07 Outubro 2015
"Na verdade, depois de perder o poder de que desfrutava na República Velha, a elite paulista se tornou um poder moderador no país. Ela se crê um corpo separado da sociedade, dotado de virtudes únicas e com um direito especial de intervir na vida política quando sente contrariados seus interesses, os quais naturalmente, se confundem com os da nação", escreve Lincoln Secco, professor, em artigo publicado por Folha de S. Paulo e reproduzido por Viomundo, 05-10-2015.
Eis o artigo.
Desde que os escândalos de 2005 jogaram o governo Lula no canto do ringue, cresceu infrene a mobilização dos setores médios contra ele. Mas, apesar do desgosto com a aproximação dos mais pobres aos seus espaços de sociabilidade exclusiva, protestos como o “Cansei” se esvaziaram rapidamente.
Hoje, entretanto, é nítido que o portão do zoológico se abriu, e a subcultura da extrema direita levou a agressões de todo tipo. O líder do MST não pode ir ao aeroporto, e mesmo policiais militares se sentem à vontade para intimidar professores de uma escola de Sorocaba por discutirem publicamente a obra “Vigiar e Punir”, de Foucault. Há ainda os que conseguiram associar a política de mobilidade urbana da Prefeitura de São Paulo a Cuba. Embora seja risível que certas pessoas confundam “ciclista” com “comunista”, não deixa de ser preocupante quando o ovo da serpente se insinua.
É verdade que as manifestações desse tipo são de grupos esdrúxulos e tão pequenos quanto eram os separatistas paulistas em 1932. Na Guerra Civil contra Getúlio Vargas, a elite paulista queria retomar a liderança do país, e não se separar dele. Mas, para mobilizar as classes médias, ela foi obrigada soltar as “feras” e, depois, não havia como recolocá-las na jaula.
Seria, no entanto, muito cômodo achar que o extremismo de direita não compartilha um terreno comum com o liberalismo moderado. Em 1938 lá estavam os próceres do constitucionalismo paulista envolvidos na intentona integralista contra Vargas. Em 1964 participaram das marchas contra João Goulart e, hoje, não enrubescem nas manifestações de ódio contra Dilma Rousseff.
Na verdade, depois de perder o poder de que desfrutava na República Velha, a elite paulista se tornou um poder moderador no país. Ela se crê um corpo separado da sociedade, dotado de virtudes únicas e com um direito especial de intervir na vida política quando sente contrariados seus interesses, os quais naturalmente, se confundem com os da nação.
A liderança paulista se cristalizara num território até 1930, mas como a nova centralização política do país não permitia mais a sua direção, o Exército ocupou o seu lugar, pois era a única instituição que operava em escala nacional. Não, contudo, sem se aliar à elite paulista, dotada de indispensável poder econômico e ideológico.
A dominação hoje não se assenta imediatamente nas Forças Armadas, e se erigiu uma sociedade civil muito mais complexa. O desenvolvimento paulista se interiorizou e integrou as fímbrias de outras regiões. Uma enorme classe média do mundo corporativo, baseada em nova tecnologia de difusão de seus pensamentos mais recônditos, tornou-se muito mais influente do que aquela que saiu às ruas em 1964.
Mesmo a elite paulista que nunca obtivera voto adquiriu corpo social. Até anos recentes, ela fora dispensável às classes econômicas fundamentais por não conseguir se livrar da concorrência da “direita popular” herdeira do ademarismo, do janismo e do malufismo. Quando o ademarismo apareceu na cena política, a elite paulista tradicional já vivia o exílio interno da alienação –decerto financiada pelo crescimento econômico.
A participação de São Paulo no PIB nacional teve a sua maior taxa de crescimento nos anos 1940. Enquanto as fábricas Matarazzo não paravam, o conde oferecia recepções em que quatrocentões decadentes e seus poetas de versos domesticados furtavam a prataria de sua mansão da avenida Paulista. O retrato daquelas festas registrado por Joel Silveira no livro “Grã-Finos em São Paulo” mostrou como a velha classe engoliu o preconceito contra o “parvenu” e casou seus filhos em “famiglia”.
PSDB
Quem finalmente deu uma base eleitoral à velha direita constitucionalista e liberal foi o PSDB. Mas ele demorou a se definir num campo político. Antes de ser uma alternativa viável, a sua cúpula acalentou a autoimagem de centro-esquerda, apesar de ter surgido de uma mera disputa de espaço no PMDB paulista. Uma vez no poder, o PSDB adquiriu duas características que implantaram sua força numa região ao mesmo tempo em que exibiram seus limites nacionais. Tornou-se um partido de classe (média) e estreitamente ideológico (liberal conservador).
Curiosamente, foi inverso o movimento do seu antípoda paulista, o PT. Embora ambos tenham criticado o legado de Getúlio Vargas por distintas razões, este ampliou sua base social inicialmente restrita aos trabalhadores organizados em sindicatos e se tornou mais plural do ponto de vista ideológico. Hoje o novo sindicalismo é só uma fotografia no gabinete de algum ministério. Já a identidade tucana conseguiu entrincheirar o partido no interior paulista e lhe garantiu o poder estadual desde 1995.
No entanto, aquelas duas características impediram-no de conquistar a Presidência porque, como na Era Vargas, o discurso liberal é incapaz de responder à questão social nas áreas com maior índice de pobreza material. Foram quatro derrotas consecutivas nas eleições presidenciais desde 2002.
“Eppur si muove”. Apesar das derrotas, a demonstração de força oposicionista nas eleições de 2014 revela que também o PT chegou a um impasse. A razão disso está em dois processos conjugados. O ciclo econômico recessivo (fenômeno conjuntural) e o modelo petista de conciliação de classes (fenômeno estrutural) não permitiram mais atender os de baixo e os de cima simultaneamente.
Dessa forma chegamos a uma polarização que, por mais teatral que seja, não pode mais ser resolvida neste sistema político. Trata-se do duplo impasse de um grupo que não conquista a maioria eleitoral e outro que não pode mais sustentar sua aliança de classes.
Junho
Os protestos de junho de 2013 já antecipavam essa crise. Tanto a esquerda autêntica representada pelo Movimento Passe Livre quanto os conservadores fragmentados com suas demandas dispersas não tinham referência nos partidos. O fato novo de 2015 é que uma novíssima direita paulista sequestrou a técnica de junho e mimetizou até a sigla do MPL, substituindo-a por MBL. Assim, estabeleceu uma cadeia significante de continuidade entre um movimento que demandava mais igualdade e outro que visa o contrário.
É certo que houve um junho em cada região do Brasil. Porém os mapas de influência dos centros urbanos do IBGE confirmam que a Grande São Paulo continua com o maior raio de incidência política, cultural e empresarial na América do Sul. Os valores “paulistas” há muito ultrapassaram suas fronteiras oficiais. O seu espaço não se limita mais ao seu território oficial.
Embora alijada do poder central, a elite política de São Paulo reproduz valores que são hegemônicos na maior parte do país. Ela se apresenta dotada de mentalidade “técnica” porque sua “política” não necessita ser elaborada no partido, mas nas instituições privadas que reforçam sua hegemonia.
Mesmo envolta em escândalos colossais e monopolizando o poder de seu Estado por tanto tempo, a elite “paulista” combate a corrupção e o aparelhamento do Estado. Dessa maneira, simula entrincheirar-se no discurso administrativo, quando na verdade acua seus inimigos num republicanismo que ela mesma jamais seguiu.
Mas, se os valores “paulistas” agora são hegemônicos, significa que eles vão se traduzir em vitória eleitoral? Ao contrário do que parece, o zoológico político em que vivemos não prenuncia isso.
Em primeiro lugar a sua direção política tem um calcanhar de aquiles, como já vimos. A difusão de seus valores não depende do partido. Em segundo lugar, a frustração de sua base eleitoral, que assistiu a seguidas derrotas, engendrou uma radicalização que transborda o leito da política partidária. E, por fim, a destruição de um dos pilares do atual sistema político (o PT) tende a desmoralizá-lo por completo.
Dessa maneira, o seu triunfo ideológico anuncia a sua derrocada. Para derrotar o seu adversário, a direita moderna o interdita. Ao fazê-lo, começa a perder a “direção moral” que exerce na sociedade civil. Em palavras simples: se o PT perde sua função de “eletrodo negativo” da dominação política, ela entra em curto-circuito.
Isso talvez explique a divisão que existe entre a geração mais paciente do PSDB paulista e sua afoita bancada na Câmara dos Deputados. Uns falam o que não desejam –o impeachment– e outros acreditam no que não podem realizar, já que a iniciativa depende exclusivamente do PMDB.
No fundo, os mais experimentados sabem que essa polarização é artificial e eles só querem derrubar o governo se houver acordo de como repartir o butim. Recomenda-se, portanto, que qualquer um que vença pelo voto em 2018 ou por um golpe antes disso seja bem vigiado.
Quando o conde Matarazzo ofereceu a maior festa do Brasil para casar sua filha com um paulista “de verdade”, não cometeu o erro de outras recepções. Contratou cem seguranças bem-vestidos. Se um convidado se aproximava de um objeto de valor, sentia um calor incômodo nas costas e se indignava com a desconfiança. Daquela vez, nada foi roubado, e cada um saiu com uma caneta-tinteiro e um broche de lembrança.
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Lincoln Secco: Se o PT perder sua função de “polo negativo”, a direita entra em curto-circuito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU