Vozes de Emaús: Criar Esperança nesta Era de trevas. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Arte: Laurem Palma | IHU

07 Junho 2025

"Essa dominação econômica e política se reveste de admiração dos setores dominados pelos poderosos. Como se fosse uma cascata social, os super-ricos e grandes milionário/as ocupam o topo da admiração; logo abaixo estão os e as famosas do mundo midiático, dos esportes ou da moda, cujo estilo se busca imitar; depois estão as classes médias e as classes empobrecidas que sonham se enriquecer nem que seja pelos dos jogos de apostas. Essa gente percebe que acredita em algo que certamente não se realizará, mas só lhes resta esse sonho depois que todas as certezas do passado se esfumaram".

O artigo é de Pedro A. Ribeiro de Oliveira, doutor em Sociologia, professor aposentado dos PPGCR da UFJF e PUC-Minas.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira (Foto: Tiago Miotto/Cimi)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto e ter acesso a todos os artigos da coluna, verifique o leia mais, no final do texto. Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.

Eis o artigo.

O dia 20 de janeiro de 2025, data da posse do atual presidente dos EUA, pode ser considerado como data inicial desta era de trevas onde confluem catástrofes climático-ambientais, o fim da hegemonia anglo-saxônica no sistema geopolítico global e a nova velha forma de capitalismo que separa a minoria super-rica e seu séquito, da grande maioria empobrecida cujo destino é a miséria. Diante desse quadro, busco ao menos um sinal que permita cultivar a Esperança de quem, como eu, não quer fechar os olhos para o real.
Principais componentes dessa era de trevas.

Estamos entrando numa época em que catástrofes climático-ambientais aumentarão

Dizer que estamos no início de uma era de trevas, não é usar o conceito de era geológica – que vem sendo chamada antropoceno – mas sim realçar a diferença entre os tempos atuais e o passado recente da Terra. A espécie humana sempre enfrentou catástrofes climáticas, mas tudo indica que a partir de agora elas se repetirão num ritmo mais frequente e com maior intensidade, minando a própria base física e biológica da vida humana e de outras espécies. Deixar entre parênteses essa realidade geológica – como fazem tantas análises de conjuntura – é focar a superfície do cenário sem perceber de onde vêm as catástrofes. Devemos, portanto, encarar de frente a ameaça de que, se a espécie humana continuar a destruir a biosfera como tem feito nos últimos 100 anos, metade de todas as espécies hoje vivas terão desaparecido daqui a um século. E há quem afirme que essa 6ª destruição massiva de espécies da Terra poderá incluir também a espécie homo sapiens! Apesar disso, os preparativos para a COP-30, em Belém do Pará, dão mais indícios de operações cosméticas do que de medidas eficazes contra o aquecimento global.

O quadro geopolítico global também é desanimador – para dizer o mínimo

A vitória dos EUA na guerra fria, em 1991, desmantelou o sistema soviético e abriu a fase da globalização do capitalismo. Ao livrar-se do principal contrapeso ao seu poderio, os EUA não atenderam o desejo geral de uma nova ordem mundial multipolar e isso abalou seu prestígio internacional. Perdendo a força moral, trataram de se impor mais e mais pela força militar, agora aumentada pela manipulação de redes digitais que difundem informações falsas ou distorcidas para derrubar os governos que se opõem aos seus interesses: a guerra híbrida. Quando, após o massacre do Iraque, esse domínio parecia consolidado, os EUA viram a crise financeira de 2007-08 abalar profundamente sua economia e favorecer a emergência da China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul – os chamados BRICS – no cenário mundial. Aqui reside a principal causa do atual estado de guerra mundial: os EUA perderam a liderança moral conquistada durante o século XX, mas sendo a principal potência militar e econômica do mundo, podem fazer romper-se a ordem civilizacional e dar lugar à luta de todos contra todos, cada grupo defendendo apenas seu território e seus interesses – como quer o atual presidente dos EUA. Esse cenário, porém, é camuflado pela espetacularização das catástrofes.

As imagens de violência transmitidas pela mídia e redes digitais fazem que ela seja vista como espetáculo que pode chocar quem assiste, mas não suscita reação prática. Qualquer violência – atentados terroristas, massacre de populações desarmadas como na Palestina e nas periferias urbanas, invasão de terras de povos originários, feminicídio e assassinatos a sangue frio – pode prestar-se ao espetáculo. Espetacularizar a violência não é negá-la, mas narrá-la de forma a despertar emoções, e não a reflexão sobre sua essência. Assim somos convencidos de nossa impotência diante da crueldade (dos outros) e a nos conformar em aceita-la como inevitável. Ou então, ignora-la mudando o canal da TV ou outra rede digital.

Uma forma de capitalismo que parece feudal

Esclareço que neste tópico atenho-me aos países do chamado Ocidente, porque sobre eles temos informações mais confiáveis do que sobre as outras grandes potências – China, Índia, Rússia e Irã –que lhe fazem concorrência. É evidente que há muitas diferenças entre esses dois grandes blocos, mas não vejo indícios de que na Ásia esteja sendo gestado um modo de produção regido por outra lógica que não a do mercado, embora sob planejamento estatal.

Situo a nova forma do capitalismo como uma das crises atuais porque ela é a resposta desse modo de produção e consumo ao início da época de catástrofes climáticas. Ela apresenta uma contradição entre sua avançada tecnologia e o retorno à forma primitiva de acumulação pela apropriação privada de bens comuns.

As raízes da atual contradição do capitalismo

A crise financeira de 2007-08 levou os grandes fundos mundiais de investimento a remunerar o capital por meio de ganhos de curto prazo. Guiados pelo imperativo de oferecer alta remuneração ao capital que lhes é confiado, eles recorrem ao meio mais direto: a pilhagem de bens-comuns. Minérios, terra agriculturável, água, reservas de petróleo, conhecimentos, empresas públicas, locais aprazíveis e tudo que possa ser privatizado para ser colocado no mercado torna-se objeto de cobiça. Isso leva empresas que buscam o lucro imediato a invadir territórios de povos originários, derrubar florestas, usar veneno para apressar a produção do agronegócio, fraudar pesquisas, enfim, adotar práticas contrárias aos Direitos Humanos e da Terra. Pressionadas por fundos de investimento que exigem dividendos para remunerar o capital, essas empresas não levam em consideração os danos ecológicos e sociais de sua atividade econômica, por mais predatória que seja.

Esta é a “economia que mata”, como a qualificava o Papa Francisco

Para blindar-se contra possíveis medidas que possam diminuir seus lucros, subvencionam a eleição de governantes e parlamentares que se encarregam de protege-las retirando direitos dos mais fracos e favorecendo seu avanço sobre os bens comuns. Aqui reside a contradição que prenuncia o agravamento das atuais tragédias: em vez de moderar sua ambição diante da catástrofe ambiental, o capital aumenta sua voracidade e busca acumular o maior lucro possível hoje para ter reservas quando a situação se deteriorar.

A outra forma – inovadora – de concentrar renda e riqueza combina alto desempenho tecnológico e um resquício de tempos pré-capitalistas: é o que fazem as gigantescas empresas de informática conhecidas como big techs. São empresas de serviço que, por meio de empresas intermediárias, colocam em contato quem produz e quem quer adquirir mercadorias. Tendo essas informações, essas empresas facilitam a transação a baixíssimo custo, mas cobrando ágio sobre cada operação de compra e venda. Por sua semelhança com a economia feudal, onde o suserano cobrava pedágio de mercadores que atravessavam seu território, Yanis Varoufakis qualifica esse sistema como tecnofeudalismo. Ladislau Dowbor também fala de “pedágio” para referir-se aos juros cobrados pelo capital financeiro sobre operações de crédito ao consumidor, porque ele se apropria de parte da riqueza sem contribuir para o processo produtivo.

Essa antiga nova forma de capitalismo pode então ser vista como ultraliberal porque vai além do neoliberalismo na rejeição ao Estado de Bem-estar social. Mas por favorecer o Estado militarista, nacionalista e protetor do comércio, rejeitando a globalização e os organismos internacionais de controle, prefiro chama-la de capitalismo de rapina: nele, a liberdade é reduzida à liberdade de comprar e vender no mercado, pagando os devidos pedágios ao capital, enquanto a apropriação privada de bens comuns movimenta a economia. Resultado disso é sua enorme capacidade de concentração da renda e da riqueza. É o que veremos em seguida.

A atual forma do capitalismo: concentração de renda, riqueza e poder

O período neoliberal deixou como herança a globalização da economia e da cultura, que possibilitou a consolidou o poder de uma classe social numericamente minúscula, mas mundialmente interligada. No seu topo estão alguns milhares de pessoas super-ricas e dezenas de milhões de ricas. São elas que definem os rumos da economia mundial e das economias de seus respectivos países. Para tocar esse processo, essa gente conta com valiosos colaboradores e colaboradoras dos setores médios (10% da população mundial?). São pessoas que praticam o capitalismo de rapina (mineração, agronegócio, exploração de petróleo, expansão sobre territórios preservados, apropriação de bens comuns etc.), ou que revestem de glamour a dominação exercida pelos ricos e super-ricos: as celebridades midiáticas ou esportivas, e influenciadores cujo estilo de vida torna-se um ideal a tingir. Fora desse pequeno círculo da abundância fica a grande maioria da população mundial: mais de 7 bilhões de pessoas que se alocam como podem no processo produtivo em trabalhos precários, no subemprego e na agricultura familiar, enquanto sonham enriquecer-se – ainda que por meio dos jogos de aposta – para fugir do destino de “massa sobrante” no sistema capitalista mundial.

Tendo o controle das redes digitais, os super-ricos têm nelas não somente sua fonte de riqueza, mas também sua nova fonte de poder, porque por meio delas conseguem conquistar os corações e mentes de toda a população e constituir uma oligarquia à qual os Estados nacionais se submetem. Temos aí um fato novo: o avanço da oligarquia sobre o que resta da democracia no cenário político atual.

Essa dominação econômica e política se reveste de admiração dos setores dominados pelos poderosos. Como se fosse uma cascata social, os super-ricos e grandes milionário/as ocupam o topo da admiração; logo abaixo estão os e as famosas do mundo midiático, dos esportes ou da moda, cujo estilo se busca imitar; depois estão as classes médias e as classes empobrecidas que sonham se enriquecer nem que seja pelos dos jogos de apostas. Essa gente percebe que acredita em algo que certamente não se realizará, mas só lhes resta esse sonho depois que todas as certezas do passado se esfumaram. O problema eclode quando ela se convence que foi enganada pelo que chamam de sistema: não se sabe definir o que seja, mas dizem ser “tudo isso que está aí” desde um tempo recente. Imagina-se então que no passado era diferente porque tudo estava em seu devido lugar. Nesse contexto, faz sucesso a figura política que promete restaurar esses bons tempos que só existiram na fantasia.

Face à derrota histórica dos pobres, encontrar nossa Esperança

Aqui situo a triste novidade do mundo atual: a dominação tornou-se tão desigual, que a maior parte da população mundial empobrecida se sente derrotada e perdeu a esperança de dias melhores numa sociedade justa e igualitária. Até o mito iluminista do progresso esfumou-se, abrindo o campo cultural para influenciadores/as que vendem a ilusão da felicidade individual. Talvez aí resida o motivo da atual dificuldade em promover mobilizações sociais em favor de causas sociais e políticas: foi tirada da maioria dos pobres a fé na luta “até a vitória final”.

O outro lado dessa mesma moeda é a difusão mundial de uma nova forma de fascismo, ideologia que não distingue adversário – com quem se disputa o poder, conforme as normas da competição – e o inimigo a ser combatido e eliminado. Em consequência, todas as categorias sociais que não se enquadrarem na ordem estabelecida podem tornar-se alvo de perseguição e eliminação. No fascismo clássico foram os judeus, comunistas, ciganos, pessoas deficientes, e opositores políticos. O neofascismo tem por alvo migrantes pobres e quem os protege, bem como quem contraria a ordem capitalista ou o patriarcado. Desqualificados como “comunistas”, “abortistas” e outros termos depreciativos, esses setores da sociedade que resistem ao neofascismo são apresentados como inimigos de Deus, da Pátria e da Família.

Na contramão dessa corrente de resignação, porém, há povos e grupos que – mesmo em condições de minoria – resistem com valentia a esse sistema opressor. O Povo da Palestina é talvez o exemplo mais evidente, embora não único, dessa atitude de quem prefere perder sua vida a perder sua dignidade. É nesse terreno que floresce a Esperança de uma Humanidade reconciliada consigo mesmo e com a natureza onde Justiça e Paz se abraçam, como promete o profeta Isaías (37, 17) e enfatiza o salmo 85 (84).

Para fundamentar um pensamento capaz de dar as razões desta Esperança só vejo, hoje, um caminho: abandonar o paradigma da modernidade colonialista e buscar outro paradigma nas periferias do sistema que ele moldou. Explico: abandonar o paradigma cartesiano, baseado na radical separação entre sujeito (que pensa) e objeto (coisa) que se quer conhecer. Fazer isso sem abandonar o acúmulo de conhecimentos originados daquele paradigma, como a filosofia, a ciência, a arte, a tecnologia, mas recuperar todas essas contribuições dentro de um paradigma mais amplo, que trate a reciprocidade entre o humano e a grande comunidade de vida da Terra como relação entre sujeitos. Penso que esse paradigma da reciprocidade entre sujeitos pode ser encontrado em diferentes populações que vivem na periferia do sistema dominante. Não tenho certezas, mas proponho uma pista a explorar.

A pista a ser explorada reside no fato de que aquelas populações têm sua vida cotidiana regida pelo circuito da dádiva (dar / receber / retribuir), que forma comunidade ao unir pessoas por laços de solidariedade. Nessas populações as relações de mercado (comprar / vender) são excepcionais: servem para a aquisição de bens supérfluos ou simbólicos. Em termos sócio-políticos o circuito da dádiva resulta na fórmula “de cada pessoa conforme sua capacidade, a cada pessoa conforme sua necessidade”, que tem inspirado movimentos de caráter socialista ou comunista, e até hoje rege a economia doméstica.

A modernidade introduziu a lógica das relações de mercado na vida cotidiana, vendo o contrato social entre indivíduos livres como fundamento da sociedade, sem perceber que ele projeta para a ordem sócio-política a mesma lógica do mercado, onde prevalece sempre o mais forte ou eficiente. Seu fruto maduro é a moderna sociedade de mercado que, ao concentrar o capital nas contas dos muito-ricos, leva a esta era de trevas que agora estamos!

É necessário abandonar o viés evolucionista que vê a comunidade como forma social de grupos “primitivos”, para então recuperar o paradigma da Sabedoria de Povos originários ou tradicionais. Entende-lo como uma Sabedoria fundada sobre a concepção de relação entre sujeitos diferentes, sem dúvida, mas igualmente sujeitos. Dessa Sabedoria podem ser exemplos o Sumak Kawsay de povos andinos; o projeto Maia dos Caracóis, em Chiapas; a busca da Terra sem males dos Guarani; a memória do Cristianismo primitivo anunciando o Reinado de Deus; a pregação de Antônio Conselheiro em Canudos e tantas outras Sabedorias de povos originários ou classes sociais que, embora nas periferias do sistema dominante, resistem à opressão e à colonialidade. Entender o/s paradigma/s de pensamento desses povos, para refazer nosso paradigma a partir das relações entre sujeitos diferentes, eis um grande desafio!

Tendo passado toda minha vida no interior do paradigma da modernidade colonialista, percebo minha incapacidade intelectual para aprender a pensar fora de seus limites. Ao escrever este texto, penso nas gerações mais novas que, sentindo na própria pele os males que o antigo paradigma produziu e está produzindo, se arrisquem a pensar a realidade a partir de um paradigma mais humano e solidário. Cabe a essa gente das novas gerações “dar a razão de nossa Esperança” (1P 3,15).

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