16 Mai 2018
Influenciados pelas artimanhas do lulismo, vários segmentos da esquerda perderam, nos últimos anos, a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em processo suicida cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância de esquerda latente na juventude brasileira, escreve Hamilton Octavio de Souza, jornalista, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 15-05-2018.
Influenciados pelas artimanhas do lulismo, vários segmentos da esquerda perderam, nos últimos anos, a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em processo suicida cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância de esquerda latente na juventude brasileira. O mergulho equivocado no discurso fantasioso da direção petista fragilizou projetos autônomos e diferenciados de afirmação da esquerda partidária e social e conduziu boa parte desse campo político-ideológico a uma situação de subordinação cega a agrupamento que beira o messianismo. Como é possível que parcela da esquerda tenha perdido o fio condutor da racionalidade e da história?
Sem desprezar o mérito de análises mais amplas e detalhadas da conjuntura econômica mundial, da crise do modelo neoliberal e das inúmeras mutações do capitalismo no jogo internacional, que está a exigir, permanentemente, apuradas e eficientes estratégias na luta de classes, interessa concentrar a presente avaliação nos marcos da luta política no interior do Estado-Nação, aos acontecimentos locais que estão mudando a face do Brasil no decorrer desse início de século 21, entre os quais importa destacar:
Após ser derrotado em três disputas eleitorais para a presidência da República (1989, 94 e 98), Lula enfrentou a campanha de 2002 com várias mudanças significativas, desde a aliança com partidos tradicionais da direita, a inclusão de grande empresário mineiro (José Alencar) na chapa, o discurso do “Lulinha Paz e Amor” para agradar as classes médias, o apoio de oligarquias do Nordeste e de parcela da elite industrial paulista e, claro, a surpreendente Carta ao Povo Brasileiro, elaborada com aval da Odebrecht, família Marinho e banqueiros, selando o compromisso do lulismo com o modelo neoliberal e o jogo do mercado.
Era tudo o que os bancos e setores rentistas queriam. Evidentemente, o Lula de 2002 não tinha mais nada a ver com o Lula de 1989, o lulismo já tinha o controle quase absoluto do partido e várias correntes e militantes de esquerda já haviam sido empurrados para fora do PT. É o caso dos petistas que constituíram o PSTU, o PCO e outras organizações.
Dilema: O papel da esquerda era ganhar a eleição a qualquer preço ou continuar defendendo suas propostas até conquistar a população e acumular forças para realizar mudanças estruturais no país?
O primeiro governo Lula, considerado “em disputa” por vários analistas no campo da esquerda, rapidamente trilhou o caminho do oportunismo e do fisiologismo: decidiu fazer reforma da previdência contra os interesses dos trabalhadores, o que provocou a expulsão de parlamentares fiéis ao programa partidário, os quais caminharam para a construção do PSOL; abandonou a proposta original do programa Fome Zero, que previa a adoção de reformas estruturais, para lançar o programa Bolsa Família, tipicamente assistencialista e que até hoje não livrou importante parcela da população da reiterada exclusão econômica e social; descartou o projeto de reforma agrária coordenado por Plínio de Arruda Sampaio, que previa o assentamento de 1 milhão de famílias e mudanças profundas na estrutura fundiária do país, para aderir ao projeto do agronegócio, que gera violência no campo, concentra a terra e é profundamente danoso ao meio ambiente. Vale lembrar que o número de assentamentos no governo Lula ficou abaixo ao que foi realizado no governo anterior de Fernando Henrique Cardoso e que o MST manteve a combatividade durante a maior parte do governo Lula e foi tratado friamente como movimento de oposição.
Além disso, o lulismo enfiou-se na lama com desvios de recursos públicos e captação de propinas para comprar parlamentares no Congresso Nacional, notadamente do PTB de Roberto Jefferson, do PP de Paulo Maluf e do PR de Waldemar Costa Neto, entre outros. O escândalo do “mensalão” abalou o governo Lula, que jogou toda a encrenca nas costas de José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares e Sílvio Pereira. Embora seja difícil de acreditar que o “dono” do partido e presidente da República não tivesse conhecimento do esquema, o fato é que setores da burguesia, da grande imprensa, da indústria e do sistema financeiro decidiram preservar Lula como a solução “menos pior” naquele momento, o que o deixou o lulismo mais enredado com os grupos econômicos e políticos tradicionais. Ganhou a eleição de 2006 com arco mais amplo de alianças à direita.
Dilema: O papel da esquerda era insistir no projeto de conciliação proposto pelo lulismo ou construir oposição séria e firme ao neoliberalismo, às velhas oligarquias e ao conservadorismo de direita?
O governo Lula aproveitou a maré econômica favorável com crescimento puxado pela China, expansão do mercado internacional de commodities e razoável equilíbrio fiscal para adotar medidas de grande significado popular, como o reajuste do salário mínimo acima da inflação e a massificação do programa Bolsa Família, que foram responsáveis pelo aumento do poder aquisitivo na base da pirâmide social e grande expansão do consumo, também estimulado por crédito farto oferecido por agentes financeiros públicos e privados a juros extorsivos.
Os investimentos em obras de infraestrutura, repasses de recursos públicos para os sistemas de saúde e de educação privados (ProUni e FIES nas universidades particulares), isenções fiscais e desonerações de vários setores industriais – foram medidas que contribuíram transitoriamente para diminuir a miséria, a desnutrição e também criar expectativa favorável ao início de nova era de bem-estar no país. Lula surfou na onda do “ganha-ganha” (ganham os pobres e ganham os ricos), quando boa parte da sociedade embarcou na ilusão de um mundo sem perdas, com superação dos conflitos sociais, a domesticação dos sindicatos e o isolamento de movimentos populares mais combativos.
Lula terminou o segundo mandato com índice de aprovação de 83%, elegeu seu “poste” Dilma Rousseff em 2010, impôs o vice Michel Temer (MDB) na chapa presidencial e deixou o governo fortalecido por amplo leque de partidos tradicionais, fisiológicos e de direita, desde o PP de Maluf, o PRB da Igreja Universal, o MDB de José Sarney, Eduardo Cunha, Romero Jucá, Renan Calheiros, Jader Barbalho, Henrique Alves, Geddel Vieira Lima, Sérgio Cabral, e mais uma dúzia de legendas de aluguel. Vale lembrar que o esquema de propinas via diretorias da Petrobras já estava funcionando a todo vapor, abastecendo políticos e os caixas de pelo menos três partidos: PP, MDB e PT.
Dilema: O papel da esquerda era silenciar e ficar conivente com a euforia temporária de inclusão sem consistência ou adotar postura crítica contra a ilusória redução das desigualdades?
O sonho de um Brasil próspero, de bem-estar generalizado com renda alta, empregabilidade e paz social, acabou nos primeiros anos do governo Dilma. Primeiro porque a economia mundial patinou na estagnação ainda decorrente da crise de 2008, a China reduziu o ritmo de crescimento e as commodities nacionais perderam espaço no mercado global. Os capitais trataram de buscar portos mais seguros. Segundo porque, de um lado a política de “desonerações” desencadeou enorme queda da arrecadação federal, nos estados e municípios, com aumento da desordem fiscal, inadimplência e quebradeira; e, de outro lado, porque o caixa do BNDES, que durante anos foi usado para alavancar alguns poucos e seletos grupos privados (entre os quais as chamadas “empresas campeãs” da JBS e de Eike Batista), perdeu a capacidade de fomentar a economia via Estado, depois de ter queimado investimentos em projetos questionáveis para o desenvolvimento nacional, como o financiamento da compra de frigoríficos nos Estados Unidos (JBS), obras de estradas, portos e aeroportos em países da América Latina e da África (Odebrecht, OAS, Camargo Correa etc.), os quais não renderam empregos no Brasil e ainda estão com dívidas junto ao BNDES e ao tesouro nacional.
Foi quando começou o tiroteio generalizado para ver quem iria pagar pela crise. Só mesmo o séquito de Brasília não percebeu as consequências negativas de tais políticas governamentais para a queda do padrão de vida das pessoas e o aumento acelerado do descontentamento. No final de 2012 e início de 2013 já se percebia, nos grandes centros urbanos do país, os primeiros ensaios das grandes manifestações que ocorreram em junho de 2013 – quando, ficou claro e patente, que a política de conciliação promovida pelo lulismo estava com os dias contados, que a explosão de insatisfação revogava o monopólio do PT sobre as manifestações de rua e, mais do que isso, que o modelo adotado pelo lulismo gerou enorme frustração não apenas nas classes médias, mas também na juventude, no operariado e em segmentos populares.
Vale lembrar que nesse período, de 2011 a 2013, o ex-presidente estava empenhado em viagens pela América Latina e países da África, nos jatinhos da Odebrecht e Camargo Corrêa (os registros da Infraero, depoimentos de pilotos das aeronaves e de diretores das empreiteiras podem atestar todos os voos e destinos), fazendo lobby para obras financiadas pelo BNDES, enquanto recebia vultosas doações para o Instituto Lula e pagamentos para a empresa de palestras LILS, além de curtir merecido descanso no sítio de Atibaia.
Sobre a efervescência política e o quadro de crise, o governo Dilma tratou de enrolar o país com promessas evasivas e medidas jamais colocadas em prática, entre as quais a realização de suposto plebiscito para a reforma política. O PT, através de seus movimentos sociais, conseguiu conter parte da rebeldia. A esquerda não soube dar direção ao movimento das ruas, a grande imprensa criminalizou/fantasiou os Black Blocs e o governo Dilma retomou a frágil governabilidade com inúmeras concessões – ao empresariado (mais isenções fiscais), aos banqueiros (elevação dos juros), ao agronegócio (anistia e refinanciamento de dívidas) e aos políticos (benesses nas emendas de deputados e senadores) – até as eleições de 2014.
O lulismo tratou de caracterizar as manifestações de 2013 como “coisa da direita”, estimulada pela grande mídia e pelo “imperialismo”. É o que Lula afirma até hoje sobre as jornadas de 2013.
Dilema: O papel da esquerda era desconsiderar o grau de insatisfação da população, inclusive das classes médias, ou aprofundar a crítica ao lulismo e ao governo Dilma com ampliação e organização dos trabalhadores e dos movimentos sociais?
A eleição de 2014 foi, provavelmente, a mais suja do período pós-ditadura militar. Não só pela quantidade de dinheiro colocada nas campanhas dos principais candidatos, mas pelo baixo nível dos ataques pessoais nas redes sociais, a montagem de agências de mentiras e intrigas e a ausência de debate sobre os reais problemas do país. O que vigorou foi um jogo sórdido de armações sem precedentes. Os eleitores foram enganados em todos os sentidos, tanto no discurso da situação (Dilma negava qualquer problema econômico e social) como no discurso da oposição (Aécio negava qualquer medida restritiva contra projetos sociais). As campanhas mais honestas de Marina Silva, então no PSB, e de Luciana Genro, do PSOL, não chegaram ao segundo turno. Dilma foi eleita com apoio de apenas 38% do eleitorado, a maioria ficou na oposição, no voto em branco, no voto nulo e na abstenção.
A fraude foi consumada nas primeiras semanas após o segundo turno, quando a presidente reeleita interferiu no câmbio, aprovou os cortes de benefícios sociais e colocou no Ministério da Fazenda o vice-diretor do Bradesco, Joaquim Levy, conhecido economista neoliberal e defensor de medidas ortodoxas de austeridade. Ou seja, Dilma ganhou com discurso contrário ao de Aécio, mas logo depois das eleições assumiu o programa de Aécio, fortemente bombardeado pela esquerda no processo eleitoral. Em pouco tempo, no final de 2014 e primeiros meses de 2015, a base de sustentação de Dilma (38% do eleitorado) ficou reduzida a pó.
A situação dela se complicou ainda mais porque tentou assumir o controle da Câmara dos Deputados com candidato do PT contra a articulação do MDB, que tinha maior número de parlamentares e amplo apoio no leque partidário mais conservador, o qual, diga-se de passagem, foi eleito em aliança com o PT e com recursos financeiros captados ilicitamente nos governos do PT.
Vale lembrar que no processo eleitoral o PT deu muita força à Rede Record, da Igreja Universal, e a vários grupos evangélicos extremamente conservadores, como contraponto às correntes influenciadas pela Teologia da Libertação mais críticas e identificadas com os movimentos sociais e partidos de esquerda. Ou seja, o lulismo construiu a sua própria forca na traição aos eleitores, com a mudança radical de programa econômico e no racha com a articulação do aliado Eduardo Cunha, do MDB. Mais uma vez, vale lembrar, foi Lula quem impôs o nome de Michel Temer para compor a chapa com Dilma.
Todos eles, na comemoração eleitoral de 2014, estavam felizes com a continuidade de um esquema bem sucedido desde os idos do “mensalão”. Vale lembrar, também, que o bispo Edir Macedo foi o único “capo” da grande mídia a comparecer ao beija-mão de Dilma no dia 1º de janeiro de 2015. Parece fácil e cômodo dizer que as manifestações pelo impeachment eram coisa de “coxinhas” da classe média, da direita, fomentada pela TV Globo, pela FIESP e pelo imperialismo dos Estados Unidos.
Pode ter tudo isso mesmo, mas bem antes disso algo já estava errado não no campo conservador e de direita, mas especialmente na conduta política e ética do lulismo e no fracasso das políticas sociais precárias, no fim do projeto de conciliação e na incompetência política e econômica dos governos Dilma. Não é por acaso que em tais governos tenham crescido a direita e o conservadorismo, e que nesses governos tiveram destaques figuras como José Sarney, Edison Lobão, Renan Calheiros, Romero Jucá, Jader Barbalho, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima etc.
Dilema: O papel da esquerda era incorporar o discurso vitimista do lulismo contra o racha da aliança PT-PMDB ou denunciar o caráter fisiológico e conservador da aliança que governou o Brasil durante 13 anos?
Em meio ao desgaste e esgotamento do projeto de poder do lulismo, ganha protagonismo, em meados de 2014, as investigações da força-tarefa da Lava Jato, que, a partir de esquemas de sonegação e evasão de divisas, operados por doleiros, desvenda o esquema de propinas e superfaturamento de obras e serviços na Petrobras, onde três diretorias atuavam na captação de recursos ilícitos para políticos do PP, MDB e PT.
Dessa vez, ao contrário do que tinha ocorrido em operações anteriores em casos escabrosos de corrupção (Banestado – 2003; Satiagraha – 2008; Castelo de Areia – 2009), a nova força-tarefa (integrada pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Judiciário Federal, Receita Federal) teve o cuidado de dar cada passo nos limites dos novos recursos legais disponíveis e com ampla exposição na mídia, de maneira a evitar que tais ações fossem invalidadas ou arquivadas nas instâncias superiores.
O grande avanço em relação às operações anteriores é que uma lei de 2013, sancionada pela presidente Dilma, possibilitou a utilização de colaborações (delações) premiadas como forma de negociar benefícios aos criminosos confessos que revelassem os crimes de outros participantes nos esquemas de corrupção. Com tais instrumentos legais, a Operação Lava Jato conseguiu condenar mais de 100 envolvidos nos desvios de recursos públicos da Petrobras, entre os quais grandes empresários, lobistas, doleiros, altos funcionários e políticos de vários partidos.
O lulismo tratou de espalhar a versão de perseguição política ao governo Dilma e ao PT. Mais adiante ampliou a versão de perseguição ao Lula, tornado candidato do PT, e aos políticos em geral. Mas, na verdade, o maior número de condenados pela Lava Jato não é de políticos e, entre os políticos, o maior número de envolvidos nos processos não é do PT. O PT e Lula jamais deram respostas minimamente convincentes aos crimes denunciados. Trataram apenas de se colocarem como vítimas, ora da Polícia Federal, ora do Ministério Público, ora do juiz Sérgio Moro, ora do TRF-4, ora do STF, ora do “Partido da Justiça”, como se o desvio de recursos da Petrobras não tivesse tirado bilhões de reais do povo brasileiro, não tivesse sustentado campanhas milionárias de coligações partidárias e não tivesse abastecido os bolsos de inúmeras pessoas, inclusive de políticos do PT. Que a direita pratique corrupção é a praxe no Brasil, mas que o PT tenha se envolvido foi algo muito mais danoso ao processo político, na medida em que frustrou a esperança de milhões de trabalhadores e destruiu a credibilidade pública de vários segmentos da esquerda.
A Lava Jato, queiramos ou não, mudou o olhar de boa parte da sociedade brasileira sobre o modo de fazer política e as relações do capital privado com o Estado. A esquerda não pode desconhecer algo tão concreto apontado por pesquisa recente do Datafolha, de abril de 2018, na qual 84% dos entrevistados aprovam a continuidade da Lava Jato no combate à corrupção. O que fazer?
Dilema: O papel da esquerda é passar por vítima da Lava Jato, ignorar os desvios do lulismo, ou mobilizar e conscientizar os trabalhadores contra a corrupção dos empresários, banqueiros, latifundiários e das velhas oligarquias da política?
Em 2015, com as grandes manifestações contra o governo Dilma, com foco no impeachment da presidente reeleita, o PT conseguiu arrastar alguns setores da esquerda (partidos, movimentos sociais, entidades de classe etc.) na defesa do seu projeto contra o ataque de instituições da República e do conservadorismo de direita. No final do ano o lulismo sentiu o estrago provocado por seus próprios erros, em especial sobre a aliança com o MDB de Eduardo Cunha e de Michel Temer. O primeiro porque comandou o processo de impeachment na Câmara dos Deputados e o segundo porque traiu a coligação, a presidente Dilma, o PT e principalmente o lulismo, que havia colocado Michel Temer na linha da sucessão presidencial.
Ao sentir a barra pesada, o desastre acelerado em 2016 e 2017, o lulismo criou nova história para a sua própria trajetória:
1º) diante das investigações da Lava Jato sobre o ex-presidente, com vários processos em Curitiba, Brasília e São Paulo, adotou a figura do pré-candidato presidencial para fazer caravanas pelo Brasil e tentar blindá-lo de condenações por corrupção;
2º) diante do impeachment, apelou para partidos e movimentos de esquerda, que há muito tempo não tinham relações com o lulismo, em busca de unidade emergencial sob a alegação de que todos estavam ameaçados pelos “golpistas” e “fascistas”;
3º) diante da iminência de Lula se tornar inelegível, por causa da Lei da Ficha Limpa, e da própria prisão do ex-presidente, o lulismo tratou de sensibilizar a sua militância e outros setores da sociedade com foco nas eleições (Eleição sem Lula é fraude), na democracia (Direito de Lula ser candidato) e na liberdade (Lula livre), de maneira que os erros do lulismo, o fracassado governo Dilma, os escândalos da Petrobras, os processos e condenações por corrupção, caíssem rapidamente no esquecimento da população.
Com um batalhão de advogados e fortíssimo esquema de comunicação nas redes sociais, o lulismo tratou de atacar as ações e os personagens da Lava Jato, a grande imprensa, os integrantes das instituições do Estado (desde juízes e procuradores até ministros do STF) e ao mesmo tempo realizar atos e manifestações pelo país afora, principalmente com massas mobilizadas pelo MST e MTST. Tais ações visam principalmente desqualificar todas as forças políticas que se opõem ao lulismo, ao PT e às manobras de impunidade pelos crimes de corrupção; tratam de rotular e estigmatizar todo mundo como sendo “golpista” e “fascista”. Não é só a direita que critica o lulismo e o PT, mas também os liberais, os socialdemocratas, os anarquistas, os autonomistas, pessoas sem definição político-ideológica e muita gente da esquerda socialista e comunista.
Ao mesmo tempo em que consegue sensibilizar com discursos cada vez mais emocionais e messiânicos, o lulismo também estimula forte oposição ao PT e a seus novos e velhos aliados, contribui para a radicalização das posições e embaralha um processo eleitoral que poderia (poderia?) ter conteúdo renovador e promissor para a esquerda se não fosse a figura emblemática de Lula, que está preso, condenado, inelegível, mas ainda assim interfere no processo eleitoral não para liderar um projeto de Nação, mas para tentar salvar a própria pele; não para superar todo o estrago feito por seu aliado Michel Temer, mas para restaurar a velha ordem de alianças com as oligarquias políticas que participaram dos governos Lula e Dilma.
O que o lulismo propõe que não seja restabelecer a “harmoniosa conciliação” de antes da Lava Jato e da traição de Cunha e Temer?
Dilema: O papel da esquerda é reforçar o lulismo como salvação do Brasil ou retomar o debate de luta anticapitalista e de sociedade justa, igualitária, livre e democrática?
Depois do fracassado projeto de conciliação de classes, da explosão de insatisfação da população, do impeachment de Dilma, do envolvimento da cúpula do lulismo – junto com seus aliados da direita – nas bandalheiras da Petrobras, BNDES, CEF, fundos de pensão etc., era de se esperar que o PT fizesse um processo de autocrítica, avaliasse seus erros e desvios e promovesse uma renovação geral de seu programa e de seus quadros dirigentes. Nada disso foi feito. Ao contrário, subordinado ao lulismo, o PT insiste que foi vítima de golpe, é vítima de perseguição, é vítima do fascismo – e se contrapõe a tudo isso com o martírio em praça pública de sua maior liderança, que não seria mais um ser humano, mas um mito no patamar de Tiradentes, Mandela, Gandhi, Luther King e Jesus Cristo.
A derradeira exortação de messianismo ativa o emocional das massas, clama pelo fanatismo, abandona em definitivo qualquer expectativa de projeto político construído coletivamente com a elevação das consciências, análise crítica e dialética, baseada na correlação de forças e na conjuntura; mas, ao contrário, o discurso do lulismo se atém na profissão de fé contra todas as evidências da realidade. Como tal fanfarronice mesclada na mística religiosa e dosada pelo egocentrismo pode contribuir para a caminhada da esquerda? O que pretende? Que a salvação virá pelo sacrifício humano transposto à condição divina? O que sobra de reflexão e de proposta política a esses setores da esquerda que ficaram atolados nos escombros do lulismo? Como sair da arapuca para retomar ao Projeto de Nação? Com quais princípios e valores a esquerda se apresenta para a sociedade brasileira?
A essa altura dos acontecimentos, com todas as informações disponíveis, parece sem sentido que algum cidadão ou cidadã ainda consiga aceitar que o ex-presidente Lula e seu grupo dentro do PT não tenham responsabilidades sobre os inúmeros erros políticos e gravíssimos desvios éticos praticados pelo lulismo. Querer inverter os fatos e esconder a verdade é manobra que atenta contra a inteligência dos brasileiros.
Ninguém com alguma dose de sensatez, conhecimento e consciência aceita mais o cinismo desenfreado e egocêntrico do lulismo, que jogou o PT numa arapuca desastrosa (vide eleições de 2016), tenta imobilizar o jogo político-eleitoral de 2018 e ainda quer arrastar toda a esquerda – movimentos sociais e partidos – para a marcha delirante da autodestruição. O que sobrará além da ladainha dos beatos?
Dilema: o papel da esquerda é fazer coro ao lulismo durante o processo eleitoral ou disputar as eleições com propostas próprias e independentes, expondo visão crítica sobre o lulismo e a direita?
O lulismo entregou para a direita, seguidamente, várias bandeiras que já foram empunhadas pela esquerda, entre as quais a bandeira da ética na política, a bandeira do combate à corrupção e a bandeira da luta contra a impunidade – em particular a impunidade aos ricos e poderosos praticantes dos crimes do colarinho branco, como a sonegação fiscal, evasão de divisas, desvio do dinheiro público e as várias formas da corrupção. E como o lulismo deixou de atuar nessas questões, transferiu para o conjunto da esquerda a visão equivocada de que lutar por ética, contra a corrupção e a impunidade é coisa da direita, de “coxinhas” e da elite. Por isso mesmo tanta gente comprometida politicamente com a esquerda não se manifesta contra as bandalheiras comprovadamente praticadas pelo lulismo. Temem ser chamados de “golpistas”.
A verdade é que o lulismo em nada contribui para o avanço da esquerda. Ao contrário, só atrapalha. A esquerda patina há muitos anos por obra da contaminação do lulismo, que empata a luta, impede o livre debate e anula o surgimento de novos protagonistas e novas lideranças. Não se trata de uma questão de fé, mas de racionalidade e consciência das pessoas. Em entrevista recente para a Folha de S. Paulo, em 02.05.2018, o pensador de esquerda Noam Chomsky voltou a lembrar o que nos incomoda há vários anos. Disse ele: “a esquerda deveria fazer uma autocrítica, pensar nas oportunidades que foram desperdiçadas porque sucumbiu à corrupção”.
Enquanto isso não acontece, vale recordar o que não pode ser esquecido sobre o lulismo:
1) Desde a campanha eleitoral de 2002, e nas disputas municipais e estaduais, o lulismo sempre optou em alianças com a direita e pelo isolamento da esquerda.
2) O lulismo combateu e expulsou as correntes de esquerda do PT, além de ter atuado para enfraquecer os movimentos sociais e o sindicalismo combativo em seus governos.
3) Os governos Lula e Dilma abandonaram os programas de reforma agrária e fortaleceram muito mais o agronegócio do que a agricultura familiar.
4) Os governos Lula e Dilma não demarcaram as reservas dos povos indígenas e deixaram de regularizar milhares de áreas dos quilombolas.
5) Os governos Lula e Dilma aprovaram inúmeras obras altamente danosas ao meio ambiente, inclusive as usinas de Belo Monte e no rio Madeira.
6) Os governos Lula e Dilma mantiveram as taxas de juros sempre acima de 7,5% e cortaram verbas sociais para pagamento da dívida pública aos banqueiros e rentistas.
7) Os governos Lula e Dilma promoveram ampla “desoneração” (isenção de impostos) dos grandes grupos empresariais com enorme desfalque aos cofres públicos.
8) Os governos Lula e Dilma fizeram reforma da previdência danosa aos trabalhadores e cortaram benefícios sociais (auxílio saúde, salário desemprego etc.) dos mais pobres.
9) Os governos Lula e Dilma não reajustaram no mesmo nível da inflação as faixas de pagamento do imposto de renda, o que retirou recursos dos trabalhadores e dos assalariados em geral.
10) Os governos Lula e Dilma usaram bilhões de recursos públicos do BNDES para financiar obras em outros países, que favoreceram as grandes empreiteiras e deixaram de gerar empregos no Brasil.
Tudo isso é verdade.
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A autodestruição da esquerda contaminada pelo lulismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU