13 Março 2021
“Ainda não encontramos as formas de atuar capazes de enfrentar a revolução digital, não para negá-la, mas para evitar que destrua a vida. O que vamos aprendendo é que nada pode mudar, se nos limitarmos à pequena política de palácio”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 12-03-2021. A tradução é do Cepat.
Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci diferenciava a grande política da pequena política. A primeira se concentra nas funções desempenhadas pelo Estado e nas estruturas socioeconômicas. A segunda aborda a política do dia, parlamentar, de corredores, de intriga.
A grande política é necessariamente criativa. A pequena é conservadora e busca apenas manter os equilíbrios preexistentes. No mundo atual, a alta política é definida pelas grandes multinacionais, as forças armadas e seus think tanks estratégicos, e grupos de pressão e de poder como o deep State, nos Estados Unidos.
Da pequena política se ocupam os governos, em particular, os progressistas que não têm possibilidades de influenciar na grande política, já que não se propõem mudanças estruturais e, portanto, se limitam a questões de maquiagem e estética políticas, sobretudo utilizando os meios de comunicação de massas.
O mais comum é que proponham como grande política questões que não passam de políticas do cotidiano, muitas vezes resgatadas de fracassos anteriores. A barragem de Belo Monte, promovida pelo governo de Lula, no Brasil, fracassou quase meio século antes pela oposição dos povos amazônicos à obra faraônica proposta pela ditadura militar. O Trem Maia entra na mesma categoria da política de intriga, que se quer fazer passar como obra estratégica.
O desenvolvimento digital faz parte da grande política que os governos, em geral, tratam com os modos da pequena política. Limitam-se a bendizê-la como se fosse um processo inevitável na vida humana, como o nascimento e a morte, como o amanhecer e o crepúsculo.
No entanto, a digitalização é considerada a terceira revolução antropológica, depois da criação da linguagem articulada e a invenção da escrita, conforme avalia o psicanalista e espitemólogo franco-argentino Miguel Benasayag, em La tirannia dell’algoritmo.
Miguel é um companheiro cujas análises são agudas e penetrantes. Pertence à geração de 1968, esteve três anos nas prisões da ditadura por pertencer ao Exército Revolucionário do Povo e, agora, participa do coletivo francês Malgré tout. Segue comprometido com causas coletivas e se concentrou em estudar as consequências das novas tecnologias na sociedade.
Sem livro anterior, El cerebro aumentado, el hombre disminuido (Paidós, 2015), destaca que, diferente das invenções anteriores, da roda aos antibióticos, “a digitalização não termina de efetivar um novo modo de ser no mundo para o homem, mas, ao contrário, afasta o homem do mundo e de seu poder de ação, apesar de desencadear um poder tecnológico muito forte” (p. 16).
Sustenta que a revolução da digitalização fez com que 95% do conhecimento que temos sobre o mundo seja indireto. Mas esse conhecimento indireto não se soma ao conhecimento que nasce da experiência corporal, ao contrário, o substitui e o cancela. Por isso, considera a digitalização como violência, porque nega e suprime a diferença (e os diferentes) e as identidades singulares.
A rapidez e a onipresença caracterizam a revolução digital, avalia Benasayag. No mundo do algoritmo, não existe a alteridade, mas a delegação das decisões políticas aos algoritmos suspende o conflito, com o bloqueio e a inibição. “A negação do conflito pode produzir a barbárie”, argumenta em Elogio del conflito, escrito com sua companheira Angélique del Rey (Brueghel, 2018).
Ao eliminar a singularidade dos seres e, em consequência, suprimir o conflito, a tirania do algoritmo coloniza a vida. Desse modo, deixa-nos indefesos, nos desmaterializa e desencarna, convertidos apenas em dados binários inscritos em chips, o que nos imobiliza ao nos restringir ao individual.
Para escapar desta tirania, defende Benasayag, precisamos resistir à supressão da diferença e do conflito, algo que os governos, em geral, e em particular os progressistas, parecem desejar. Por isso, enfeitam-se com as vestes dos povos originários e empunham seus cetros, fazendo acreditar que tudo é a mesma coisa. As diferenças e os diferentes são sentidos como ameaças por um sistema incapaz de processar os conflitos, conforme fez a humanidade em sua história.
A pequena política governamental se mostra impotente diante da grande política das grandes empresas da informação, essas que podem até bloquear e cancelar as contas dos presidentes do império. A pior coisa que podemos fazer é ignorar o poder desta tirania, sua capacidade de anular os seres humanos.
Ainda não encontramos as formas de atuar capazes de enfrentar a revolução digital, não para negá-la, mas para evitar que destrua a vida. O que vamos aprendendo é que nada pode mudar, se nos limitarmos à pequena política de palácio.
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A grande política e a revolução digital. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU