palavra nos lábios de Robert Badinter quando ele explicava a sua vocação de advogado. Não posso esquecer o que você me fez entender sobre a radicalidade da luta pela justiça que substituiu as tantas melosidades caridosas. Pois se, como você tinha descoberto, "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus" está escrito no tempo presente, ao contrário da maioria das bem-aventuranças escritas no tempo futuro, então o Reino já está presente, mas somente aqueles que levam adiante arduamente essa luta podem se valer dele.
Abbé, sei que alguns lerão nas minhas afirmações uma indulgência culpada para com você. Pois eu era e continuo sendo seu amigo. Não! Não tenho nenhuma indulgência. Conheço o peso do mal, do qual nenhum de nós está isento, e sei que é pecado - no sentido etimológico de errar o alvo - deixar-se fascinar exageradamente por ele. Li que a Igreja da França expressava vergonha e compaixão pelas torpezas alheias. Sem jamais pôr realmente em discussão – em especial em sua abordagem à sexualidade e ao celibato eclesiástico – porque está em jogo, diz ela, o modo de entender o plano de Deus para a humanidade.
Abbé, quantas vezes você me disse: “Quando foi vencido o medo da pobreza, do sofrimento e da morte, então, mas só então, o homem se torna livre”. Você viveu na pobreza. Posso testemunhar isso. Eis você agora na pobreza mais extrema, despido daquele último orgulho que, com o nosso assentimento, você levou consigo no túmulo. Agora você está nu. Definitivamente nu?
Mas que desastre, Abbé, que desastre!
(1) Jean-Christophe d’Escaut, L’abbé Père. Edições Alphée 2007, p. 336
(2) Na realidade essa expressão está presente na carta que Abbé Pierre me entregou naquele dia e que retomava, subscrito por ele, aquilo que tinha me dito na nossa conversa.
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Carta aberta de René Poujol ao seu meu amigo Henri, conhecido como Abbé Pierre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU