23 Julho 2024
"No fundo, a visão desse Deus que dirige a vida dos homens exigindo orações, jejuns e sacrifícios ainda está presente e causa danos. Se Deus vive nos céus oferecendo uma sua verdade irrefutável, é evidente que aqueles que são seus mediadores correm o risco de se impor sobre os outros com violência chegando, nos casos que envolvem personalidades consideradas moralmente irrepreensíveis, a abusos que nada têm a ver com o Evangelho".
O artigo é de Paolo Rodari, publicado por Il Manifesto, 19-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A enésima notícia de abusos que se deflagra de dentro da Igreja Católica deveria levá-la a um profundo repensamento sobre si mesma, sua própria visão de Deus e do mundo. Os fatos, desta vez, dizem respeito ao padre francês Abbé Pierre, fundador da Comunidade Emaús que, quando morreu em 2007, foi definido por Jacques Chirac como "uma figura imensa". A notícia é que o padre dos pobres, que foi indicado pelos franceses 16 vezes como "personalidade do ano", é acusado por um relatório independente, encomendado por sua comunidade, de abusos contra sete mulheres. Os crimes, alguns dos quais classificados como agressões sexuais, não parecem ser passíveis de questionamento se for verdade que foi o próprio clérigo, antes de sua morte, que implorou por perdão.
A Igreja francesa disse ter tomado conhecimento "com pesar" dos relatos sobre o religioso, enquanto a conferência episcopal expressou compaixão pelas vítimas e vergonha pelo fato de o autor desses abusos ser um padre. E mesmo que nos últimos meses tenha sido a Igreja francesa que tomou medidas contra os abusos, encomendando um relatório que esclareceu o que havia acontecido nas décadas passadas, as notícias sobre Abbé Pierre dizem que tudo isso não é suficiente. E o confirma o que a autora do relatório sobre o religioso, Caroline de Haas, declarou: "Abbé Pierre", explicou ela, "aproveitou-se de uma forma de idolatria que o cercava”.
Esse é o ponto sobre o qual a Igreja deveria refletir, além do mea culpa e dos relatórios, ou seja, sobre o fato de que é a própria visão de Deus e do mundo que muitas vezes leva a essa idolatria, a um fanatismo que causa abusos.
Durante séculos, o cristianismo tem bebido das fontes de um Deus, imposto no catolicismo com o Édito de Constantino em 313, que do alto dirige o destino da humanidade. As igrejas foram suas únicas intérpretes. Tanto que não hesitaram em impor seu Evangelho com a violência do proselitismo. Após o Concílio Vaticano II, muitas coisas mudaram, mas, no fundo, a visão desse Deus que dirige a vida dos homens exigindo orações, jejuns e sacrifícios ainda está presente e causa danos. Se Deus vive nos céus oferecendo uma sua verdade irrefutável, é evidente que aqueles que são seus mediadores correm o risco de se impor sobre os outros com violência chegando, nos casos que envolvem personalidades consideradas moralmente irrepreensíveis, a abusos que nada têm a ver com o Evangelho.
No entanto, um número cada vez maior de teólogos reconhece que o Deus que o cristianismo assumiu a partir de Constantino não existe. E que não há base histórica para dizer que fosse o Deus com quem Jesus vivia uma sua simbiose. Do Deus de Jesus nada pode ser dito com certeza, exceto que ele era visto por ele como puro amor, a força de uma misericórdia que desarticulou a visão teísta de seu tempo, aquela mesma visão que mais tarde, paradoxalmente, a Igreja assumiu impondo leis, sacrifícios, ritos e chegando ao ponto de pedir abnegação em troca de proteção.
Se Deus vive no alto dos céus e eu sou seu mediador, é evidente que tudo me é concedido. Até mesmo a imposição pela força da minha verdade, até abusos cometidos no silêncio cúmplice da maioria. Mas, pelo contrário, tudo deveria mudar na fonte, a partir da admissão de que nada pode ser dito sobre Deus, exceto que, se ele existe, é mistério de amor que, de dentro, leva a amar sem prevaricar, a ser sem possuir.
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O caso Abbé Pierre, a idolatria do Deus prevaricador. Artigo de Paolo Rodari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU