O 7º Congresso do PT, que será realizado nos dias 22, 23 e 24 de novembro de 2019, não será um momento para a refundação do partido, diz Valter Pomar, integrante da tendência petista Articulação de Esquerda, à IHU On-Line. “Há várias maneiras de entender o termo ‘refundação’. Mas o termo dá margem a interpretações equivocadas. A principal delas é a ilusão de que haverá uma solução mágica para os problemas do PT e da esquerda brasileira. Solução que viria se houvesse a tal autoproclamada refundação”, pontua. Segundo Pomar, “os problemas do PT são reais”, mas “o caminho para resolver estes problemas não é mágico”, porque “precisamos trocar a roda de um carro em movimento, fazer estes debates todos ‘a quente’, enquanto sofremos forte ataque por parte da extrema direita”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pomar faz uma análise do partido após as eleições e comenta os desafios para o futuro. Na avaliação dele, “caberia a estas tendências ter papel protagonista na elaboração de respostas a cada um dos dilemas estratégicos citados anteriormente”. Mas na prática, menciona, “pelo menos até agora, isso não aconteceu, por diversas razões. Entre as quais uma muito simples: as tendências atualmente existentes no Partido foram constituídas ao longo de um período histórico que está se encerrando. Logo, todas estão sendo obrigadas a debater a nova situação e a formular novas respostas. E ao fazer isso, todas assistem brotar divergências internas, maiores ou menores, que podem levar a novas sínteses, a dissidências, à formação de novas tendências, ao desaparecimento das atualmente existentes etc.” E conclui: “Espero que o Partido aprofunde as formulações que começaram a ser desenvolvidas no 6º Congresso, acerca do programa e da estratégia; espero que aprove um novo padrão de organização e de funcionamento; e que consolide a tática que estamos adotando hoje, na perspectiva de derrotar o governo Bolsonaro”.
Valter Pomar (Foto: 180 Graus)
Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes, Lazer e Turismo da Prefeitura Municipal de Campinas de 2001 a 2004. É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC – UFABC e dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores - PT.
IHU On-Line - Pode nos dar um panorama da situação do PT hoje, após as eleições? Quais são as principais divergências entre as diferentes tendências do partido, como elas estão se articulando e que linhas gerais estão defendendo?
Valter Pomar - Para entender bem a situação do PT, é preciso levar em conta a situação do Brasil. O golpe de 2016, a condenação e prisão de Lula, mais a vitória de Bolsonaro, indicam que a classe dominante brasileira mudou de estratégia. Até o segundo turno das eleições presidenciais de 2014, a classe dominante aceitava que a esquerda pudesse disputar eleições, vencer e inclusive governar. A partir de então, não aceita mais. A mudança de estratégia por parte da classe dominante impõe ao conjunto da esquerda brasileira a necessidade de construir outra orientação política de longo prazo. Afinal, não é razoável acreditar que vamos derrotar o governo Bolsonaro de forma semelhante à que derrotamos Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso. Tampouco é razoável acreditar que, se conseguirmos chegar de novo ao governo federal, será recomendável repetir as mesmas fórmulas programáticas e alianças.
Toda a esquerda brasileira se vê chamada, portanto, a construir uma nova estratégia. Isto implica em tomar posição sobre diversos temas, entre os quais: o novo cenário internacional e a situação do capitalismo; a conjuntura regional; a herança dos governos Lula e Dilma; as causas e as implicações estratégicas de nossas derrotas entre 2016 e 2018; como reconstruir nossa influência junto às classes trabalhadoras, o que inclui discutir a maneira como se organizam e atuam as organizações populares, mas também discutir como a direita está operando; nossa tática frente ao governo Bolsonaro; nossa estratégia frente ao regime que se instalou no país em seguida ao tríplice golpe. E, claro, discutir como se organiza e funciona o próprio PT.
No mundo ideal, são debates complexos. No mundo real, é ainda mais difícil, pois precisamos trocar a roda de um carro em movimento, fazer estes debates todos “a quente”, enquanto sofremos forte ataque por parte da extrema direita, que opera por meios “legais” e ilegais para criminalizar o partido e cassar nossa legenda, nos colocar na ilegalidade e nos empurrar para a clandestinidade. E também num momento em que experimentamos forte — e, é bom que se diga, legítima — concorrência por parte de outras organizações que se opuseram ao golpe de 2016, que se opuseram à condenação, prisão e interdição de Lula, que podem até ter apoiado Fernando Haddad em algum momento, mas que não aceitam ou não preferem que o Partido dos Trabalhadores continue sendo força hegemônica na esquerda brasileira.
Para complicar, a situação interna do PT é muito difícil. A começar pelo seguinte: desde 1980, a luta organizada das classes trabalhadoras vem jogando um papel decisivo na definição da orientação estratégica e tática do PT. Num certo sentido, funcionamos mais como um “partido de retaguarda” do que como um “partido de vanguarda”. Pois bem: pelo menos enquanto se mantiverem os níveis atuais de mobilização e luta, as classes trabalhadoras influenciarão menos os rumos do Partido. Outros fatores tenderão a jogar maior peso.
Outro aspecto do problema é que, desde 1989, as candidaturas de Lula ajudaram a organizar o pensamento e a prática de amplos setores do PT. Com Lula preso, Dilma e Haddad não cumprem a mesma função. Até porque a liderança de Lula não foi construída somente nem principalmente nos processos eleitorais. Ademais, muitas incertezas pairam sobre 2022.
Desde 2003, nossa presença no governo federal também ajudou a organizar o pensamento e a prática de amplos setores do PT. Hoje, não estamos mais na presidência e nossa presença em prefeituras, legislativos e à frente de alguns governos estaduais não cumpre a mesma função. Aliás, se depender da política defendida por vários governadores, o PT acabará empurrado para a “reserva”. Não custa lembrar donde veio parte da simpatia pelo chamado plano B nas eleições presidenciais de 2018.
Finalmente, há as tendências. Desde 1987, o PT reconhece o direito dos militantes se organizarem em tendências, para influenciar de maneira organizada os rumos do Partido. Evidentemente, a maior parte dos filiados ao PT não pertence organicamente a nenhuma tendência. Mas a maioria dos dirigentes partidários, especialmente em âmbito nacional, milita em alguma tendência. No atual Diretório Nacional do PT há mais de 90 dirigentes, quase todos integrando alguma das seguintes tendências: O Trabalho, Esquerda Popular Socialista, Militância Socialista, Resistência Socialista, Democracia Socialista, Avante, Movimento PT, Construindo um Novo Brasil, Novo Rumo e Articulação de Esquerda.
Em tese, caberia a essas tendências ter papel protagonista na elaboração de respostas a cada um dos dilemas estratégicos citados anteriormente. Na prática, pelo menos até agora, isso não aconteceu, por diversas razões. Entre as quais uma muito simples: as tendências atualmente existentes no Partido foram constituídas ao longo de um período histórico que está se encerrando. Logo, todas estão sendo obrigadas a debater a nova situação e a formular novas respostas. E, ao fazer isso, todas assistem brotar divergências internas, maiores ou menores, que podem levar a novas sínteses, a dissidências, à formação de novas tendências, ao desaparecimento das atualmente existentes etc.
De toda forma, o Diretório Nacional do PT, reunido no dia 23 de março de 2019, convocou o 7º Congresso do PT. A eleição das delegações acontecerá no dia 8 de setembro de 2019. Portanto, espera-se que neste espaço de tempo, cada uma das tendências petistas formule e apresente um ponto de vista articulado sobre o conjunto das questões programáticas, estratégicas, táticas e organizativas que estão em debate.
IHU On-Line - Que influência e papel Lula ainda exerce no partido? A figura de Lula ainda está garantindo a unidade do partido ou depois da prisão do ex-presidente isso mudou?
Valter Pomar - Lula exerce imensa influência. E continuará a exercer influência, por muito tempo. Mas não considero que Lula “pessoa física” tenha sido em algum momento o “fiador”, quem garante em última instância a unidade do Partido. Acredito que o principal fator que garantiu a unidade do Partido, até hoje, não foi a pessoa de Lula, mas sim o apoio que o Partido possui na classe trabalhadora e os ataques que recebe da classe dominante.
Ao converter o PT em seu inimigo principal, a extrema direita reconhece o óbvio: a força do Partido. Seguimos sendo o principal partido de esquerda no Brasil, temos um legado impossível de apagar, somos referência nacional para a maior parte dos militantes, simpatizantes e eleitores orientados pela busca da igualdade. As organizações concorrentes, ao menos no momento, não dispõem de força para nos superar pela esquerda. E as bases do Partido têm conseguido, pelo menos até agora, suprir com disposição de luta, persistência e resiliência, as debilidades de nossas direções. Enquanto estes fatores persistirem, o PT continuará unido, apesar das divergências existentes no seu interior.
Evidente que Lula enquanto “pessoa jurídica” faz parte dos fatores que contribuem para nossa influência junto à classe trabalhadora. Também é evidente que Lula, enquanto “pessoa física”, é um dos importantes protagonistas do nosso debate interno.
A depender das conclusões deste debate interno, o PT pode aprovar políticas que enfraqueçam sua influência junto à classe trabalhadora e facilitem os ataques da direita contra nós. Foi isso que ocorreu, para dar um exemplo, no Congresso que o PT realizou em Salvador, em 2015, quando 55% da plenária rejeitou uma resolução que pedia mudança imediata na política do governo Dilma.
Se o Partido tivesse aprovado aquela resolução e se o governo tivesse feito a coisa do modo certo, talvez tivéssemos mantido mais apoio na classe trabalhadora, talvez tivesse havido maior resistência ao golpe, talvez a história tivesse sido outra.
Trazendo para a situação atual, nossa capacidade de reconquistar o apoio perdido na classe trabalhadora e nossa capacidade de enfrentar o regime de exceção & tutela militar dependerão muito do que o Partido decida no 7º Congresso.
Espero que Lula contribua muito neste debate, mas não acho correto atribuir a ele um papel maior do que ele poderia ter, mesmo que estivesse militando livremente entre nós.
IHU On-Line - Há possibilidades de dissidências dentro do partido hoje? Sim ou não e por quais razões?
Valter Pomar - Olha, todo partido está sujeito a sofrer dissidências. Parte importante dos que hoje militam no PCO, no PSTU, no PSOL e em outras organizações militou antes no Partido dos Trabalhadores. Todo santo dia tem alguém saindo do PT, assim como tem alguém entrando no PT. Assim, a questão que me parece essencial é saber a escala do fenômeno. Ou seja: será provável que ocorram, no futuro próximo, dissidências que façam o PT perder sua condição de principal partido da esquerda brasileira?
Em minha opinião, isto só acontecerá em duas situações: se prevalecerem as tendências que atuam no sentido de converter o PT num partido tradicional, uma legenda focada em disputar eleições; ou se prevalecerem as tendências que atuam no sentido de converter o PT num partido social-democrata, sem disposição para lutar contra o capitalismo e contra o imperialismo.
O PT pode suportar a existência, no seu interior, de certo percentual de fisiológicos e de neotucanos. Mas não conseguiria suportar uma situação em que esses setores dominassem o Partido.
IHU On-Line - Que avaliação o senhor faz das táticas e estratégias adotadas pelo partido desde os seus últimos congressos? Quais foram os erros e acertos?
Valter Pomar - Não acho possível falar de maneira sintética acerca das táticas, assim vou responder apenas sobre a estratégia. O Partido teve sucesso em ganhar quatro eleições presidenciais seguidas. Mas não teve sucesso em impedir o golpe. Em parte foi assim, porque a estratégia adotada pelo Partido desde 1995 pressupunha que a classe dominante brasileira não romperia com as regras do jogo. A partir desse pressuposto, se imaginava que a transformação do Brasil se faria principalmente a partir de políticas públicas, implementadas por governos eleitos, sem rupturas estruturais, com um nível expressivo de concessões e de alianças com setores da classe dominante, com seus representantes políticos e midiáticos. Nesta estratégia, a luta social, a luta cultural, o próprio Partido, jogavam um papel complementar, quando não subalterno.
O Partido, através de seus governos e parlamentares, adotou políticas que contribuíram para melhorar a vida do povo, para ampliar as liberdades democráticas, para ampliar a soberania nacional e a integração regional. Mas isto não foi feito através de reformas estruturais, como a agrária, a urbana, a tributária, a do setor financeiro, a retomada das estatais privatizadas etc. Em decorrência, o grande capital continuou controlando as ferramentas necessárias para manipular e sabotar a economia popular. Um dos resultados disso foi a rapidez e facilidade com que os golpistas reverteram aquilo que fizemos de positivo.
Finalmente, entre 2002 e 2006, o grupo então majoritário no Partido fez um ajuste na estratégia adotada desde 1995. Este ajuste, publicizado na chamada Carta ao Povo Brasileiro, implicava em importantes compromissos com o capital financeiro. Embora Lula e Dirceu tenham apoiado esse acordo, o protagonismo coube a Antonio Palocci. Foi só depois da queda de Palocci que o governo Lula conseguiu retomar o rumo estratégico aprovado em 1995. Caminho que, como já apontamos, incluía uma alta taxa de ilusão e de conciliação de classe, que no médio prazo foram fatais.
O social-liberalismo de Palocci nos custou muito caro e nos fez perder um tempo precioso no terreno da política econômica e social. Mas o que talvez tenha nos custado mais caro, do ponto de vista estritamente político, tenha sido o republicanismo, a crença no caráter neutro do Estado, a fé nas instituições.
IHU On-Line - Muitos têm criticado a estratégia do PT de dar continuidade às manifestações “Lula Livre”. Como o senhor avalia tanto essa crítica quanto a possibilidade de dar continuidade a esse discurso?
Valter Pomar - A Campanha Lula Livre luta pela anulação das penas e pela imediata libertação do ex-presidente. Quem não concorda com esta campanha, ou bem acha que Lula é culpado, ou bem acha que o PT deveria largar sua mão.
Evidentemente, há setores que não sabem, não entendem ou não querem perceber o papel central desta luta, no atual contexto histórico. Até hoje não perceberam o papel central que jogou a chamada Operação Lava Jato, tanto no golpe quanto na eleição de Bolsonaro. Há até quem diga que a Operação Lava Jato teria aspectos positivos. Sem falar dos que endossam várias das acusações da Lava Jato, limitando-se a reclamar do caráter seletivo da punição ou do exagero da pena.
Os que divergem de Lula, inclusive no que diz respeito às relações mantidas com o empresariado em geral e com empresários em particular, têm todo o direito de fazê-lo. Mas isto não pode reforçar, nem pode se confundir com a narrativa da direita, que apresenta o PT como uma quadrilha e Lula como seu chefe, como tem feito ultimamente este personagem chamado Ciro Gomes.
Lula foi preso para impedir que concorresse às eleições de 2018, para impedir que fizesse campanha nas eleições de 2018 e, principalmente, para facilitar a operação de cerco e aniquilamento que um setor da direita pretende implementar contra a esquerda em geral, contra o PT em particular.
A luta pela soberania nacional, pelos direitos do nosso povo e pelas liberdades democráticas é indissociável da luta pela liberdade de Lula. E não considero que esta luta seja um apêndice. Para a direita, condenar seguidas vezes Lula, restringir seus direitos e mantê-lo preso até apodrecer é parte importante da operação para ampliar a dependência, ampliar a exploração e ampliar a opressão. No sentido inverso, para a esquerda, lutar por anular a pena e libertar Lula é parte importante da luta por derrotar o governo de extrema direita e suas políticas.
IHU On-Line - Durante a última eleição houve uma expectativa em volta do nome de Haddad e muitos esperavam que ele representasse uma nova liderança no partido. Entretanto, depois da eleição, ele anunciou que voltaria a se dedicar à vida acadêmica. Como avalia esse processo que culminou na escolha de Haddad para a eleição, e seu recuo pós-eleições?
Valter Pomar - Antes de mais, é importante lembrar que Haddad enfrentou uma campanha muito difícil, contribuiu para que fôssemos ao segundo turno e teve papel destacado na conquista de 47 milhões de votos. Isto posto, não acho que Haddad tenha sido a melhor alternativa para substituir Lula nas eleições presidenciais 2018. Disse isso em reunião na qual estava presente o próprio Haddad, quando seu nome foi indicado por Lula como seu vice. E sigo com a mesma opinião agora, depois da eleição. A situação política exigia mais radicalidade política, mais capacidade de diálogo com os setores populares e mais clareza sobre o fato de que nossa candidatura presidencial estava substituindo Lula, não ocupando seu lugar.
Antes das eleições, Haddad já era uma liderança do Partido. Sua candidatura presidencial reforçou esta condição. Assim, a disjuntiva não está em termos ou não uma nova liderança. A disjuntiva é: estamos numa situação “normal”, em que devemos nos preparar para as próximas eleições presidenciais, projetando desde já um nome para isso? Ou estamos numa situação “anormal”, em que a acumulação de forças passa principalmente pela confrontação política e social? A depender desta resposta, muda o papel que deve ser assumido por cada um de nós, Haddad inclusive.
Por fim, não acho errado que Haddad mantenha uma atividade profissional e acadêmica. Para fazer política não é necessário ser político profissional.
IHU On-Line - Qual sua perspectiva para o 7º Congresso do PT?
Valter Pomar - Espero que o Partido aprofunde as formulações que começaram a ser desenvolvidas no 6º Congresso, acerca do programa e da estratégia; espero que aprove um novo padrão de organização e de funcionamento; e que consolide a tática que estamos adotando hoje, na perspectiva de derrotar o governo Bolsonaro.
Destes debates, me interessa em especial o debate sobre programa e estratégia. A experiência latino-americana (1998-2018) e, antes disso, a experiência da social-democracia europeia (1945-1991), demonstraram que a sobrevivência das reformas e dos avanços depende não do capitalismo, mas sim da correlação de forças entre a classe capitalista e as classes trabalhadoras. E por mais que as classes trabalhadoras melhorem suas posições, se elas não avançarem sobre a propriedade dos meios de produção e dos instrumentos de poder, os capitalistas sempre terão os meios para colocar as coisas no seu devido lugar. Por isso o tema da estratégia socialista, da conquista dos meios de produção e dos instrumentos de poder, me parece inescapável. Temos que discutir governo, mas também temos que discutir poder e socialismo.
IHU On-Line - Muitos esperam que o 7º Congresso do PT seja um momento para a refundação do partido. Essa possibilidade existe?
Valter Pomar - Não. Claro que há várias maneiras de entender o termo “refundação”. Mas o termo dá margem a interpretações equivocadas. A principal delas é a ilusão de que haverá uma solução mágica para os problemas do PT e da esquerda brasileira. Solução que viria se houvesse a tal autoproclamada refundação. Os problemas do PT são reais. O caminho para resolver estes problemas não é mágico. Exige muito esforço para reconquistar a classe trabalhadora, muito trabalho de base, comunicação de massa e formação política, capacidade de analisar a realidade e elaborar orientações corretas etc.
IHU On-Line - Existe uma divergência no PT sobre o nome e a atuação de Gleisi Hoffmann na presidência do partido. Como o senhor avalia a atuação dela nos últimos anos?
Valter Pomar - Vou repetir aqui o que já disse noutra oportunidade: não votei em Gleisi Hoffmann. Não integramos a mesma tendência. Por diversas vezes dissenti de posições adotadas por ela. Ademais, Gleisi não é minha candidata à próxima presidência nacional do Partido.
Isso posto, Gleisi Hoffmann é presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores, nosso partido. E tem desempenhado um papel extremamente importante na oposição ao governo Bolsonaro e na luta pela liberdade de Lula. Por este motivo, é alvo constante dos ataques da extrema direita e da grande mídia. Isto é mais do que suficiente como motivo para defender Gleisi, mesmo que estejamos em posições diferentes no Congresso do PT e na eleição das futuras direções do Partido.
IHU On-Line - Alguns grupos dentro do PT defendem que não se faça eleição para presidente do partido neste ano. O senhor concorda com esse ponto?
Valter Pomar - Oficialmente, nunca ninguém assumiu esta posição de não eleger as direções partidárias este ano. E mesmo que eu acredite que havia quem defendesse esta opinião, o fato é que o Diretório Nacional do Partido, reunido dias 22 e 23 de março de 2019, decidiu convocar o congresso do Partido e a eleição das novas direções. O 7º Congresso Nacional do PT será nos dias 22, 23 e 24 de novembro de 2019. E a nova direção será eleita no Congresso, pelos delegados e delegadas eleitos no dia 8 de setembro, por todos os petistas que tenham se filiado até o dia 8 de junho de 2019.
IHU On-Line - Embora o PT tenha elegido vários deputados na última eleição, não houve uma grande renovação de nomes. O que isso revela sobre a formação de novas lideranças e a renovação de quadros dentro do partido?
Valter Pomar - Não acho que este seja um problema do Partido, é um problema mais amplo, da sociedade brasileira. Há uma crescente oligarquização da política. Não se trata principalmente de um problema geracional, embora também seja. O problema principal é social, no sentido amplo da palavra. Como reflexo disso, a maioria do Congresso é formada por homens, ricos, brancos e com uma idade média superior à do povo brasileiro. No país todo, há uma única governadora de estado, a companheira Fátima, do Rio Grande do Norte.
Para solucionar isso, é preciso realizar mudanças profundas na situação política e social, assim como mudanças nas regras eleitorais e na comunicação de massas.
Comparado aos grandes partidos, o PT continua sendo positivamente diferente, mas há algum tempo vem apresentando problemas sérios, que o Partido só resolverá se adotar, com radicalidade, políticas internas que forcem a renovação. Evidentemente isso passa por enfrentar a oligarquização da política também dentro do PT. Mas isso não pode ser feito apenas nem principalmente para as disputas parlamentares ou eleitorais.
IHU On-Line - Quais são os principais parceiros do PT hoje, nacionalmente e internacionalmente, considerando a fragilidade das esquerdas no mundo e na América Latina?
Valter Pomar - O PT vem desenvolvendo uma política internacional muito ampla e diversificada, desde os anos 1980. Desde então até hoje, já vivemos situações variadas. Por exemplo, a crise do socialismo soviético, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. O ascenso dos governos progressistas e de esquerda, de 1998 em diante. E a ofensiva da direita na América Latina e Caribe, desde 2008. Ao longo de quase 40 anos, construímos relações com um leque muito variado de partidos, movimentos, governos, instituições e personalidades. É natural, portanto, que alguns de nossos amigos tenham sido muito afetados pelas denúncias feitas contra nós, enquanto outros nunca vacilaram em nos apoiar. É o caso da esquerda cubana e venezuelana, e de maneira geral é o caso da esquerda latino-americana reunida no Foro de São Paulo. No Brasil, nossos aliados principais estão na Frente Brasil Popular, na Campanha Lula Livre e na Frente Povo Sem Medo.
IHU On-Line - O partido tem recebido algumas críticas por conta de seu posicionamento de apoio ao governo Maduro na Venezuela. Por quais razões o partido ainda mantém seu apoio ao governo Maduro?
Valter Pomar - Mas por quais razões não deveríamos manter nosso apoio a Maduro? Veja, Nicolas Maduro é legítima e democraticamente o presidente da Venezuela. O autoproclamado Guaidó é instrumento de um golpe de Estado. Os Estados Unidos e seus aliados têm como objetivo central controlar uma das maiores reservas petrolíferas do mundo. Por que mesmo não deveríamos apoiar Maduro?
IHU On-Line - Qual a análise feita pelo PT sobre as transformações do mundo do trabalho e da crise atual do sistema capitalista? Como o partido tem pensado e como deve pensar a organização da classe trabalhadora nesse cenário?
Valter Pomar - Há diferentes posições a respeito. Por exemplo, em 2008, quando estourou a crise internacional, tivemos avaliações diferentes sobre o que estava ocorrendo e principalmente sobre o que ocorreria em seguida. Isto ficou claro no debate sobre o cenário em que se desenvolveria o primeiro mandato da presidenta Dilma, entre 2011 e 2014. Predominou na comissão de programa do partido a ideia de que o primeiro mandato de Dilma se desenvolveria num cenário similar ao do segundo mandato do presidente Lula. Mas não foi isso o que ocorreu: a marolinha virou tsunami. Houve uma subestimação da profundidade da crise e, principalmente, subestimação do ataque que os Estados Unidos desencadeariam para recuperar o terreno perdido. Ataque que incluiu, posteriormente, a ativa participação dos EUA no golpe brasileiro, como parte da batalha global entre Estados Unidos e China.
O que vem acontecendo desde então confirma que o capitalismo em sua forma atual é extremamente instável, propenso a crises brutais, que se desdobram em guerras comerciais, políticas, culturais e militares. Confirma, também, que o capitalismo em sua forma atual tem baixa capacidade de reformar a si mesmo. Portanto, é cada vez menor a chance de convivência pacífica entre o capitalismo, as políticas de bem-estar social e as liberdades democráticas. Assim como é cada vez menor a chance de convivência pacífica das grandes potências entre si e destas frente aos países periféricos. Logo, a luta entre as classes dentro de cada Estado e a luta entre os Estados tendem ao acirramento.
O impacto disso sobre o mundo do trabalho é este que estamos vendo: ampliação do desemprego estrutural, piora nas condições de vida, criação de um ambiente cultural regressivo. Portanto o Brasil não é uma exceção.
Há variadas opiniões acerca de como lidar com isso. O que me parece essencial é: só a política salva, só a consciência de classe salva, só a luta salva. O fato das classes trabalhadoras estarem mudando suas condições de vida e de trabalho não impede a luta e a organização, apenas muda a maneira de fazer isso.
IHU On-Line - Diante do enfraquecimento dos partidos tradicionais nas últimas eleições e lideranças que se dizem antipolíticas ascendendo, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, que organização, ou reorganização, se exige à esquerda na disputa política?
Valter Pomar - Primeiro, não se deixar confundir. Não tem nada mais político que a antipolítica, não tem nada mais ideológico do que estes que criticam a ideologia alheia. Segundo, é preciso entender por quais motivos os partidos que você chama de tradicionais estão se enfraquecendo. Estes partidos, inclusive os de esquerda, eram sistêmicos, ou seja, componentes de um sistema que está desmanchando. Vai sobreviver quem for antissistêmico. A esquerda tem que recuperar suas raízes rebeldes, rupturistas, revolucionárias. E acima de tudo, temos que continuar vinculados às classes trabalhadoras.
IHU On-Line - O PT ainda tem um projeto político para o país? Em que consiste?
Valter Pomar – Temos, e a melhor prova disso é o esforço que a classe dominante faz para nos desmoralizar e nos destruir. O PT foi e continua sendo, até hoje, a melhor chance de superar os principais traços da nossa história. Estes traços são a dependência externa, a desigualdade social, o déficit democrático e o desenvolvimento conservador. A alternativa defendida pelo PT e por grande parte da esquerda brasileira combina soberania nacional e integração regional, igualdade social, a mais ampla e radical democratização, um desenvolvimento de novo tipo e o socialismo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Valter Pomar - Sim. Não sei quando esta entrevista será publicada, mas ela está sendo concedida na véspera do 31 de março e do 1º de abril. O cavernícola que nos preside vai comemorar o aniversário do golpe de 1964, portanto das prisões, das torturas, das mortes, dos desaparecimentos, do sofrimento imposto ao povo brasileiro durante mais de 20 anos. Nossa resposta será homenagear os que resistiram, os que lutaram, os que deram o melhor de sua vida para que a ditadura fosse derrotada. A ditadura caiu quando a classe trabalhadora entrou em cena. O mesmo vai acontecer com o regime de exceção e tutela militar. Pode ser que demore, pode ser que custe, mas no final venceremos. Até porque esta gente tem mais medo de nós, do que nós deles. Lula Livre.