07 Outubro 2020
"São Paulo nunca foi 'de esquerda' e nem as suas zonas periféricas. Há uma ideia jactanciosa e equivocada de que o PT é majoritário na periferia", escreve Lincoln Secco, professor do Departamento de História da USP e autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 06-10-2020.
No Brasil houve cidades que tiveram a fama de “vermelhas”, fosse pela militância comunista a partir dos anos 1930 ou por sucessivas vitórias eleitorais da esquerda mais recentes. Porto Alegre foi vista assim nos anos 1990 por causa de quatro vitórias consecutivas do PT.
São Paulo nunca foi “de esquerda” e nem as suas zonas periféricas. Há uma ideia jactanciosa e equivocada de que o PT é majoritário na periferia. Não é e nunca foi. Nos anos 1950, a esquerda atingia apenas o operariado organizado que crescia com a industrialização. Mas assim como o crescimento fabril jamais se tornou preponderante, a classe operária também foi minoritária. A direita popular esteve solidamente enraizada na cidade desde os anos 1940. Ela neutralizou tanto a esquerda (PTB, depois PT) quanto a direita moralista (UDN, depois PSDB).
A constituição de uma rede petista em São Paulo foi trabalhosa e quem nasceu na periferia paulistana e militou no PT nos anos 1980 sabe o quanto era difícil para um núcleo de base dialogar com o seu entorno social. Havia ajuda de pessoas que vinham dos bairros de classe média, em geral de tendências mais à esquerda. Ao lado da igreja progressista, elas desempenharam um papel importante porque ampliavam nossos horizontes intelectuais.
Mas quem habitava os bairros afastados da “cidade” (como chamávamos o centro) e conversava diariamente com os vizinhos e colegas de trabalho e escola, sentia o isolamento social do PT. Éramos filhos de uma escola pública que já se degradava e tínhamos limitações educacionais para responder às críticas que a mídia propagava. Os mais velhos eram operários, empregadas domésticas, desempregados.
Também não contávamos com os sindicatos, como no ABC. O sindicalismo da capital resistiu à CUT; manteve-se sob hegemonia dos pelegos; adotou o sindicalismo de resultados e apoiou candidaturas de direita. Apesar disso, o PT militante conseguiu parte do voto operário e das demais classes subalternas.
O PT governou a maior cidade do país três vezes, o que parece resultado de uma política de acúmulo de forças, como se dizia no jargão interno dos anos 1980. Mas a partir de 1988 só houve um aumento da sua votação na eleição de 2000. Nas três décadas predominou uma inclinação para baixo.
Em 1985 a direita popular venceu na última campanha de Janio Quadros. Embora se dissesse na época que seu reduto era a zona norte e o de Maluf a zona leste, eles compunham uma mesma corrente baseada na exploração da insegurança e promessas de obras viárias. A primeira vitória da esquerda em 1988 com apenas 29% dos votos (36% dos válidos) aconteceu porque o PT cresceu em relação a 1985, mas também porque a eleição foi num turno único e a direita popular se dividiu entre o malufismo e o quercismo (Leiva era o candidato), apesar do passado progressista de Quercia. Na eleição seguinte, a votação petista caiu e a direita unificou-se e venceu. O quadro se repetiu em 1996. Era a década neoliberal e Maluf ainda incorporou a saúde e habitação no seu discurso.
Em 2000 houve a virada. A tempestade perfeita abrangia o aumento da preferência nacional dos mais pobres pelo PT; a crise do segundo governo do PSDB; e o desastre da gestão Celso Pitta. A direita popular dividiu os votos com a tucana e o PT ganhou no primeiro turno com uma variação significativa em relação ao seu “tamanho eleitoral histórico”. Cabe ressaltar que Maluf praticamente estava empatado com o PSDB em torno de 17% e dividiu os votos com Romeu Tuma. No segundo turno, o PT venceu o malufismo facilmente, o que indicava o eclipse da direita popular tradicional. Ela não conseguia mais amealhar os votos “do centro direita” no segundo turno.
A partir dali, a direita tucana assumiu a representação de todo o campo conservador. E isso se manteve até 2016. Nas eleições de 2004 e 2008 o PT perdeu votos, mas garantiu a segunda posição.
Em 2012 o PT continuou a perder votos, mas o insólito foi ter ganho no segundo turno contra a direita tucana. Em 2016 o PT confirmou a tendência histórica de queda, obteve apenas 16,7% dos votos válidos e decaiu a um patamar menor do que o de 1985.
Votação do PT em primeiro turno. (São Paulo, % dos votos válidos). (Fonte: Seade)
Os mapas das votações petistas revelam que ele tem presença nas áreas mais distantes do centro expandido, embora seu avanço nos setores de menor renda aparentemente tenha se iniciado na década de 2000. É um truísmo dizer que São Paulo é uma cidade sem permanências, com traçados desconcertantes e muita mobilidade espacial. Há pobres em todos os bairros, favelas ombreiam condomínios de luxo e empresários habitam a periferia.
A força do PT, de toda maneira, é um bom ponto de partida para qualquer campanha [1]. Mas isso sempre foi insuficiente para uma vitória, salvo em circunstâncias excepcionais. Tais circunstâncias foram mais nacionais do que locais. Em 2012, por exemplo, o PT estava no auge de sua preferência nacional. Em 2016 no ponto mais baixo.
Isso não diminui a importância das peculiaridades locais. Na cidade de São Paulo, as camadas médias têm um peso maior do que nas outras regiões metropolitanas do país. Ainda que o conceito leve a uma infindável discussão, se considerarmos apenas a estrutura ocupacional e a renda é bastante provável que as classes populares sejam mais numerosas do que as camadas médias, mas a diferença não seja muito grande [2]. Independentemente do desacordo conceitual, é visível o peso da classe média. Também é notável a força da direita nas classes populares. Basta ver as votações malufistas nos anos 1990.
Um partido jamais vence sem o apoio das duas classes, ainda que maior em uma do que em outra. Além disso, as camadas médias progressistas têm uma influência cultural e política maior. Não significa que sejam melhores (em geral são instáveis), mas que têm à disposição mais recursos materiais e tempo para fazer política. Aqui retorno à importância que elas tiveram ajudando a militância dos bairros populares nos anos 1980.
Em 2020 os três partidos de esquerda mais importantes, PT, PC do B e Psol, apresentaram candidatos. Projetos distintos e a legislação eleitoral explicam isso.
O PT não tem uma candidatura, até agora, reconhecida na periferia; além disso ela é rejeitada pelos setores médios progressistas que aderiram ao Psol. O PT tem 23% de preferência na cidade, segundo o Ibope, e este parece ser o teto que a esquerda paulistana pode alcançar. Tudo o mais constante, teríamos uma fragmentação da esquerda e um segundo turno entre o atual prefeito e algum candidato da direita popular. Afinal, a esquerda disputa o mesmo eleitorado. Para ganhar, o PT precisa crescer na periferia e, depois, ampliar na classe média. O Psol necessita fazer o contrário e ir em direção aos pobres [3]. Em 1988 Luiza Erundina teve 27,2% dos votos das pessoas de alta renda; 27,8% das camadas médias; e 34% das classes populares [4]. Interessante que o avanço do PT no eleitorado de menor renda e escolaridade é posterior a 1996.
A incógnita de 2020 é de novo a direita popular. Embora seus representantes sejam frágeis, dessa vez ela pode voltar a ser uma alternativa eleitoral permanente a depender de três questões:
1 – Ao contrário do passado, ela tem uma força social nacional. O ademarismo e o malufismo jamais alcançaram o comando do país. Jânio venceu, mas não permaneceu. O bolsonarismo ainda não alcançou o poder na cidade e no estado. Poderá ele consolidar uma representação própria em São Paulo?
2 – A força das igrejas evangélicas é inegável, mas o seu compromisso com a direita é orgânico ou eventual? Os pastores sabem (ou deveriam saber) que houve inúmeros casos de ressurreição na Bíblia. Mas como Lázaro, não é fácil ressuscitar depois de quatro eleições.
