12 Fevereiro 2021
“Estamos vivendo uma conjuntura marcada por uma fascistização da política brasileira, das instituições, que estão sendo cada vez mais desacreditadas, tanto por essa fascistização quanto porque elas próprias também se desacreditaram quando se envolveram com toda a trama golpista, que começa em 2005. As instituições estão em pré-falência já há alguns anos. Elas não têm força para impedir os arroubos mais reacionários do Bolsonaro. Bolsonaro representa um projeto que não é só o extremo neoliberalismo; é um projeto de destruição do Estado brasileiro. Ele não pretende, é claro, acabar com o Estado, mas pretende transformá-lo naquilo que o velho Marx dizia: um comitê para gerenciar os negócios da burguesia. O resto da população não é um problema”.
A reportagem é de Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, publicada por Tutaméia, 11-02-2021.
Palavras de Lincoln Secco, professor de história da USP, ao TUTAMÉIA. “É um projeto mesmo que está em curso. É um projeto de ‘resolver’ o problema da pandemia através da morte de milhões de pessoas. Ele disse isso: ‘Olha, todo mundo tem de pegar a doença, e quem sobreviver, sobrevive’. Ele já está avisando: não vai ter Estado para vacinar, não vai ter Estado para cuidar, porque essa parte do Estado social, ela não interessa ao capital”, afirma.
Autor de “História do PT” (Ateliê) e “Gramsci e o Brasil (Cortez), nesta entrevista ele avalia que o governo Bolsonaro é o mais vendido e entreguista da história. Diz que o bolsonarismo –que, segundo ele, não tem oposição na mídia– “é uma forma necessária para o neoliberalismo”. Para o historiador, “Bolsonaro não depende do chamado mercado; o mercado é que depende dele”.
E completa: “O governo Bolsonaro é o governo mais subserviente na história no Brasil, mais antipatriótico, mais vendido. Não há paralelo. Nem mesmo a ditadura de 1964 abdicou tão fortemente dos interesses nacionais”
Na conversa, Secco trata das perspectivas da oposição e de como os ensinamentos de Antonio Gramsci (1891-1937) podem ajudar no enfrentamento ao fascismo no Brasil. “O fascismo é mentiroso, mas pode usar apenas verdades para contar mentira. O fascismo é uma manipulação racional daquilo que é irracional”
A seguir, alguns pontos da entrevista. Acompanhe a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV.
As forças pseudodemocráticas do chamado centro, que na verdade é a direita, se envolveram numa ação golpista porque esperavam só extirpar o PT do sistema político. Acreditando que o sistema político ficaria incólume, perfeito. Uma grande ilusão. O PT não é um partido revolucionário, é um partido da ordem. Mas é um partido reformista, que quer mudar a ordem por dentro. Ele é um dos sustentáculos fundamentais daquela democracia que foi forjada nos anos 1980. Não há democracia no Brasil sem o PT. Ou, no futuro, sem outra força de esquerda que apareça e que tenha vigência popular. Ao derrubarem o PT, ou acreditarem que estavam derrubando o PT, essas forças, na verdade, minaram o sistema político em que elas se legitimavam.
O PT não é um partido revolucionário, mas que incomodou a classe dominante, porque as políticas que o PT implementou, embora tentassem ser conciliadoras, mudaram as relações entre as classes sociais no Brasil. Lula, mesmo não atacando o grande capital, não prejudicando os banqueiros, como ele mesmo disse, elevou um pouco o padrão de vida o padrão salarial da classe trabalhadora. Isso é imperdoável.
Naquele discurso anticorrupção, que sempre foi uma farsa, era impossível que ele atingisse apenas o PT. Porque, no capitalismo, o sistema político tem uma taxa de corrupção em países periféricos. Mas na verdade, o PT é o menos corrupto dos partidos. Sempre tem corrupção localizada em qualquer partido e em qualquer governo. Essas acusações teriam que atingir o PSDB, o MDB, o DEM, porque é onde tem o maior número de corruptos. E também nos novos partidos de extrema direita, que vão acessando o poder agora com o Bolsonaro, que deve ser o governo mais corrupto da história recente do Brasil.
A tentativa de derrubar o PT pelo discurso da corrupção foi um bumerangue, voltou. O máximo que conseguiram foi, por algum momento, rebaixar todos os partidos para o mesmo padrão.
Olhando em termos históricos, ainda que uma história recente, a grande questão dos tribunais superiores é o veto ao campo popular na política brasileira –leia-se o veto ao Lula e ao PT. Desde 2005, quando houve a primeira tentativa de golpe –que foi aquela história do mensalão, e muita gente da esquerda nunca achou que teve golpe nenhum, mas estava em andamento. O projeto, na verdade, era fazer um julgamento político dos dirigentes do PT para chegar ao Lula.
Na verdade, há uma tendência nessa história recente, que é de permitir uma capa de democracia para essas instituições falidas. É claro que nunca se pensou em ter um governo neofascista, nunca se pensou em proibir oficialmente o PT, embora alguns tentassem a cassação do registro. A questão é que o sonho da burguesia “democrática” ou da direita tradicional é que haja uma mistificação de jogo democrático em que existe esquerda. Na verdade, é bom até que exista inúmeras esquerdas sem acesso ao poder, mas que justifiquem a ideia de uma existência de democracia.
Então, o Supremo Tribunal Federal sempre foi um tribunal político, desde sua formação. Nunca houve dúvida sobre isso. Um tribunal superior é um tribunal político, porque tem indicação política. Só que esse é um tribunal político que está comprometido com esse projeto de democracia. Na visão deles, isso é uma democracia.
O discurso era: O PT vai se eternizar no poder. Ganhou quatro eleições. Isso não é possível.
Então, sempre a pedra de toque das ações desses tribunais é que o Lula não tenha seus direitos políticos de volta, porque ele seria o candidato com mais chances de derrotar o Bolsonaro. E, se possível, inviabilizar cada vez mais o PT. Não por causa do PT, mas porque o PT ainda representa a principal força desse campo popular da política brasileira, que é um campo popular de massa.
Acho que é por aí. Eu não me engano com as decisões do Supremo, porque acho que faz muitos anos que a gente está sempre esperando alguma decisão: Ah, agora o Lula sai… Agora eles vão votar por algo progressista… Isso não acontece. Só como exceção. Isso tem a ver com uma longa história, que foi o erro do PT ao permitir que dentro do Judiciário se formasse um verdadeiro partido político, o partido da Lava Jato. E não só, com vários aliados nos Estados. Uma corporação que, hoje a gente sabe, que estava envolvida com atitudes criminosas. A gente já suspeitava há muito tempo.
Aquelas conversas que foram divulgadas há pouco tempo, elas são conversas infames. Em qualquer lugar sério no mundo, essas pessoas estariam excluídas do serviço público. No mínimo!
Agora, [com as revelações das articulações entre Moro e os procuradores] mudou inteiramente a leitura internacional da operação Lava Jato. Jogou a justiça brasileira num descrédito internacional.
O PT estava na lona em 2016 e voltou a ser o partido mais popular do Brasil, oscilando no patamar que tinha historicamente desde os anos 1990.
Nas próximas eleições, a gente vai ter uma confirmação de que a política se normalizou –entre muitas aspas. Há um processo de fascistização. Porque o que Bolsonaro visa é um golpe. Enquanto isso não acontece, a normalização da política brasileira vai se dar com a polarização com o PT e o bolsonarismo. Desde 1989 é o PT e uma força da direita, que vai mudando de nome, sempre um representante das classes dominantes.
Não é impossível derrotar Bolsonaro. Nos EUA, Trump não se reelegeu. É um fio de otimismo.
Essas candidaturas só teriam chance se tivessem apoio da esquerda.
Dória seria um novo Alckmin. Buscar voto no interior do Nordeste? Ele perderia para o Bolsonaro e, antes, para o PT.
Bolsonaro tem um governo sólido do ponto de vista miliar. Tem o apoio de massa, está enraizado numa parte da sociedade. O governo não é fraco.
Ele derrotou com muita facilidade uma figura que todo mundo achava que era forte, que é o Rodrigo Maia. Esse grupo não tem chance.
A direita tradicional, em boa medida por culpa dela mesma, se esfumaçou, se desfez. Ela vai continuar e pode ter um papel, especialmente se Bolsonaro for derrotado no futuro. No momento, ela perdeu.
Minhas professoras na universidade diziam que a democracia na América Latina é só um interregno entre ditaduras. Houve golpes entre anos 1960 e 1970 na América Latina. Só que de 1980 até 2019, a gente teve pelo menos 20 golpes de Estado bem sucedidos na região. Deve ser mais. Isso na chamada fase democrática.
A gente não tem uma cultura democrática estabelecida. Os que são pegos de surpresa pela história, ficam surpresos quando [é revelado] que agentes militares, do judiciário estão tramando continuamente com agentes estrangeiros para derrubar governos democráticos. Eles fizeram isso durante toda a história republicana do Brasil. E continuam fazendo.
Para que o Supremo Tribunal Federal tome posições progressistas, assim como o Congresso, como o Executivo, é preciso que haja luta popular, haja pressão de massas. Só para a gente lembrar de um exemplo histórico: a Constituição de 1988, que está sendo desconstituída, ela é vista como uma constituição progressista. Mas, se a gente olhar o Congresso da época, aquele Congresso era conservador. Surgiu lá até aquela expressão, Centrão, que dominou aquela Constituinte. No entanto, o produto daquela Constituinte conservadora foi uma Constituição progressista. Porque a gente estava em uma década de ascenso das lutas sociais. Agora a gente está numa década de descenso. Então, enquanto não mudar essa correlação de forças na sociedade civil, os tribunais e os mandatos executivos vão continuar aumentando as maldades que estão fazendo com a população.
A gente vive talvez uma das piores situações históricas do Brasil. Não é fácil, e não é fácil principalmente para a classe trabalhadora, para quem está aí na vida, nas fábricas, nos aplicativos, está no desemprego, é uma situação horrível. É horrível para outras camadas também. Temos um governo que é fascista –o regime ainda não é, mas o governo é. Tem de levar isso a sério. É um governo que, se deixado livre, vai caminhar mesmo para um golpe e para uma ditadura. Tem de levar isso a sério.
Agora, ele vai ser derrotado. Ele vai ser derrotado. O fascismo tem um grau de irracionalismo que ele coloca em risco a sobrevivência do país, no limite.
Agora, ele vai ser derrotado não automaticamente também. É preciso que a gente encare com bastante seriedade, também, uma luta política no dia a dia. Porque não são só as direções dos partidos, os grandes políticos que vão resolver esse problema. A gente, no dia a dia, conversando com um amigo, com um vizinho, no bar –quando abrir–, no trabalho, no estudo, a gente tem de conversar o tempo inteiro sobre a catástrofe que representa esse governo para o Brasil.
Não é uma luta de curta duração. Mesmo que o bolsonarismo seja derrotado eleitoralmente, uma parte daquilo que ele representa vai continuar de maneira larvar na sociedade. Isso demora para ser derrotado inteiramente.
Não é uma luta só para 2022, é uma luta que vai continuar. Não é uma corrida de cem metros, é uma maratona. Na maratona, não adianta sair correndo nos primeiros metros como um louco, a gente tem de ter fôlego. Então, vamos devagar, mas sempre, combatendo em todas as esferas o que esse governo representa. Ele representa o que tem de pior na sociedade brasileira, mas a sociedade brasileira não é isso.
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2022 será politizado entre PT e Bolsonaro. Entrevista com Lincoln Secco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU