O Ciclo de Estudos – A condição humana entre a Biosfera, a Tecnosfera e a Infosfera em tempos sindêmicos debateu, interdisciplinarmente, entre os meses de junho e novembro de 2021, questões relacionadas às cosmotécnicas, ética, transumanismo, pós-humanismo, digitalização da governança, sistemas de poder, tecnosfera, biosfera e responsabilidade socioambiental. Estas discussões tiveram o intuito de evidenciar questões humanitárias em meio às transformações ambientais, climáticas e tecnossocietais globalmente vigentes.
Os conferencistas nos auxiliaram a compreender transdisciplinarmente a (re)configuração da condição humana nos processos de algoritmização e digitalização da vida, diante do contexto contemporâneo sindêmico e das suas relações com a biosfera, tecnosfera e infosfera.
Paolo Gerbaudo ingressou no departamento de humanidades do King's College London em setembro de 2012, assumindo o cargo de Professor em Cultura e Sociedade Digital. Na mesma instituição, é Diretor do Centre for Digital Culture. Ele possui Doutorado em Mídia e Comunicações, sob a orientação do professor Nick Couldry. Além de seu trabalho acadêmico, Paolo também atuou como jornalista em áreas que abrangem movimentos sociais, assuntos políticos e questões ambientais.
Quando convidado para debater sobre Populismo e Neo-Estatismo: crise econômica, reconstrução social e reparo ecológico, Paolo considerou que este neoestatismo não é de esquerda, mas a ponte dos mais ricos para manter suas prerrogativas e propriedades seguras até a recuperação da pandemia. De qualquer modo, só quem obtém a proteção do Estado lhe oferece obediência, como teorizou Hobbes, e quem não a obtiver, irá se rebelar.
O novo regime climático, segundo ele, é uma oportunidade sem precedentes para se pensar novas formas de estatismo que deem conta da complexidade da crise hoje enfrentada e que indiquem novas possibilidades de relações entre humanos e destes para com a natureza, identificando suas contribuições para a construção de modos de vida sustentáveis.
Na esteira das discussões sobre as implicações ético-políticas da revolução digital nas sociedades contemporâneas, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU recebeu o Prof. Dr. Alfonso Ballesteros da Universidade Miguel Hernández – Espanha para analisar a digitalização nas formas de governar e refletir sobre o resgate do humano nas estruturas de poder. O tema de sua apresentação é inspirado em um artigo do professor publicado por The Conversation em fevereiro de 2021 e republicado pelo IHU com tradução do CEPAT no mesmo mês.
“Talvez devêssemos desviar a atenção da tecnologia e começar a centrá-la no que está fazendo conosco. Frente aos governantes do dígito e a máquina, urge um novo orgulho de ser humano”, escreve Alfonso Ballesteros.
“Acredito que cabe afirmar duas coisas sobre a digitalização que ainda não foram ditas, ou não o bastante. A primeira é que é uma espécie de forma de governo absoluta. Governo, porque tem uma capacidade ordenadora, de estabelecer boa parte das normas que orientam a vida das pessoas, quase sem interferência das instituições legítimas. Absoluta, porque este governo exclui a si dos dispositivos com os quais domina, do mesmo modo que o tirano não aplica a si a lei que cria. Desta forma, os engenheiros do Vale do Silício educam seus filhos sem a tecnologia que apresentam para milhares de usuários como positiva e conveniente”, aponta.
Para Ballesteros, “a novidade deste governo é que não obriga de forma grosseira como o tirano, que domina com a pura força da coação. É uma forma de poder muito mais forte, mas muito mais enigmática e amável, que dirige nossas condutas na interioridade. A ordenação da vida procede do gosto, do like e da personalização. Este governo de facto e ilegítimo tem hoje alcance mundial”.
A segunda tese, segundo ele, “é que esta forma de governo traz como resultado uma tendência à animalização do ser humano, a torná-lo um animal digitalis. Isto é central do ponto de vista da produção da comunicação. Se o homem se parece com a máquina, comunica-se pouco, pois nunca é impulsionada por vícios, é sempre funcional e sóbria. A comunicação animal e viciante, por outro lado, é potencialmente ilimitada”.
“Nós nos comunicamos como máquinas?”, provoca Ballesteros, mas logo em seguida vem a resposta: “minha tese é que não. Ao contrário, a digitalização cria adictos que não param de se comunicar digitalmente. E não com sinais matemáticos, que levariam a ser funcionais como as máquinas, mas mediante uma linguagem emocional própria dos animais. Ou seja, é uma comunicação animalizada porque o homem, enquanto animal, é suscetível ao vício e o vício leva a repetir condutas compulsivamente. Esta repetição no âmbito digital é produtora de dados, o que gera enormes lucros”.
A fala do Prof. Dr. Alfonso Ballesteros integra o O Ciclo de Estudos – A condição humana entre a Biosfera, a Tecnosfera e a Infosfera em tempos sindêmicos e pode ser acompanhada aqui:
Qual a importância da Técnica na sua vida? Quais os limites e possibilidades que ela sublinha no seu modo de produzir, consumir, socializar, criar e viver? Este atributo ou fenômeno civilizacional é tão inerente à nossa condição como humanos que raramente paramos para pensar se o arranjo de ações e objetos técnicos que nos circunda condiciona as nossas sociedades a viver de maneira unificada, determinada apenas por uma forma (ocidentalizada) muito peculiar de conceber a cultura e a tecnologia. Quais as implicações do alinhamento de tantos povos, com seus diferentes sistemas culturais e cosmológicos, a uma única forma de conceber tecnologia?
Fernando Wirtz, doutor em Filosofia pela Universidade de Tübingen (Alemanha) e membro do comitê diretor da Sociedade Internacional de Filosofia Intercultural, se debruçou sobre essas questões e busca delinear algumas respostas a partir das contribuições filosóficas de Yuk Hui.
Segundo o professor Fernando, “Yuk Hui é um jovem pesquisador que oferece uma visão renovada da relação entre tecnologia e cultura, uma relação que ele resume mediante a noção de 'cosmotécnica'. O que significa 'cosmotécnica'? Em geral pensamos a tecnologia como um fenômeno universal. Nesse sentido fala-se de civilizações ou povos 'mais avançados tecnicamente' que outros. Assim se explicou, por exemplo, a 'superioridade' dos europeus ao conquistar o território americano, porém também em suas incursões político-militares na Ásia durante o século XIX e XX”.
O filósofo Hui põe em xeque, precisamente, essa premissa universalista. O que aconteceria se não existisse somente uma tecnologia, mas sim muitas cosmotécnicas? Como se veria afetada nossa percepção da história? Talvez o paradigma ocidental, que afirma que o desenvolvimento tecnológico apresenta-se como uma progressão unidirecional acumulativa, seja somente um dos modos de se pensar a tecnologia.”, aponta Wirtz.
Fernando Wirtz aprofundou a discussão sobre cultura e tecnologia aqui no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Diretamente da Alemanha, o professor articulou assuntos sobre “Terraformação, cosmotécnica e pós-cosmologia: A fuga do determinismo tecnológico”.
Fernando também concedeu uma entrevista especial para o IHU intitulada A cosmotécnica como método para pensar a relação entre tecnologia e cultura. Nela, o professor apresentou posições filosóficas que advogam uma cosmotécnica, contrapondo-se ao universalismo tecnológico europeu, e explicou os limites e potencialidades dessas visões para a discussão sobre a relação entre técnica e cultura, tendo em vista modos de enfrentar as mudanças climáticas. "A pergunta obviamente aberta é a de como se pensa a cosmotécnica num exemplo que não seja a China, porque o único exemplo que Yuk Hui nos dá é o da China. As críticas mencionadas colocam o seguinte problema: Como articular um discurso cosmotécnico não culturalista/essencialista capaz de gerar mudanças políticas significativas? Ou seja, um discurso que não conceba a cultura como uma essência", esclarece.
Para responder às objeções, um ponto de partida, argumenta, "seria reapropriar a história filosófica da tecnologia desde um ponto de vista não hegemônico, não europeu etc". Para ele, a alternativa mais adequada neste debate consiste em pensar a cosmotécnica como método. "Isto me parece muito mais lógico: não necessariamente a cosmotécnica tem de estar fundamentada ou baseada em uma cosmologia; pode fundamentar-se na história, num processo, em algo que está sendo feito e acontecendo. A cosmotécnica como método não seria a cosmotécnica tal como ela tem sido criticada, como um tipo de reabilitação do essencialismo, mas, ao contrário, uma técnica enquanto uma busca contínua de recontextualizar as histórias da tecnologia. É isso que chamo de pós-cosmologia, cosmotécnica pós-tecnológica".
Também com o objetivo de aprofundar as proposições filosóficas de Yuk Hui, o Prof. Dr. Lucas Nascimento Machado foi convidado a debater sobre outro conceito que aparece na obra de Hui: a tecnodiversidade.
Lucas Nascimento Machado é professor substituto de História da Filosofia da UFRJ. Doutor em Filosofia pela FFLCH-USP e diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural (ALAFI). Atualmente atuando na pesquisa nos seguintes temas: determinação e autodeterminação no idealismo alemão, filosofia e ceticismo no idealismo alemão, filosofia intercultural, filosofia budista, a filosofia de Byung-Chul Han.Também é tradutor, com ênfase na tradução de livros de filosofia alemã contemporãnea, tendo já traduzido os seguintes autores: Byung-Chul Han ("No Enxame", "Bom Entretenimento" e "Filosofia do Zen Budismo"), Klaus Vieweg ("O Pensamento da Liberdade: Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel"), Dieter Henrich ("Pensar e Ser Si Mesmo"), Markus Gabriel ("Eu Não Sou Meu Cérebro").
O conceito de tecnodiversidade para Yuk Hui deriva diretamente do termo “cosmotécnica”, também criado por este filósofo. Segundo ele, “cosmotécnica corresponde à unificação, nas atividades técnicas, das ordens cósmica e moral. Ordens que diferem de uma sociedade para outra. Por exemplo, os chineses não tinham o mesmo conceito moral que os gregos. A cosmotécnica delineia, portanto, de entrada, a questão da localidade. É uma investigação sobre a relação entre a tecnologia e a localidade, ou seja, uma busca dos lugares que permitem que a tecnologia se diferencie. Ao contrário, na lógica da filosofia moderna, delineia-se um esquema ou uma lógica superior e universal (e transcendental) e, em seguida, basta impor em todas as partes, indiferentemente. Esta modalidade ignora a questão da localidade ou pelo menos a trata como um lugar diferente somente do ponto de vista geográfico, mas não diferente qualitativamente”.
Acompanhe a palestra Yuk Hui e Tecnodiversidade: Pensando a questão da tecnologia de uma perspectiva intercultural aqui:
Talvez uma versão contemporânea do mito de Sísifo não seja propriamente a de levar uma imensa rocha esférica montanha a cima, mas sim a de determinar as fronteiras do humano. Tudo isso ganha contornos ainda mais complexos quando se trata de pensar a condição humana em meio ao antropoceno. Este exercício, em tudo difícil, é o que o professor José Manuel de Cózar propõe em sua conferência Transumanismo e pós-humanismo no Antropoceno. Evolução tecnológica e autonomia humana, realizada no IHU no dia 23 de setembro, reproduzida também em formato de entrevista.
“[O transumanismo] É um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie”, explica Cózar. “Em geral, quando falamos do pós-humanismo estamos tratando do pós-humanismo cultural, que é uma visão, uma atitude, sobre o que é ser e como se relacionar com a tecnologia. Isso tem muitas variações, o que torna complicado de dizer o que é o pós-humanismo precisamente”, complementa.
Ao longo da entrevista, o pesquisador vai complexificando e abordando de forma aprofundada as definições. “Os pós-humanistas não são deterministas tecnológicos, ao passo que os transumanistas tendem a ser deterministas tecnológicos. Embora valorizem a tecnologia, os pós-humanistas tendem a uma postura mais crítica. Também não são essencialistas, reconhecendo a condição humana como algo mutável, contingente e maleável”, acrescenta.
Um desafio que se descortina no tempo presente sobre as formas como concebemos a noção de humanidade passa por duas dimensões. “O fato é que nós todos precisamos de dados científicos e histórias coerentes para que possamos nos unir contra essa ameaça, que seria todas as coisas que podem ir mal no antropoceno”, pondera.
Roberto Marchesini é médico veterinário, etologista e filósofo que se dedica ao estudo de animais desde a década de 1980. Ele combina perspectivas científicas e filosóficas para abordar uma série de questões sobre evolução, comportamento, mente, subjetividade, cultura e ética. Com colegas, ele desenvolveu uma escola de interação e treinamento animal que se baseia em tratar os animais (cães, cavalos, gatos, outros) como interlocutores mentais em uma interação social, ao invés do uso de reforço negativo e simples condicionamento. Ele é o expoente mais conhecido da zooantropologia e do pós-humanismo na Itália, e desenvolveu versões únicas de ambos que podem contribuir para a literatura anglófona sobre eles.
Segundo Marchesini, a tecnologia não nos emancipa de relações e das dependências, mas nos liga por um duplo fio ao mundo ... E isso não deve ser interpretado como algo negativo. Não se trata de desvalorizar o ser humano, mas de compreender como as qualidades, das quais somos orgulhosos, são o fruto da relação e não de um engenho solitário. A ecologia, como ciência que estuda as relações da biosfera, mostra-nos um modelo para reformar a criatividade. Um ponto central no pós-humanismo é: buscar um sentido para a própria existência, não de forma autocentrada, mas nas relações. Por essa razão, mesmo algumas visões transumanistas, voltadas para a simples potencialização do indivíduo, não se assemelham ao pós-humanismo. São formas de hiper-humanismo, que atribuem à tèchne um poder soteriológico. Não é possível buscar um sentido para a própria existência buscando-o desesperadamente dentro de si mesmos: é uma tautologia.
O vírus hoje ganhou as manchetes devido à pandemia, mas já há algumas décadas havia assumido o papel de operador de conceitos. A viralidade é o símbolo daquele fluir dos átomos na biosfera que não vê barreiras. Viral é nossa maneira de conceber o gene como uma entidade transportável de um organismo para outro. Viral é a forma de difundir a informação, de construir complexidade de baixo para cima, de inserir a tecnologia, de evolução memética. Hoje nos defendemos da agressão do vírus aumentando as distâncias sociais: essa estratégia faz sentido como medida de emergência, mas não funciona no longo prazo, do ponto de vista epidemiológico. Nós entenderemos isso muito em breve. As relações ecológicas são baseadas em interações em diferentes níveis, onde o fluxo, embora sempre presente, é regulado por gradientes precisos. O surgimento da pandemia foi causado pela destruição dos gradientes ecossistêmicos.
Toda a conferência de Roberto Marchesini foi traduzida e transcrita aqui:
O Prof. Dr. Sebastiano Maffettone é filósofo italiano e professor de Filosofia Política na Universidade LUISS Guido Carli, em Roma, onde dirige o Center for Ethics and Global Politics e é presidente da Escola de Jornalismo Massimo Baldini. Ele lecionou em várias universidades italianas (Turin, Palermo, Nápoles e Roma), bem como universidades internacionais (Harvard, Columbia, Boston College, Universidade Tufts, Paris, Délhi, Universidade da Pensilvânia para mencionar alguns). Maffettone se formou summa cum laude da Universidade de Nápoles em 1970, e completou seus estudos de graduação em filosofia social na London School of Economics - LSE em 1976, sob a supervisão de filósofos como Karl Popper e Amartya K. Sen.
Em um artigo publicado em maio de 2021 por Corriere della Sera e republicado no sítio do IHU, Maffettone, juntamente com Paolo Benanti, apontam uma nova ferramenta conceitual para dar vistas aos desafios sociotécnicos contemporâneos. Intitulada de “sustentabilidade digital”, eles a interpretam como sendo “o cuidado dos problemas decorrentes do complexo das consequências sociais, morais e políticas devido ao impacto extraordinário da revolução digital sobre as nossas vidas”.
Não é por acaso, apontam eles, “que o entusiasmo inicial que se seguiu à revolução digital foi seguido por um período em que, na maior parte da literatura das Ciências Sociais sobre o tema, percebe-se o temor pelo futuro e a necessidade de adotar precauções. A sustentabilidade digital propõe uma abordagem ética, que inclui critérios, princípios e orientações, capaz de ajudar na escolha de medidas políticas entre as diversas opções em relação ao digital. Essa abordagem se baseia na capacidade de duração no tempo da opção escolhida combinada com a proteção dos mais desfavorecidos pela digitalização”.
Observando a sociedade cada vez mais intermediada por dispositivos eletrônicos, algoritmos e sistemas Big Data, Maffettone e Benanti aprofundam o conceito de sustentabilidade e apontam novas dimensões para ação política. “Falar em sustentabilidade, na nossa perspectiva, não se refere, predominante ou exclusivamente, à proteção do ambiente natural. Em vez disso, diz respeito a uma perspectiva ampliada que também inclui a sustentabilidade econômica e política. A sustentabilidade geral, assim concebida, deveria garantir – como se disse – a durabilidade no tempo e a proteção dos mais desfavorecidos pela digitalização”.
Em julho de 2021, Maffettone e Benanti escrevem a respeito da plataforma Decidim, isto é, uma plataforma digital utilizada para fins políticos. Decidim já é um instrumento utilizado pela administração pública catalã, e também pela Prefeitura de Milão.
“É uma opinião generalizada que a democracia liberal tradicional está em crise em todo o mundo. E, portanto, é natural explorar outras possibilidades, começando pelas oferecidas pela revolução digital, da qual o Decidim é um dos últimos filhos. A franqueza com que o próprio Decidim se apresenta ao usuário (ou ao cliente?) é reveladora. Até o obriga a assinar um “contrato social”, isto é, uma coisa séria, de Hobbes a Rawls. Além disso, os objetivos desse contrato são múltiplos e totalmente respeitáveis. Porque o contrato em questão pretende explicitamente promover virtudes ético-políticas certamente louváveis como a transparência, a rastreabilidade e a integridade das informações. Tudo com o objetivo de favorecer a participação democrática e a deliberação informada com igualdade de oportunidades, com plena segurança e respeito à privacidade.”, apontam Maffettone e Benanti.
“É lícito conceder uma certa confiança preventiva a tais instrumentos. Afinal, os algoritmos e até mesmo a inteligência artificial têm sido utilizados de muitos modos socialmente vantajosos, desde a antecipação das necessidades sanitárias e a criação de conexões entre indivíduos potencialmente compatíveis até a regulamentação do tráfego e a facilitação de decisões financeiras e políticas. No entanto, há uma crescente preocupação no que diz respeito ao impacto do processo decisório algorítmico sobre os resultados individuais e coletivos. Algoritmos projetados para recomendar informações e produtos de acordo com as supostas preferências individuais podem criar feedbacks descontrolados em que as preferências sobre as informações do usuário e a sucessiva exposição aos conteúdos se tornam mais extremas ao longo do tempo (as chamadas bolhas)”, provocam.
Quando o Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior foi convidado para debater sobre a Técnica e Ética no contexto atual. A crise e a (des)humanidade no Brasil no século XXI, ele relembrou, com muito discernimento, das contribuições filosóficas de Hans Jonas, em especial na obra “O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica”.
Segundo Giacoia, vários conceitos levantados por este filósofo nesta obra podem iluminar os desafios contemporâneos oriundos da transição climática ou do Antropoceno, como alguns pesquisadores preferem classificar nossa época.
“Em 1979, quando Hans Jonas publicou O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica, noções como heurística do medo, a contraposição entre responsabilidade e esperança, assim como a postulação de um direito próprio da natureza constituíam perspectivas marcadamente inovadoras nos planos da filosofia, das ciências, da ética, da política e da educação. Penso que continuam a sê-lo ainda hoje”, relata Giacoia.
“Em ligação com tais noções, apresenta-se um dos aspectos mais característicos na obra de Hans Jonas: a crítica do antropocentrismo hegemônico na tradição ético-religiosa e filosófico-política do Ocidente, que se desdobra numa proposta de revisão de seu estatuto, sem implicar, no entanto, uma depreciação do humanismo, e menos ainda uma negação do valor da dignidade humana. Com a postulação de um direito próprio da natureza, Jonas tem em vista uma prerrogativa inerente às entidades naturais e à vida em geral – às futuras gerações, de seres humanos e não humanos -, que revoluciona as categorias assentes, tanto jurídicas quanto ético-filosóficas, e que resulta numa reconsideração do humanismo como perspectiva filosófica”.
Hans Jonas cria um sistema de direitos capaz de abarcar não apenas aspectos geológicos, biológicos, antropológicos e tecnológicos e suas eventuais conjugações, mas extrapola o direito como um fio condutor e garantidor da vida e da dignidade dos seres e das gerações ainda por vir. “A posição de Jonas a este respeito é efetivamente sui generis, pois difere essencialmente, quanto aos seus fundamentos, das múltiplas variantes das éticas, ao ampliar seus limites, pela atribuição de relevância moral – e, por conseguinte, valores, direitos e prerrogativas - não apenas a seres não-humanos, como às demais espécies naturais, com inclusão do conjunto dos ecossistemas, mas também a entidades inexistentes, como, por exemplo, as futuras gerações de seres humanos e não humanos”.
“Na ótica do antropocêntrico tradicional, não faria sentido estender de tal modo o campo da responsabilidade, pois este conceito estaria vinculado ao plano das relações humanas, único âmbito de atuação de sujeitos éticos. É o que pensa, por exemplo, Jürgen Habermas: ‘A comunidade de seres morais, que outorgam leis a si mesmos, reporta-se, na linguagem de direitos e deveres, a todas as relações que carecem de regulação normativa; entretanto, apenas os membros dessa comunidade podem obrigar-se reciprocamente em termos morais, e esperar um do outro um comportamento conforme às normas’”, assevera Giacoia.
“A urgência metafísica de uma heurística do medo, em Hans Jonas, formula-se na contracorrente de um tal entendimento, e se assevera perante a iminência da possibilidade de destruição das condições de uma vida autenticamente humana sobre a terra, fazendo apelo à necessidade da introdução de novos marcos regulatórios da ação coletiva, princípios e estratégias normativas de alcance nacional e internacional. O reconhecimento de um direito próprio da natureza é uma medida urgente em face do perigo representado pelo potencial destrutivo da moderna tecnociência, com sua ampla capacidade de devastação. Esta vulnerabilidade radical é o anverso de um dever de proteção, ancorado num senso amplo de responsabilidade ética e jurídica, brotado da desmesura deste poder”.
Sua palestra também pode ser acessada em formato de artigo, nos Cadernos IHU Ideias número 326.
Imagem: Capa dos Cadernos IHU Ideias número 326, de Oswaldo Giacoia Junior.