3 – Por fim, aquela rede periférica que a esquerda ainda tem, poderá ser reativada para além de uma restrita faixa geracional que aderiu ao PT nos anos 1980?
Não faço ideia se falta capacidade no uso das redes sociais; se não há uma mensagem para a juventude; se a esquerda não sabe lidar com as mudanças na religiosidade e na forma de trabalho etc. Também não sabemos o quanto as redes sociais afetaram a decisão do eleitor e, portanto, as pesquisas. Como montar estratégia de campanha se uma faixa significativa do eleitorado passar a decidir o voto nas últimas 24 horas? Quais os impactos da quarentena na eficácia das pesquisas? Essas dúvidas afetam também a direita.
Ainda assim, não será a primeira vez que a esquerda confrontará alguns desses problemas. Em 2012 o setor evangélico já era forte e o PT venceu; São Paulo já teve sólida presença da classe operária, mas a informalidade é algo de longa duração na sua história; mesmo as bruscas alterações de humor eleitoral já existiam: em 1988, 25% dos eleitores do PT se decidiram no dia da votação, segundo pesquisa do Datafolha. Evidentemente, naquela época o instrumento foi a panfletagem de boca de urna e, hoje, talvez o whatsapp. O meio afeta o conteúdo político, a organização e a militância, mas não sei se justifica o descuido com formação teórica e ausência de uma estratégia de longo prazo. Não me parece que a extrema direita seja resultado só de uma tática casual. Ela tem poder econômico, mas isso é uma pré condição da democracia burguesa.
Para o PT, partido ainda majoritário na esquerda brasileira, resta transferir o apoio de Lula e do PT a Jilmar Tatto para que ele seja reconhecido. Circunstâncias inesperadas podem surgir, mas só pode aproveitá-las quem estiver bem posicionado para isso.
Pode ser que o PT confirme sua queda histórica desde 2000. Ou que cresça na reta final das eleições mais uma vez, pois parte da queda de 2016 teve a ver com o golpe e a presença num governo impopular; desde então, a preferência nacional pelo PT subiu e não seria impossível o candidato petista chegar à faixa dos 20%. Essa é mais uma incógnita dessas eleições.
Se o Psol posicionar-se em torno dos 10%, como aconteceu com o PSB em 2000 (Luiza Erundina era a candidata), é possível o PT chegar aos 20% ou teremos uma fragmentação do voto de esquerda [5]? Naquela altura, “de fato, o PSB conseguiu roubar eleitores do PT, na realidade, a sua única fonte de votos” [6], mas o PT cresceu sobre pequenos partidos e eleitores de todos os grupos sociais. Os socialistas estavam à direita; o PT apresentou chapa pura; o PSB tinha como vice um empresário do PPS; Erundina não teve a adesão das elites culturais e intelectuais petistas como Guilherme Boulos parece ter; e, por fim, não havia um processo de fascistização em curso.
A batalha contra o fascismo pode ser mais longa do que desejamos.
[1] Há muitos outros fatores em jogo não considerados aqui, como abstenções, distribuição regional e sócio econômica dos votos, os governos federais petistas etc.
[2] Um exemplo aqui disponível aqui.
[3] É um dado aritmético. E político também, por mais incômodo que seja. Debates sobre alianças, fusões, frente ampla como a do Uruguai não estão no horizonte imediato.
[4] Figueiredo, A. F. Eleições e territórios. USP, 2013.
[5] Cabe lembrar que estamos discutindo voto popular e não organização popular, algo que o PT vem perdendo, mas o restante da esquerda ainda não tem.
[6] Limongi, Fernando e Mesquita, Lara. “Estratégia partidária e preferência dos eleitores. As eleições municipais em São Paulo entre 1985 e 2004”, Novos estudos – CEBRAP, n. 81 São Paulo Jul. 2008.
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Ressurreição da direita popular? Artigo de Lincoln Secco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU